Forever Charmed escrita por Bella P


Capítulo 8
Vinte e Duas Semanas




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A Manticore



Tatsuha


Ouçam essas palavras, ouçam o meu chamado, espíritos do outro lado. Venham a mim neste momento, cruzem os portões do firmamento.– nada, nem uma luzinha dourada, um sopro de vento, ou a silhueta da minha avó alcoviteira aparecendo no meio do sótão. Se bem que eu nem estava tentando invocá-la, mas ela sempre tinha a mania de pegar carona nessas convocações espirituais.

Suspirei, espalmando as velhas páginas do Livro das Sombras e apoiando a minha testa sobre a folha que continha o feitiço.

– Ah, qual é?! Dez anos, já se foram dez anos! Uma visita. Apenas uma visitinha... - murmurei, erguendo a cabeça em seguida, mirando o teto. - Eu tenho esse direito! Por anos os seus preciosos Encantados têm feito o seu trabalho sujo! Por anos a minha família e eu temos arriscado as nossas vidas. Acho que é mais do que justo recebermos uma recompensa.

Nada. Nem um pio, nem uma brisa. Nada!

Tentei o feitiço mais uma vez.

Ouçam essas palavras, ouçam o meu chamado, espíritos do outro lado. Venham a mim neste momento, cruzem os portões do firmamento.– aguardei uns dois minutos. E novamente obtive o puro silêncio como resposta. - DROGA! - ódio me consumiu e em um gesto impulsivo eu fechei o Livro com força e o arremessei longe. Dane-se que era uma relíquia de família, eu estava puto.

Foi após a morte da minha mãe que eu descobri a existência deste feitiço, e quando eu tentei usá-lo pela primeira vez tudo o que eu trouxe foi a alma do meu avô à terra para dizer me que eu ainda não estava pronto para vê-la. Que tudo ainda era muito recente.

Isso foi há dez anos e eu estou mais do que pronto. Se a minha avó que morreu anos depois já aparecia para nós, por que não a minha mãe?

Eu precisava dela, e precisava AGORA!

Senti o choro começar a brotar dentro de mim e com dificuldade sentei no sofá sob a janela que ficava atrás do pódio do Livro. E assim que eu sentei a razão do porquê eu queria tanto a minha mãe aqui se fez notar.

Na primeira vez que isto aconteceu, pareceu pequenas borboletas revoando dentro da minha barriga. Algo tão mínimo que na época – há uns três dias – eu achei ser apenas gases. Até que, horas mais tarde, outro fenômeno me fez descartar essa ideia: um chute. Bem abaixo do meu umbigo e forte o suficiente para me fazer perceber que havia um bebê dentro de mim.

Sim, eu sei que era ridículo. Afinal, ele está dentro de mim há meses. Mas enquanto não havia sinais concretos de sua existência, exceto uma barriga que crescia, era como se ele não estivesse ali.

Era como se o berçário que eu montava com Ryuichi e os meus irmãos fosse para receber a criança forjada na história que Tohma fabricou para a imprensa. A história de que Ryuichi e eu decidimos ser pais e estávamos em processo de adotar um bebê. Por isso o berço, os brinquedos, as roupas, tudo, na minha mente, eram para essa criança que estávamos “adotando”. Isto até que ela se fez conhecer dentro de mim e me fez lembrar que a situação não era bem essa.

E depois de cinco meses parece que a ficha finalmente caiu por completo.

Eu iria ser pai. Eu iria ser pai.

E eu estava apavorado.

Como é que eu iria ser pai? Eu não fazia a mínima ideia de por onde começar. Eu sempre fui o garotinho da mamãe, o caçula, e depois que ela morreu a responsabilidade da minha criação caiu sobre a minha avó e Mika. O meu pai estava ocupado demais com a própria dor para se importar que havia uma criança na casa e que esta criança testemunhou a mãe ser morta por demônios.

