9 Crimes escrita por Miss America


Capítulo 6
O Crime de Sarah




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Dallas, 31 de janeiro de 1992.

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Jackie,

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Talvez, se algum dia você abrir esta carta, já não tenha mais esse nome. Nem viverá nesta casa que agora está diante de mim. Talvez você sequer saiba da minha existência. Mas eu sei da sua. Ah, eu sei.

Vou chamá-la de Jackie porque este sempre foi o nome que esperei dar à minha filha. É um nome que não deixa dúvidas sobre sua personalidade. Sua confiança. Ou talvez seja apenas minha cabeça.

Queria meu nome um pouco mais forte do que é. “Sarah” é um nome fraco, e foi dado a uma pessoa fraca. Não faço ideia de como estarei no futuro. Não sei o que vou fazer nos próximos cinco minutos. Não sei nem se voltarei para casa hoje à noite. Não sei se você vai me odiar quando crescer.

Não sei se darão alguma instrução a você antes que abra essa carta, ou se vai encontrá-la em meio a papéis rasgados e fotos amareladas. Não sei qual será sua reação ao saber que possui uma mãe perdida em algum lugar do Texas, ou até mesmo em um sanatório.

Percebe? Não sei de nada. Sua avó estava certa. “Sarah não sabe de nada”. Ah Deus, como aquela mulher estava certa! Não deveria ter gritado com ela. Talvez agora ela até tentasse me receber em casa. Acho que terei que entrar pela porta da garagem, e comer macarrão frio. Não sei quanto tempo ela vai precisar até que goste de mim de novo.

O que posso lhe dizer? Bem, talvez eu comece do jeito normal, contando como foi que conheci aquele menino que seria minha ruína, ou então posso começar daqui mesmo. Daqui, desses três degraus de cimento onde estou sentada, às 00:34, com um berço ao meu lado, e você está repousada nele, entretida com um chocalho irritante.

Sua risada enche o ar, Jackie. Ela é doce como jamais fui. Encobre até mesmo o som do chocalho. Como uma coisa tão bela pôde sair de mim?

Está frio. Muito frio. O vento vem do oeste, e está quase rasgando esta folha ao meio. Desculpe se minha letra não está muito legível. Sabe, costumamos tremer de frio e tremer quando estamos nervosos. Ansiosos. Tristes. Com vergonha.

Em algum momento eu vou ter que tocar a campainha, mas eu não quero. Juro que não sei quem mora nesta casa e nem eles sabem quem eu sou. Só os observei durante dois dias, e não tirei muitas conclusões satisfatórias. Parece uma família comum e feliz. Eles têm uma mãe loira e bela, um pai com um carrão e um cachorro. Acho que se chama Pepi. Que nome idiota. Tomara que eles não troquem seu nome.

Eles não têm filhos. Não sei por quê. Mas, a partir de hoje à noite, terão uma linda menininha de cabelos cacheados e grandes olhos castanhos. Acho que você terá sardas como eu. Não se incomode, elas são realmente fofas.

Isso pode parecer egoísta, mas não quero que escondam de você que a encontraram na porta de casa durante a noite. Você tem que saber disso. Tem que saber que alguém salvou sua vida, de certa maneira.

Por mais que eu ache que não mereça tanta honra, meu anjinho.

Quero que saiba que você não foi “dada” porque eu a odiava. Saiba que você tem valor. Você é muito importante para mim e, Deus sabe, vai ser importante para sua nova família.

Sabe, virão pessoas na sua vida e dirão que você não vale nada. Dirão que você está sozinha e que perdeu tudo que tinha. Talvez até digam que nunca ninguém irá amar você.

Fizeram isso comigo, e continuam fazendo. Você pode pensar que são uns estúpidos inúteis, mas as palavras ainda vão te machucar. É a lei da vida, acho. Precisamos ouvir algumas coisas para descobrirmos o tanto que conseguimos suportar. Não me pergunte o porquê. Eu não sei.

Não quero que pense que eu não me sinto culpada. Que isso não está doendo em mim, e que eu provavelmente não chorarei pelo resto da vida. Sei que deve ser difícil de compreender, mas eu realmente a amo. Realmente... Eu queria que você me entendesse. Agora, como está, no seu formato de bebê, pra quando crescesse se lembrasse de mim.

Mas não vou me surpreender se você me esquecer, ou se tentar ao máximo pra que consiga. As pessoas sempre me esqueceram. Sou um fantasminha, sabe? Viajo de memória em memória. Não estarei aqui quando precisar de mim.

É, é verdade. Não vou mentir pra você. Quando você cair e machucar seu joelho, eu não vou estar aqui pra fazer curativos. Não vou dizer o quanto você continua linda mesmo banguela, nem vou te levar até a porta da primeira série.

Não vou saber de seus segredos, não vou te abraçar no dia do seu aniversário e nem trarei presentes escondidos no porta-malas do carro. Não vou ver você se formando.

Porque eu não vou estar aqui. E não é porque quero. É porque você não merece. Não merece ter por perto alguém tão estúpida e volúvel como eu. Alguém tão cabeça-quente e indecisa como eu. Alguém tão mal-humorada e egoísta como eu.

Sua nova família vai tratar você melhor do que eu alguma vez trataria. Vão te dar o amor que eu não tenho maturidade suficiente para dar. Vão te mostrar o mundo do jeito certo e não do jeito distorcido como o que eu conheço.

Não se sinta rejeitada. Se sinta abençoada. Estou tentando, sei lá, de alguma forma, te dar uma prova do meu amor por você. E essa prova me dilacera inteirinha, mas te mantém viva, que eu acho que é o que importa. Eu acho que você vai me entender. Eu acredito em você.

Não pense por um segundo sequer em seu pai. Ele não existiu. Nem nunca existirá. Não perca seu tempo. Não precisamos de todo mundo a todo momento. Você sabe andar, pensar e falar, não é? Então tá ótimo.

Mas, se algum dia, por algum motivo, quiser vir atrás de mim, você está livre. Nunca estará muito longe dos meus olhos. É desumano demais virar as costas dessa forma, ou talvez seja eu e minha covardia ridícula. É covarde demais, não é?

Eu a amo, Jackie. E me perdoe se a folha estiver manchada... meu rosto também está.

Agora eu vou indo. Pra sempre.

Beijos, minha querida. Que Deus a guarde quando eu não puder, o que significa “constantemente”.

Tem uma campainha logo ali que eu tenho que apertar... e sair correndo. Faz jus à minha idade, mas não à minha inocência.

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Sarah


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Notas finais do capítulo

"É a hora errada para alguém novo."
~ 9 Crimes
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Olá, olá, criminosas(os). É, ler cartas alheias é crime, haha u_u minhas vizinhas deveriam saber disso.
Queria agradecer às(aos) novas(os) leitoras(os) que apareceram durante esse período sem postagens. Abraços õ/