9 Crimes escrita por Miss America


Capítulo 5
O Crime de Alice


Notas iniciais do capítulo

Dedicada a todos que sentem saudades.



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Aquela Cidade, 3 de agosto de 2011.

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Minha querida eu do passado,

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Olá, tudo bem por aí? Tomara, porque, em minha cabeça, estou enviando essa carta para um dia onde eu esteja me sentindo feliz.

Ah, sim. Essa carta é para o meu passado. Algumas pessoas escrevem, às vezes, aqueles tipos de cartas “para minha eu do futuro”, dizendo as coisas que querem fazer e esperando poder reler a carta... sei lá, vinte ou trinta anos depois e dizer “nossa, eu consegui!”. Ou não.

Bem, eu acabei de escrever uma dessa. Para minha eu do futuro. Lá eu disse que queria encontrá-la daqui quinze anos, e que ela estivesse em uma viagem pela Europa e com roupas muito lindas, fotografando tudo e todos como sempre fazem aqueles turistas retardados.

A carta foi selada com um dos adesivos de “Para Mais Tarde” da minha coleção, já que achei bastante conveniente. E irônico. Amo a ironia, ela faz a vida ficar mais engraçada e amarga, tipo um chocolate meio-amargo.

Quando terminei, eu a deixei pousada na minha frente por um longo tempo, dando risada de mim mesma e me controlando pra não jogá-la no lixo, como fiz com suas quatro antecessoras. E resistir ao desejo de abri-la dois minutos depois, o que também acontece.

Depois de conseguir me estabilizar emocionalmente – já que escrever sobre o que queremos é muito esgotante – algo me ocorreu. Eu estava escrevendo pra minha eu do futuro. Mas, que tenho eu com o futuro? Sei de minha indecisão, do meu modo volúvel e da influência das circunstâncias. O que escrevi ali pode se alterar em questão de dias, meses. Daqui quinze anos eu posso encontrar essa carta amassada dentro de alguma de minhas caixas de papelão e relê-la, me perguntando “que é isso?! Ah, sim, a época que eu acreditava em fadas, claro”.

Não que eu seja pessimista, mas o futuro é um terreno incerto. É como caminhar em nuvens. Não sei por que me importo em escrever para o futuro. Se eu quero desabafar, não deveria escrever para lá...

Deveria escrever para o passado. É lá que a ferida reside.

Percebe como somos tolos? Fugimos do óbvio, e depois ficamos filosofando em pedaços de sulfite.

Bem, de qualquer maneira, achei justo escrever uma carta para meu passado, também. A carta do futuro está na minha frente, me encarando, com suas palavras de “para a eu de 2026”. Parece que ela está rindo de mim. Tenho a impressão que ela já sabe o que acontece comigo em 2026. Parece que ela tem certeza de que eu continuo a mesma, com minhas inseguranças e lembranças imortais do passado.

Quero provar a ela que eu vou mudar. Eu quero mudar até lá, entende? Não quero ser para sempre uma caixa de memórias e ficar me lamentando pelos cantos. Não é digno.

Bem, eu só espero que a carta – que nunca vai chegar, eu sei disso – chegue em um dia onde eu estou embaixo das cobertas, com meu casaco favorito e ouvindo aquela rádio que a gente ama. Com certeza vai estar tocando aquela música onde o cara fica falando no fundo e isso te irrita, mas o toque dela é tão lindo e nostálgico que, nesse exato momento, não faz diferença.

A casa de madeira vai estar quentinha por dentro, não é? Então, você vai sentir vontade de ver a chuva lá fora. Vai pisar no assoalho e ele vai ranger, e o chão frio vai fazer você se arrepiar – e não está de meia! Mamãe vai surtar.

Você vai empurrar a cortina e vai dar de cara com o vidro todo embaçado. Vai esfregá-lo, mas não adianta muita coisa. Então você vai olhar para trás, vendo se não tem ninguém por perto, e, depois de confirmar isso, vai abrir uma frestinha minúscula. O vento gelado vai te encher e empurrar seus cabelos para trás com força, e você vai estreitar os olhos e sentir a pele corando de frio. Mas ela está lá – caindo em gotinhas fininhas, algumas respingando no casaco lilás.

Você vai sorrir. Isso te lembra tanta coisa, não? Eu sei por que... por que isso ainda acontece. Mas a chuva não é a mesma aqui, dois anos depois. Ela não é fria ou fininha como aquela chuva era. E ela não me faz sorrir.

Você vai se afastar da janela – e deixá-la aberta só um pouquinho, já que ama a chuva – e vai andar pela casa. Ela está vazia, seus pais foram ao mercado. Então, seus ombros vão cair. Vai se lembrar de que, poucos minutos antes de saírem, seus pais se preocuparam o que comprariam. A comida está tão cara, e o dinheiro está tão difícil de ter.

É, eu sei. Eu merecia uns tapas, sei lá. Aquele não era um tempo bom, eu sei disso. Chorava noite e dia. Quando foi que as coisas ficaram boas, mesmo?!

Eu acho que elas ficavam boas quando íamos jantar, os três, tremendo de frio e com a TV ligada naquela novelinha chata das seis horas. Depois passava o jornal, e nós ríamos das reportagens sobre comidas italianas. Era tão bom estar ali por um simples motivo: nós queríamos estar ali. E estávamos.

Ou então, nos dias onde o frio diminuía e o sol entrava na sala de estar apertadinha. Lá estava eu, no sofá, lendo os livros antigos que peguei da biblioteca. E a rádio estava ligada. E tudo parecia tão sereno.

E quando era de noite, passado da meia-noite e eu esperava no portão que meu pai chegasse. O vento soprava tão forte que parecia que ia me derrubar, mas eu não me importava. Via o carrinho pequeno com seus faróis ligados se aproximar do portão, e um homem alto saía do carro e abria. Agora nós podíamos dormir tranquilas, minha mãe e eu. Estávamos juntos.

Tudo parecia tão doce, fácil. Eu estava onde amava.

Espere, eu estou sorrindo. Sim.

O tempo hoje mudou por completo. Aquele sol escaldante deu lugar a um vento gelado, e as nuvens deixaram tudo escuro, com a ameaça de chuva pairando no ar. A rádio está ligada via internet, e estou usando o casaco lilás apenas por insistência, porque pedir por frio já seria demais.

Parece que meu coração vai saltar pela minha boca, e minhas sobrancelhas estão contraídas, evitando que as lágrimas pousadas nos meus cílios caiam. Será que, se eu olhar pela janela, eu estarei lá? Eu verei as gotinhas que tanto amo?

Desculpe, minha eu-do-passado, por não te deixar em paz. O que daria eu por viver esse dia mais uma vez? Será que vou poder, alguma vez? Ou devo pensar que coisas melhores virão?

Engraçado, eu sabia sorrir naquela época. O mundo desmoronando... e eu sorria. O que aconteceu comigo?

Devolva minha habilidade de sorrir, agora!

E eu prometo que vou me lembrar de você mais do que como uma lembrança dolorida. Vou pensar em você e acreditar que eu sei ser feliz.

Porque é pra isso que você existe.

Lembrar-me que sei ser feliz.

Adeus, minha querida.

Sinto sua falta, e nunca vou entender exatamente o motivo.

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Alice S.


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Notas finais do capítulo

"É o lugar errado para pensar em ti."
~ 9 Crimes