Era por isso que a minha relação com o meu pai não era das melhores. Nos entendíamos na maioria das vezes, mas se ficássemos muito tempo juntos em um mesmo ambiente as coisas corriam o risco de desandar.

Logo, ele não foi o melhor exemplo de figura paterna.

E havia o fato de que eu era uma aberração da natureza. Uma aberração que não tinha ideia do que deveria fazer. Se eu fosse mulher ainda poderia recorrer ao famoso “instinto materno”, mas nem isso eu tinha como vantagem. E por um acaso existia “instinto paterno”? Acho que não, porque se existisse eu não teria levado tanto tempo para assimilar o que estava acontecendo. E por que assimilaria se desde que soube da existência desta criança a minha vida nunca ficou tão movimentada.

E agora? Agora eu estava surtando e precisava de ajuda e a única pessoa que eu sei que serviria não estava respondendo aos meus chamados. Por que ela não estava respondendo aos meus chamados? Quando hoje era o dia em que eu mais precisava dela desde o dia em que ela morreu.

– Por favor. - implorei com lágrimas rolando dos meus olhos e soluços que me faziam gaguejar enquanto olhava para o teto novamente. - Só desta vez, por favor. - esperei, apenas para ser desapontado de novo. - MERDA! - e em um acesso de raiva e só porque eu podia, explodi o velho vaso de cerâmica que pertenceu a nossa tia-avó Megumi.

Malditos Anciões e as suas malditas regras! Malditos hormônios que estavam me enlouquecendo! Maldita magia! E maldita Mika que resolveu orbitar naquele exato momento enquanto eu estava tendo um ataque.

– Hei... O que aconteceu aqui? - a fuzilei com os olhos. Seja o que for que ela tenha vindo fazer aqui, que desse meia volta e orbitasse o traseiro dela de volta para Tóquio. - Tatsuha, você está choran...

– O que você quer? - perguntei com azedume, levantando com dificuldade do sofá – maldito equilíbrio que estava me deixando – e secando as lágrimas dos meus olhos com as mãos.

– Eu vim... - continuei a olhando com raiva quando ela nada disse por um minuto. - O Livro das Sombras. - Mika apontou para o pódio e ao não ver o livro, o procurou pelo sótão até que o encontrou largado no chão, onde eu o joguei. - Por que o Livro das Sombras está largado no chão? - comprimi os lábios e nada respondi enquanto a vi ir até o Livro e recolhê-lo. - Tatsuha, o que está acontecendo?

– Mika... Está tarde e o que quer que você queira com o Livro, faça e se mande daqui. - disse contrariado.

– Você não pode me expulsar daqui, esta é a minha casa...

– Esta casa não é sua há doze anos, desde que você se casou com Seguchi e debandou para Nova Iorque e depois Tóquio, levando Eiri com vocês. - rosnei e outro vaso que era herança de família explodiu a um canto do sótão.



Mika


Pulei de susto e olhei por cima do ombro para o que um dia vou um vaso decorativo da nossa avó. Fiz uma careta. Lembro que era um dos favoritos dela e agora o mesmo virou cacos.

Voltei a minha atenção para Tatsuha cujo rosto estava vermelho e ele ofegava. O mirei preocupada.

Em todos esses anos Tatsuha nunca questionou, nunca reclamou, sobre o fato de termos ido embora: Eiri e eu. Quando partimos, a nossa avó ainda era viva. Ela morreu três anos depois da nossa mãe e, curiosamente, de maneira mortal. O estresse de anos lidando com demônios não foi bom para o coração já fraco dela. Um infarto foi o que levou a velha Sra. Moira Uesugi desta para a melhor. Logo ela que sempre foi uma guerreira feroz. E, mesmo assim, a morte dela não nos afetou tanto quanto a da nossa mãe.

A nossa avó já estava doente, os médicos já haviam a alertado do problema e do que poderia acontecer se ela continuasse se estressando daquela maneira. O problema era que Eiri e eu não mais vivíamos na mansão, Tatsuha ainda era muito novo e tinha, logo depois da morte da nossa mãe, adquirido os seus poderes explosivos e ainda estava aprendendo a controlá-los, logo ela era a única fonte de defesa da casa durante os ataques.

