As Nem Um Pouco Felizes Histórias De Amor. escrita por Yang


Capítulo 6
Perturbando pensamentos.




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#Narrado por Daniel#

Precisava fazer a única coisa que de melhor eu sabia: dormir. Na maioria das vezes eu passava a tarde inteira deitado na cama, ouvindo música, até sentir o sono chegar. Salomão não é muito fã de tirar uma soneca à tarde. Então, ele passa boa parte do tempo roendo alguma coisa que encontra pela casa.

                                   Só sinto os olhos pesados, o cansaço tomando conta do corpo. Já estou deitado, a cabeça sobre o travesseiro e com os olhos fechados, busco o cobertor pela cama. Não encontro. Desisto e deixo que meu corpo fique descoberto. Nem está tão frio assim. Só preciso ouvir um pouco de música e logo caio no sono.

                                   Meu celular toca. Provavelmente uma mensagem. Olho o visor do celular: são 18 horas em ponto. Dormi bastante. O suficiente para não conseguir dormir a noite. E essa mensagem? Ninguém costuma me mandar nada, nem mesmo aquelas correntes como “repasse essa mensagem se você ama Jesus”. Não preciso repassar isso para provar a Ele. Ele já sabe disso, não é? Ou a mais comum e típica: “repasse essa mensagem ou sua mãe morrerá.” Admito, solto belas gargalhadas quando recebo uma. Porém, dessa vez a mensagem é do Felipe.

                                   “Ei cara, tava pensando em convidar você e o Renan para dar uma volta por aí. Topa?”

                                    Dar uma volta por aí. É tudo o que eu estava precisando agora. Aliás, não os vejo a um bom tempo.

                                     “Claro, que horas?”

                                      Eu mal respiro e o celular toca novamente.

                                      “Vou te buscar as 20hrs.”

                                      É, pelo visto arranjei algo pra fazer hoje à noite além de dormir.

                                      “Tudo bem cara. Até lá.”

                                      Preciso de uma roupa e preciso de dinheiro. Com toda a certeza, a minha avó não deve ter nada guardado. Leandro já deve ter chegado. Só preciso encontrar a carteira dele.

                                      Saio do quarto. Ali está ele, deitado no sofá com umas latinhas espalhadas pelo chão. Roncando como um porco. Minha avó está no banho. Posso ouvir daqui o barulho da água caindo do chuveiro. E a carteira, provavelmente na gaveta da cômoda do quarto dele. Preciso ir lá antes que ele acorde. Ou alguém vai sair machucado nisso.

                                      Abro a porta do quarto com todo o cuidado. Ela já está velha e às vezes faz um barulho tão irritante quanto o ronco do Leandro. Abro a primeira gaveta da cômoda que fica próxima a cama. Encontro a carteira, praticamente ao fundo. Até que hoje ele tem dinheiro. 20 reais não irão fazer falta. Além do mais, ele está bêbado e, provavelmente, nem se lembra de que têm dinheiro.

                                       Só preciso trocar de roupa e aguardar Felipe lá fora. Não quero que Leandro saiba que vou sair. Nem que ouça qualquer barulho. Espero que fique ali, dormindo do jeito que está.

                                       Salomão como sempre anda me seguindo. De alguma forma ele se preocupa mais comigo do que qualquer outra pessoa.

                                      Não sou tão paciente em relação a arrumar o guarda-roupa. Deixo tudo jogado, do jeito que está. Eu me entendo com a minha bagunça. Encontro algo que quero mais rápido assim, com tudo desarrumado, do que com todas as roupas devidamente dobradas e guardadas. Pego então a primeira blusa preta que encontro, e uma bermuda cinza.

                                       – Aonde você vai querido? – Diz a minha avó na porta do quarto, com apenas um macacão de banho. Rosa, a cor favorita dela.

                                      – Vou sair com uns amigos aí. – Respondo a ela.

                                     – Cuidado rapaz. Você já não anda bem visto pela vizinhança desde que souberam o estrago que você andou fazendo pela escola.

                                    – Ah dona Amélia! Esse pessoal pouco se importa com isso. E além do mais, eu não preciso dar satisfação pra ninguém.

                                   – Ei rapaz, precisa dar satisfação pra mim! – Disse ela me repreendendo e seguindo para o quarto.

                                   Fiquei ali, parado por um tempo. Coloquei a camisa e troquei o calção. Só precisava arranjar alguma sandália para calçar. Se Salomão não tiver mordido alguma, é claro.

                                    Meu celular toca. Mais uma mensagem:

                                   “Estou aqui na praça. Vem pra cá. Vamos buscar o Renan na casa dele.”

                                    Claro, Felipe. Preciso apenas me despedir da Dona Amélia. Se ela não me vir sair, com certeza terá um surto achando que eu fugi de casa.

