Os Jogos do Vício escrita por Ryskalla


Capítulo 1
Prólogo - A Primeira Mãe




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/359397/chapter/1

Quanto mais ela seguia pelo corredor, mais a escuridão a envolvia. Seus pés não tocavam o chão e suas asas heterocrômicas batiam com leveza. Não havia razão para ter pressa... Ela não iria fugir.

Ao fim do corredor silencioso havia uma maciça porta de ferro, com uma pequena janela lacrada para evitar que a prisioneira tivesse qualquer contato com o mundo exterior. Aquela seria sua casa por toda a eternidade e além. A porta foi aberta, revelando seu interior. Presa por grossas correntes havia uma mulher alva como a neve, com seus longos cabelos presos por uma trança rente à cabeça. Seus olhos vermelhos estavam carregados de súplica e em seu rosto rolavam lágrimas eternas.

— Tu me enganaste... — O Vício aproximou-se da criatura pálida iluminada pela luz de velas. O lugar cheirava a dejetos e Myra não precisou olhar para saber de onde vinham. Há dois dias que aquela mulher estava presa no mesmo lugar, presa na própria imundice. — Tu sabes... Que não estás em condições de quereres me prejudicar... Sou a única que pode salvar teus filhos, querida.

— Eu li... Eu li as linhas errado. E-eu sinto muito, p-por favor... Eu s-sou uma simples humana... — A voz doce da mulher tremia. Não apenas a voz, mas todo o corpo. Será que o castigo lhe fora suficiente? Talvez ela estivesse enfraquecendo com o tempo... Aquilo era preocupante. Myra bateu seu bastão duas vezes no chão e duas crianças humanas apareceram no local, fazendo com que o Vício sorrisse.

— Tu não és uma simples humana... Nunca poderias ser. Tu és Eva, a que carrega uma lágrima de Deus em seu peito. Tu és a orientadora da humanidade, a primeira humana. És filha do mais puro dos anjos e a mais corrompida dos demônios. Tu tens o poder da visão. — Eva balançava a cabeça negativamente, estava cansada daquele fardo. O futuro da humanidade era algo sombrio demais... A vida de seus filhos carregava mais sofrimento do que qualquer mãe seria capaz de suportar. — Lavem-na.

As crianças prontamente obedeceram, aquela era a tortura maior para Eva. O Vício a libertou de suas correntes e foi guiada para perto de uma banheira. Os olhos das crianças não possuíam brilho e seus movimentos eram automáticos como o de escravos. Elas lavaram Eva como se lavassem um cachorro: Sem constrangimentos. As pequeninas mãos do menino seguravam uma bucha e com ela esfregava o corpo cândido da mulher ao passo que a garota desmanchava as tranças para lavar o cabelo de Eva. Myra flutuava pelo ambiente, era um amplo espaço. No lado oposto ao das correntes havia uma cama bem arrumada, e ao seu pé encontrava-se um baú de aparência desgastada.

Próxima à cama havia uma longa mesa sobre a qual estava repousada uma tapeçaria em branco. Observava os fios, buscando alguma irregularidade... Não poderia haver nenhuma previsão errada para aquela noite.

— É o suficiente, pode vir, Eva... Irei escovar seus cabelos, mas antes se vista. Crianças, por favor, tragam uma refeição e uma jarra de suco, sim? — Após Eva colocar seu vestido de luto eterno, Myra indicou a cadeira para que ela se sentasse. O Vício sentou-se em um banco imaginário e começou a escovar os longos cabelos brancos da humana. — Imagino, se eles não lhe pesam muito... Deveria cortá-los, sabe?

— Não consigo entendê-la, Myra... — A mulher não conseguiu completar a frase. Em muitos meios não conseguia entender o demônio. Os longos dedos de Eva tocaram a marca azul em formato de lágrima que havia em seu peito. — Às vezes acho que Deus me abandonou...

— Ele nunca a abandonaria, querida... Não você. — O Vício pegou a tesoura que havia na cômoda e cortou o excesso de cabelo de Eva, deixando-o na altura da cintura. Em sequência pôs-se a trançá-lo.

— É irônico, sabe? Ser consolada por um demônio. Ainda mais em relação a Deus.

— Não escolhemos nascer sendo o que somos, Eva... Você melhor do que ninguém deveria saber disso. — Passou pela cabeça da mulher perguntar o que Myra queria dizer com isso. Perguntar se ela algum dia esperava ter espaço no amor de Deus e talvez por isso agisse da forma como agia. Contudo, o Vício lhe ofereceu pouco espaço para uma pergunta. — Quero que você diga os versos enquanto toca a tapeçaria. Não quero arriscar outro erro de interpretação vindo de sua parte.

As crianças voltaram trazendo a refeição e Myra olhou para elas com desgosto. Teria que dar um jeito de se livrar delas, agora que elas sabiam onde Eva estava escondida. Era uma pena, de fato, talvez apenas fosse preciso apagar suas lembranças... Porém aquilo só era efetivo quando a pessoa deseja esquecer.

Eva comia desesperadamente, esquecendo completamente dos bons modos. Myra não poderia culpá-la, é verdade, afinal a humana havia conseguido manter-se forte por tempo demais. Porém eles sempre perdiam as forças quando sentiam o cheiro da comida. Aquilo era demais para qualquer um.

— É o suficiente. Aguardem-me sentados na cama... Sem um único ruído. — O alimento foi retirado assim como a jarra com o suco que Eva bebeu sofregamente. Os dedos da humana tocaram a tapeçaria e suas linhas começaram imediatamente a tingir-se enquanto Eva começou a narrar.

“Muralhas de fogo cobriam o local outrora sagrado.

Pessoas gritavam em um clamor desesperado.

Quem poderia salvá-las? Quem entraria no fogo da morte?

Demônios espalhavam o terror, infringindo às almas humanas gritos de dor.

Não havia salvação, estavam dadas à própria sorte.

Então como um raio luminoso no céu tempestuoso, criaturas celestes vieram guerrear.

Como estrelas cadentes atendendo desejos, contra os demônios eles estão a lutar.

Em meio aos escombros uma criança perdida andava.

Filha Amaldiçoada, a quem o demônio ignorava.

Seu rosto estava molhado pela tristeza e sua mente carregada de incerteza.

O que estava acontecendo aqui? Por que de minha família apenas eu sobrevivi?

Eis que surge aquele com o sangue dos três combatentes.

Humano amável, fonte de paz inesgotável.

Mesmo que o metal de seu braço seja uma arma fatal

Ele e a pequena garota, que eram os únicos sobreviventes.

Foram unidos por uma poderosa e fiel amizade

E juntos escaparam do antigo lar da santidade.”

— Por que o sangue dos três combatentes é um homem encapuzado carregando uma espada? — A voz do Vício estava carregada de curiosidade.

— Não consegui visualizar o rosto dele e acredito que a arma seja uma espada, pois é dito que é de metal. — A tensão na voz de Eva fez o Vício sorrir. Era algo realmente engraçado as mentiras que uma mãe desesperada poderia contar para proteger seus filhos.

— É isso ou você está tentando proteger seu Filho de Sangue? — Todo o rosto de Eva pareceu desmoronar, causando uma longa risada por parte de Myra. Mesmo que Eva possuísse o dom da visão, não possuía dom algum para a arte de dizer mentiras. Talvez essa arte fosse destinada apenas a demônios ou a quem estava fadado a se tornar um. — Não se preocupe, minha querida, Brooke e eu já nos conhecemos... Eu certamente não iria machucá-lo, exceto, é claro... Se ele fizer algum mal à Amy.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!