E mesmo assim, mesmo diante dessa mudança em nossa rotina, Tatsuha nunca reclamou, nunca disse que a mansão deixou de ser o nosso lar, nunca perdeu a paciência assim dessa maneira a ponto de perder o controle sobre os seus poderes. Ao menos nunca conosco.

– Tatsuha... - abracei o Livro contra o peito e me aproximei vagarosamente dele. Meu irmão estava parecendo um animal ferido e acuado e quando ele ficava assim era quando ele se tornava mais perigoso. Não pelos seus poderes, mas pela sua língua ferina. Tatsuha costumava dizer coisas para se defender emocionalmente e que geralmente machucavam e das quais ele se arrependia amargamente depois.

Ele soltou um suspiro cansado, como se toda a raiva que sentia tivesse simplesmente evaporado do seu corpo, voltando a se sentar e recostando nas almofadas do sofá que pertenceu a nossa tia-avó Mika.

– Por que você está aqui Mika? Está tarde. - quis conversar, puxar assunto, descobrir a razão do porquê do descontrole dele, mas o olhar que ele me deu e a expressão de “por favor, esqueça sobre isto” me fez engolir o meu instinto primordial de protegê-lo.

Tatsuha era o caçula da família. Quando ele nasceu, eu já tinha doze anos, já estava entrando na adolescência, diferente de quando Eiri nasceu. Quando Eiri nasceu eu ainda era criança, embora já compreendesse muita coisa, mas ainda sim criança. Ajudei a minha mãe com uma coisa ou outra na hora de cuidar de Eiri, mas com Tatsuha eu praticamente fui babá em tempo integral. Eu troquei as fraldas dele, dei mamadeira, estive lá no seu primeiro dia no Jardim de Infância. Tatsuha e Eiri eram agarrados porque a diferença de idade entre eles era menor e ambos eram meninos. Mas eu fui a segunda figura materna em sua vida.

E não digo isto para me gabar. Era a mais pura verdade. Quando a nossa mãe morreu, Tatsuha praticamente perdeu o rumo e foi uma dor de cabeça para a nossa avó. E era por mim que Moira gritava quando precisava de ajuda para lidar com o caçulinha. O nosso pai era praticamente inútil e depois ficava reclamando do porquê Tatsuha nunca obedecê-lo. Como ele esperava ser uma figura de autoridade quando nunca esteve lá sendo um pai de verdade?

– Eiri teve uma visão de uma Inocente sendo atacada e me pediu para vir aqui ver se conseguia identificar o demônio. - falei, ignorando por hora o que aconteceu anteriormente, mas lancei um olhar a Tatsuha que dizia que mais tarde iríamos conversar sobre isto.

– Em Tóquio? - sei o que ele queria dizer com aquele tom de voz.

Poderíamos ser os Encantados, o bruxos mais conhecidos ao redor do mundo, mas a nossa área de atuação, a nossa jurisdição por assim dizer, resumia-se a Kyoto. Uma cidade histórica e tão espiritual como Kyoto era mais propensa a ataques do submundo do que outras cidades do país. Além do que, não éramos o único clã que protegia os Inocentes deste mundo ou do Japão. Poderia não haver outros Encantados por aí, mas havia outros bruxos e bruxas que lutavam contra o mal.

– Se Eiri teve a visão é porque essa missão é para ser nossa. - dei de ombros e levei o livro ao pódio, o ajeitando sobre este.

– Pensei que demônios já tivessem aprendido a não nos atacar no meio da madrugada. Não faz bem para a saúde deles. - ri enquanto via de rabo de olho Tatsuha se levantar com dificuldades do sofá e vir para o meu lado.