                                     – Ei avó, já estou indo.  – Digo a ela na porta de casa.

                                     – Volte cedo, não fique tanto tempo na rua. – Diz ela. – Além do mais, vou precisar de sua ajuda com o seu pai.

                                      Antes de sair dou uma última olhada pra Leandro no sofá. Quarenta e um anos, e parece mais um adolescente mimado. Um irresponsável. Mal sabe ele o quanto eu o desprezo.

                                      Pelo menos a praça não fica tão longe de casa. Apenas duas ruas depois da minha. E então você pode avistar um campinho de futebol onde alguns moleques ficam jogando uma partida de qualquer coisa. E também ficam ali muitos idosos jogando conversa fora enquanto a novela não começa. Pessoas sem nada pra fazer. Só isso.

                                       Ao virar a esquina já consigo enxergar Felipe. Ele está encostado no muro próximo a entrada de um beco. Com uma mochila onde os sprays com certeza então. E claro, com um cigarro na mão.

                                        – Quer? – Pergunta ele enquanto oferece o cigarro.

                                        – É claro que não. – Respondo.

                                        – Desculpa menininha. – Diz ele ironizando. – Ele joga o cigarro no chão e pisa em cima. – Precisamos buscar o Renan em casa.

                                        – Claro, e o que exatamente a gente vai fazer?

                                        – Nada demais. Apenas pichar uns muros e claro, beber alguma coisa pra relaxar. Sei que o dia deve ter sido tenso, não é? – Pergunta ele.

                                        – Sim. Mas você tem grana aí pra comprar a bebida?

                                        – Desde quando precisamos de grana Daniel? É pra isso que nosso amigo Renan existe. Você sabe, o tio dele tem um mercadinho de esquina. Lá vende bebidas. A gente pega e vaza dali.

                                        Ele estava insinuando roubar. Não seria a primeira vez em que eu faria isso. Meu ponto máximo, meu real limite mesmo foi quase roubar um carro. Foi há dois anos, exatamente no dia do meu aniversário. Eu estava fazendo 15 anos e os antigos caras com quem eu andava queriam fazer uma espécie de “brincadeira”. Queriam que eu provasse a minha coragem, a minha “malandragem”. Eu tentei. Precisava ser aceito ali por eles. Então, na saída de uma rua escura, uma mulher estacionou um carro. Eu precisava ameaçá-la com alguma coisa, e eles então me deram um canivete. A mulher saiu do carro com uma caixa de livros, creio que ela era professora. Eu pedi então as chaves do carro, e ela começou a chorar. Dizia que o carro não era dela, que precisava devolver. Mas eu estava sendo observado pelos caras e eles podiam me bater depois. Eu tinha que conseguir aquele carro. Ela estava indefesa, era frágil, pequena, parecia ter uns vinte anos. Eu coloquei o canivete próximo à barriga dela, e então a mandei não gritar. Porém ela me falou algo em seguida pela qual me fez desistir daquilo e sair dali.

                                        – Eu estou grávida. Por favor, não faça isso. – Dizia ela enquanto chorava. Eu soltei o canivete no chão e corri.

                                        Dois dias depois os garotos me encontraram e como previsto, me arrebentaram de pancada. Passei dois dias na rua com vergonha de voltar pra casa nesse estado e apanhar do Leandro e ainda decepcionar minha avó. Quando eu voltei, descobri que nos dois dias em que estive na rua, Leandro não apareceu em casa. Ele nunca soube de nada disso. Implorei pra minha avó não contar nada. E aqui estou eu, prestes a roubar novamente, não um carro, mas bebidas. Continua sendo roubo. E eu estou um tanto... Assustado.

                                         – Não sei se essa ideia é muito legal... – Disse a ele.

                                         – Essa ideia não é “legal”. É incrível. Agora, cale a boca e vamos logo buscar o Renan.

                                         Seguimos para a casa do Renan que não ficava tão longe dali, porém cortávamos muito tempo se fossemos de ônibus. Não custou muito para que nos encontrássemos. Ali estávamos: um trio cheio de diferenças e igualdades. Um tipo de amizade que em minha opinião valia apena.

                                         – Quanto tempo Daniel! Nossa. Senti sua falta parceiro. – Disse Renan enquanto me cumprimentava.

                                       – Realmente muito tempo! Como você tá? – Perguntei, precisava saber se alguma coisa havia acontecido enquanto estávamos tanto tempo sem notícias um do outro.

                                       – Bem. Na verdade estarei melhor quando a diversão começar. Já sei como vamos arranjar as bebidas.

                                       Ele nos empurrou em frente, e seguimos para o mercadinho de esquina do tio dele. A propósito não havia ninguém por lá para nos atender. Era um daqueles comércios bem abandonados e sem muita importância. Entramos e procuramos o tio dele.