Era tão estranho ver o meu irmão desta maneira. Eu estava feliz, claro. Teria um sobrinho ou sobrinha para paparicar em poucos meses, mas nunca pensei que uma criança entraria nas nossas vidas desse jeito. Não com o meu irmão sendo a mãe do bebê. O Destino realmente gostava de nos sacanear vez ou outra.

– Você ao menos tem alguma ideia de como é esse demônio? - dei novamente de ombros enquanto virava as páginas.

– Eiri me deu uma descrição do mesmo... - parei e olhei para o teto quando ouvi o famoso tilintar indicando que alguém estava chamando por mim. - Eiri está me chamando. Ele encontrou o demônio e precisa de ajuda. - fechei o livro, me afastando um passo do pódio, pronta para orbitar, mas a mão de Tatsuha sobre o meu braço me parou.

– Eu vou com você. - olhei da mão para o rosto dele e hesitei. Depois desci o olhar do rosto para a barriga marcada pela camisa de algodão que ele usava.

– Não acho que seja... - ele praticamente me fuzilou com o olhar.

– Ainda sou o irmão com o maior poder de fogo neste trio. Eu vou com você. - suspirei. Em um ponto Tatsuha tinha razão: ele tinha o maior poder de fogo. Mas não me agradava a ideia de levá-lo ao campo de batalha. Acho que era porque até um tempo atrás, embora eu soubesse da gravidez, às vezes dava até para ignorá-la pelo fato de que as mudanças no corpo de Tatsuha eram escondidas pelas roupas de inverno que ele usava.

A mudança das estações também trouxe mudanças no guarda roupa do meu irmão e nas nossas percepções. Ter consciência de que Tatsuha esperava um bebê era uma coisa. Ver este bebê crescendo dentro dele era outra. E com isto vinha o instinto protetor. O instinto que Ryuichi já tinha adquirido há meses porque ele podia sentir a presença da cria. Comigo eu precisei confirmar a existência do meu futuro sobrinho visualmente para esse instinto aflorar em mim.

Por isso não! Eu não gostava da ideia de levar o meu irmão grávido para Tóquio para lutar contra um demônio desconhecido.

O tilintar em meus ouvidos aumentou, o que significava que Eiri estava ficando impaciente.

– Eu vou com ou sem você Mika. - não duvidava disto. Teimosia era a marca registrada do clã Uesugi.

Com um suspiro conformado, nos orbitei para onde Eiri estava, apenas para ver um beco mal iluminado surgir a nossa volta.

– Você demorou. - rolei os olhos, ignorando o resmungo de Eiri e me aproximando dele. Ele estava encolhido em uma esquina formada por um prédio, olhando algo mais além no beco.

– O nosso demônio apareceu? - perguntei enquanto sentia Tatsuha às minhas costas bisbilhotar além do beco.

– Ew! - ouvi ele dizer perto do meu ouvido e não pude deixar de concordar com ele.

Havia uma criatura mais a frente. Com as partes do corpo expostas parecendo cascas grossas, como a de um tatu. A cabeça era toda lisa, sem fios de cabelo nem nada. Os olhos pareciam de serpente e o nariz era ofídico. Usava retalhos costurados de couro cru ao invés de curtido e ele, ou ela, sei lá, atacava uma pessoa no chão que gritava de dor.

– Por favor, não me diga que aquele é o nosso Inocente. - falei enquanto engolia a vontade de vomitar. O demônio esquisito agora tirava pedaços dos órgãos do pobre coitado e o guardava em um saquinho de pano.

– Não. - Eiri respondeu. - Aquele era o nosso demônio. - e isto ficou claro porque assim que ele morreu depois de ter servido por um bom tempo como refeição do outro demônio, os seus restos mortais dissolveram como poeira. - Melhor sairmos daqui, não queremos que o outro demônio nos veja...

Tarde demais. Pensei quando o demônio serpente ergueu a cabeça e os seus olhos dourados focalizaram-se em nós. Meus irmãos e eu recuamos um passo e iríamos bater em retirada quando o demônio simplesmente incorporou um Velozes e Furiosos, pois em um segundo ele estava junto a poeira do outro demônio, no segundo seguinte estava na nossa frente.

Senti um soco em meu peito que me arremessou longe e perdi o ar quando bati com força contra uma parede. Qual era o problema dos demônios e esta irritante mania de nos arremessar longe? A ida ao chão, obviamente, foi mais dolorosa do que o meu encontro com a parede e acho que Eiri concordou comigo, se o grunhido e o xingamento que o ouvi dar fosse alguma indicação.

– AH! - o grito me fez espantar rapidamente as estrelas que me rodeavam e ergui os olhos para ver Tatsuha mais à frente, balançando as mãos freneticamente enquanto disparava rajada atrás de rajada explosiva no demônio que ignorava o ataque e continuava avançando sobre o meu irmão.

Rodei os meus olhos pelo beco a procura de alguma coisa, qualquer coisa para auxiliar Tatsuha, até que vi atrás dele um enorme transformador de energia.

– Cabo de força! - gritei enquanto apontava a minha mão em direção ao cabo, o envolvendo em orbes azulados e em seguida guiei os orbes na direção do demônio.

E dito e feito, assim que o cabo bateu no ombro do demônio este praticamente dançou diante da alta descarga de energia, criando um show pirotécnico antes de finalmente virar pó.

– Mais um que aprende da maneira mais difícil em não interromper o nosso sono de beleza. - caçoei, recebendo a mão de Eiri como ajuda para me levantar do chão. - Você está bem? - perguntei para Tatsuha, o olhando de cima a baixo a procura de um arranhão que fosse, mas não encontrando nada. Mesmo assim, ele ainda podia ter algum ferimento escondido se a careta que ele estava dando fosse alguma indicação.

– Ótimo. - ele me respondeu.

– Então por que dessa cara? - Eiri simplesmente ecoou os meus pensamentos nesta pergunta e Tatsuha rolou os olhos.

– Bebê já vai nascer com problemas de insônia pois há essa hora da madrugada prefere usar os meus órgãos para praticar boxe do que dormir. - arregalei os olhos diante da informação.

– O bebê está se mexendo? - falei extasiada, indo até Tatsuha e pousando as minhas mãos na barriga dele. Sorri quando senti um chute bem sob a minha palma esquerda.

– Ao menos alguém está feliz com o meu martírio. - dei uma careta para ele. Tatsuha reclamava demais.

– Ei! Vocês ouviram isto? - nossos olhares foram para Eiri um pouco mais afastado de nós e ficamos um minuto em silêncio para ouvir o que quer que ele tenha escutado.

E então o som de um resmungo chegou aos nosso ouvidos. Algo que pareceu um filhote de cachorro ganindo e estava vindo de uma trouxa de panos ao fundo do beco, onde o nosso demônio que morreu eletrocutado se alimentava de outro.

Nos aproximamos devagar do bolo de panos e em um gesto reflexo eu estiquei a mão para parar Tatsuha quando o vi se abaixar com dificuldade na direção da trouxa, mas parei no meio do caminho. O que fosse que estivesse escondido sob os panos não era grande o suficiente para ser um demônio ameaçador. E se fosse um demônio, Tatsuha ainda era o irmão que explodia as coisas.

Vimos quando ele puxou o pano e estou certa de que a expressão em nossos rostos era a mesma: surpresa. Surpresa porque o que foi revelado para nós foi um bebê. Desses fofinhos, rechonchudos, com bochechas rosadas, cabelos ralos e claros na cabeça, pele alva e macia e grandes olhos azuis. E ele sorria para nós.

– Que fofo. - não pude evitar em dizer. Mas a fofura dele acabou quando vi passar por entre os pequenos lábios rosados uma longa e fina língua bifurcada, acompanhada de um sibilo.

– Não tão fofo assim. - Eiri comentou às minhas costas. - Tatsuha não acho... - disse quando Tatsuha envolveu o bebê nos panos e o ergueu no colo, levantando-se do chão ao mesmo tempo.