                                       – Ele está em casa, ficou doente e me pediu pra ficar por aqui cuidando dos “negócios.” – Disse Renan.

                                       Ele seguiu para os fundos e pegou uma caixa de bebida. Já havia experimentado aquela, e ela realmente era boa.

                                       – Tudo bem. Eu vou fechar aqui e vamos para a rua de trás. Tem um muro bem alto, fica em um beco, e pouca gente passa por lá. – Disse Renan enquanto guardava as bebidas dentro da mochila.

                                       Saímos e em cinco minutos de caminhada chegamos ao local. Já estava ficando tarde e acabei por me lembrar de que deveria chegar cedo em casa. Talvez algumas horas de atraso não importariam tanto para Dona Amélia.

                                       – Vocês dois, ainda sabem subir em muros ou esqueceram? – Perguntou Renan a mim e a Felipe.

                                      – Esse é o tipo de coisa que caras como eu não esquecem. – Disse a ele enquanto começava a subir no muro.

                                      Com um pouco de esforço e ajuda, estávamos ali, os três como nos velhos tempos. Apenas bebendo e jogando conversa fora.

                                      Aquele local era realmente deserto, nos trinta minutos em que chegamos ali ainda não havia passado ninguém pelo beco. E assim que as bebidas acabaram os dois começaram a fumar, bem do meu lado.

                                      – Então, não quer mesmo experimentar? – Disse Felipe enquanto oferecia o cigarro.

                                       – Não, a bebida já foi o suficiente. – Respondi.

                                       Eles riram. No fundo eu sentia o quanto eles me consideravam um frouxo. Porém, aceitar aquilo ali era demais pra mim. Bebidas tudo bem. A maioria dos adolescentes de dezessete anos faz esse tipo de coisa. Só que eu ainda não estava apto a fumar. Nem queria.

                                       – Tudo bem, quem quer começar a arte? – Disse Felipe enquanto puxava de dentro da mochila os sprays. Ele desceu do muro tão rápido e logo o vimos lá em baixo, começando a pichar.

                                      O estilo dele era fazer umas letras bem bizarras, mas sempre com alguma mensagem relacionada à política. Isso se deve ao fato de que o irmão mais novo dele morreu durante um tiroteio. Tinha apenas dois anos. A bala que matou o garoto era de um policial que saiu da prisão três meses depois. Os pais dele absolutamente enlouqueceram. Queriam aquele cara na prisão. Acontece que não se pode julgar, a coisa toda aconteceu de forma acidental. Mas, a família toda queria justiça, mesmo que isso não trouxesse o garoto de volta.

                                       – Já to descendo, deixe algum espaço pra mim. – Disse a ele enquanto me jogava de cima do muro.

                                        A mensagem da vez tornou-se a minha favorita: “Os verdadeiros bandidos estão no poder.”.

                                        – Profundo? – Perguntou ele enquanto sorria.

                                        – Muito. – Respondi.

                                        Renan foi o último a descer, estava com outras duas garrafas na mão. Duas que haviam sobrado, mas que nem eu e Felipe tínhamos notado.

                                        – Peguem. São as últimas. Nem tinha visto essas duas. Aproveitem! – Disse ele enquanto entregava a garrafa em nossas mãos. Pegou o spray e começou a pichar.

                                        Seu estilo era mais pessoal. Não escrevia frases, apenas fazia desenhos e geralmente aquelas letras que as pessoas julgam “estranhas” quando as veem pichadas em algum muro. Mas acredite, elas tem um significado, todas elas.

                                        De repente ouvimos uma voz surgindo na entrada do beco. Era a voz de uma garota. Até então não sabíamos se ela estava sozinha ou acompanhada porque a mesma parecia conversar com alguém. Ela surgiu muito rápida e sem nos dar tempo de sair daquele lugar. Assim que ela começou a se aproximar, notei que a conhecia. Sim, eu a conhecia. Era a estúpida garota irritante, aspirante de literatura que me encheu a paciência hoje pela manhã. Ela falava no telefone enquanto carregava uma sacola de compras. Ela ainda não tinha nos notado, e continuava falando.

                                         – Tudo bem mãe, já estou bem perto da casa dele. – Disse ela. Logo depois desligou o telefone e finalmente percebeu nossa presença. Ela me olhou. Fui o primeiro que ela notou estar ali. Porém, a garrafa na minha mão foi o que a assustou. Meus amigos começaram a rir. Não contive a surpresa.

                                          – Você?! – Disse a ela, ironizando encontrá-la num lugar como este. Ela continuou parada, e me respondeu meio trêmula.

                                          – É, sou eu. – Respondeu ela enquanto seguia caminho até desaparecer na saída do beco.

                                          Minha noite havia simplesmente acabado.


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