– O quê? Você acha que ele vai me atacar? - falou com um rolar de olhos enquanto o bebê ria entre os braços dele. - Melhor voltarmos para a mansão. - sugeriu e a realidade me abateu.

– O quê? Não! - protestei. - Não vamos levar um demônio para dentro da mansão.

– Mika... É um bebê. - Tatsuha protestou de volta.

Pouco me interessa o tamanho. Era um demônio.

– Que tal... - Eiri entrou na conversa antes que Tatsuha e eu começássemos uma longa discussão sobre pontos de vista. - irmos para casa e resolvermos isto lá antes que alguém apareça aqui.

– Quem vai aparecer? É madrugada de um dia de semana em Tóquio. Ninguém fica nas ruas de madrugada durante a semana em Tóquio. - resmunguei.

– Não interessa! Apenas vamos! - Eiri colocou a mão em meu ombro e a contra gosto coloquei a minha mão no ombro de Tatsuha, nos orbitando de volta à Kyoto.

– Mika, seja um doce e orbite o cercadinho no berçário aqui para o solário. - Tatsuha pediu assim que chegamos na mansão, nos dando as costas com o bebê ainda no colo e seguindo o caminho da escada.

– Hei! - chamei alarmada. O meu irmão estava partindo com um demônio nos braços. - Aonde você pensa que vai?

– Colocar uma fralda e roupas nele. Acho que deve ter alguma coisa no enxoval que sirva. - quis protestar, pará-lo, mas a mão de Eiri em meu ombro e a negativa de cabeça que ele me deu me impediram.

– Só eu que estou preocupada aqui com o fato de que o nosso irmão está tomando intimidade com um demônio? - resmunguei enquanto orbitava o maldito cercadinho para o solário.



Tatsuha


– Você é fofinho, sabia? - falei para o bebê sobre o trocador enquanto grudava os adesivos da fralda onde eles precisavam ser grudados. A resposta que ele me deu foi um sibilar e uma aparição da língua bifurcada. - Okay, você deixa de ser fofinho quando faz isso.

Porque quando ele fazia isto eu me lembrava de que ele era um demônio e não somente um bebê inocente de bochechas apertáveis e grandes olhos azuis.

Um tilintar ecoou no berçário e olhei por cima do ombro para ver que Mika tinha acabado de orbitar o cercadinho para o solário. Porque eu sabia que esta seria mais uma noite insone e por mais que o bebê que ria para mim fosse fofo, eu tinha limites em colocar demônios dentro do berço do meu filho.

Assim que terminei com a fralda, entreguei para ele um chocalho com o qual ele começou a brincar enquanto procurava na cômoda alguma roupa que pudesse caber no nosso pequeno visitante. Encontrei um macacão que considerei grande o suficiente para o bebê e comecei a vesti-lo enquanto o via levar o chocalho à boca e babá-lo em todos os ângulos possíveis.

Quando fechei o último botão do macacão e olhei de novo para ele, não pude deixar de pensar em o quanto ele parecia... humano. Quando a língua esquisita não aparecia, ele poderia se passar como mais um bebê na multidão.

Ele sorriu de novo para mim de maneira tão adorável que não pude deixar de evitar roçar a ponta do meu nariz em sua bochecha, aspirando o cheiro gostoso de talco de bebê que havia colocado nele enquanto sentia a sua pele macia contra a minha. Um gorgolejar diante da minha carícia foi a resposta dele para mim e quando olhei dentro dos grandes olhos azuis dele vi apenas felicidade irradiada neles.

Como essa criaturinha tão inocente poderia ser um demônio?

O peguei no colo, segurando a vontade súbita que me apossou de apertá-lo, e sai do quarto, tomando o caminho das escadas e de volta para o solário antes que os meus irmãos viessem a minha procura.

– É um demônio. Eu voto em extingui-lo. - ouvi Mika dizer assim que terminei de descer os degraus.

– Mika... Acho estranho os papéis estarem invertidos aqui. Ainda voto em procurarmos por outra solução. - veio a resposta de Eiri.

Concordo, os papéis estavam invertidos. Achei que Mika seria a primeira a defender o bebê pois ela sempre foi do tipo maternal, e não ser radical a ponto de querer eliminar o pobre só porque ele era um demônio.

– Qual? Entregá-lo para o Serviço Social? - Mika debochou e eu entrei no solário, indo até o cercadinho e colocando o bebê lá dentro. Ele riu para mim e sacudiu o chocalho antes de começar a explorar os seus novos arredores. - Tatsuha! Me apoie aqui. - ela exigiu, olhando para mim com ferocidade e eu hesitei, recuando um passo e lançando um olhar para o bebê e depois para ela.

– Eu não sei...

– Como assim não sabe? Você sempre foi o primeiro a incentivar a ideia de atirar primeiro e perguntar depois. - ela guinchou de ultraje.

– Mika, é um bebê. - foi a coisa errada a se dizer pois ela praticamente sibilou para mim e quase esperei por uma língua bifurcada aparecer. Minha irmã estava irritada. Não sei se era pela situação ou pelo sono por ter sido convocada para lutar contra demônios no meio da madrugada.

– Você não pode estar falando sério. - suspirei diante da indignação dela.

– Olha – comecei a explicar. - em outros dias eu concordaria com você sem hesitar, mas acho que o meu “instinto materno” finalmente aflorou. Eu vou ser pai, Mika. Nunca vou conseguir viver comigo mesmo com esse peso na consciência. E olhe para ele. - apontei para o bebê no cercado que sacudia o chocalho e ria, alheio aos conflitos que estava criando entre nós. - Como você pode querer extingui-lo?

– Tatsuha, esqueça que aquilo é um bebê. É um demônio! - Mika soltou exasperada.

– Talvez eu esteja sendo imparcial por causa da minha escolha de carreira. - anos em uma faculdade de Psicologia me deixou mais filosófico em relação a vida. - Mas ainda sim acredito que a genética não supera a criação. O filho de um assassino criado em um ambiente familiar estável não irá se tornar assassino só porque o pai ou mãe biológicos eram.

– Odeio o fato de você ter ido para a faculdade. - ela resmungou e eu quis rir.

A minha ideia não era ir para a faculdade, apenas me formar no segundo grau. O meu destino estava selado. A minha educação religiosa completa, havia anos que eu administrava sozinho o templo da família e era o responsável por ele. Mas Mika insistiu. Disse que nenhum Uesugi ficaria sem educação superior. Ela era formada em Artes, Eiri em Literatura, eu tinha que fazer alguma coisa da vida. E embora eu tenha insistido que as finanças do templo não conseguiriam bancar um curso superior, perdi o argumento pelo simples fato de que Mika falou que ela iria ajudar.

Ela, Eiri e Tohma. Até mesmo Ryuichi se ofereceu para cobrir os meus gastos estudantis. Ter parentes e namorado ricos tinha as suas vantagens. E, no fim, fui enviado para a faculdade com a ideia de cursar Psicologia pois era um curso que seria útil no meu trabalho no templo. E agora estava sendo útil para tentar convencer a minha irmã de que não, eu não iria extinguir um bebê. Não tinha sangue frio para tanto.

– Eiri! Eiri pode sentir se ele é bom ou ruim. - Eiri me olhou com uma cara de quem não gostou nada de ter sido puxado para o meio da briga e eu só o mirei de volta em expectativa. Com um bufo e um rolar de olhos, ele aproximou-se do cercadinho e encarou o bebê por um minuto antes de voltar-se para nós.

– Nada! Não capto nada. Nem bom, nem ruim. - nos disse.

– Viu? - falei triunfante. - É uma massa a ser moldada.

– Eu ainda não estou convencida. - Mika, a senhora que precisa ter a última palavra sempre. - Vou falar com os Anciões sobre qual é a política deles em relação a isso. - e com isto ela orbitou.

Soltei um suspiro cansado, sentando em uma das cadeiras que enfeitava o solário. As minhas costas doíam, assim como os meus tornozelos. O bebê não parava de mudar de posição e eu estava com sono. Fazia alguns dias que essa criança não me deixava dormir direito.

Senti uma mão em meu ombro e dei um pulo de susto e olhei com olhos largos para Eiri. Ele tinha uma expressão preocupada no rosto, coisa rara de ser ver, e para acalmá-lo lhe dei um sorriso cansado. Sei que ele deveria estar captando a minha exaustão, mas não é como se ele pudesse fazer alguma coisa sobre isto. O curandeiro que acompanhava a minha gestação, um dragão de um clã do norte do Japão com formação tanto em medicina mortal quanto mágica, me disse que os meus sintomas de gravidez seriam iguais aos de uma gravidez normal e indicou vários livros e sites que eu pudesse pesquisar. Logo, ainda tinha alguns meses de sofrimento pela frente.

O bebê fez um som de uma criança que tinha acabado de descobrir algo novo e automaticamente os meus olhos foram para ele. Sorri, um sorriso que ele me retribuiu antes de bruxulear para fora do cercadinho e diretamente para o meu colo.

– Agora ele está se apegando a você também. Não creio que isto seja bom. - Eiri falou enquanto olhava desconfiado para o bebê no meu colo, como se esperasse que ele soltasse bolas de fogo do nada. - Eu vou ver no Livro das Sombras de onde ele vem. - e praticamente correu escada acima para o sótão.

O som do chocalho me fez olhar para o pequeno ser em meus braços. Ele era particularmente energético para uma criatura que a esta hora deveria estar navegando no mundo dos sonhos. Mas talvez isto fosse coisa de bebês: trocar a noite pelo dia e torturar os pais no processo.

– Você é realmente muito fofo. - não pude deixar de repetir enquanto o erguia no meu colo e o abraçava contra o meu peito. Ele gorgolejou feliz e bateu de leve com o chocalho em meu queixo, como se concordasse com o meu elogio. Outro sorriso imbecil brotou em meu rosto e não pude deixar de pensar que eu queria que o meu bebê fosse assim: fofo e feliz. E que herdasse os olhos de Ryuichi. Isto era um fator importante.

Eu amava os olhos de Ryuichi e gostaria de vê-los todos os dias no rosto do nosso filho ou filha.

Me levantei da cadeira, indo até o cercadinho e o colocando lá. Mas assim que me endireitei, ele bruxuleou de novo para os meus braços. Acho que Eiri tinha razão, ele estava se apegando muito rápido a mim.

– Hei, encontrei o demônio. - Eiri disse enquanto terminava de descer as escadas com o Livro aberto nos braços e entrava no solário. - Manticores são demônios de aparência reptiliana, de nível superior e com força e velocidade sobre-humana. Possuem um grito que atrai outros de sua espécia, as suas garras são venenosas e costumam viajar em bandos. - ele fechou o Livro em um estalo e lançou um olhar de desagrado para o bebê no meu colo. - Ótimo! Isto quer dizer que provavelmente teremos visita em breve.

– Eles podem ser destruídos?

– Sendo de nível superior? Creio que vamos precisar de uma poção bem poderosa.

– Hum... Eu conheço uma. - havia criado uma anos atrás quando enfrentamos o Caçador. O sujeito só precisava de uma poção abençoada mas, na época, a minha vontade de proteger Ryuichi era tão grande que talvez eu tenha colocado mais potência de fogo que o necessário na poção.

Agora a usava como poção base para qualquer demônio mais difícil de extinguir que encontrávamos.

Segui caminho pelas escadas e corredores, com Eiri em meu encalço, e entrei no sótão indo em direção a mesa onde mantínhamos o caldeirão para poções feitas a frio (sem a necessidade de cozimento).

– Eu dou as instruções, você faz a poção.

– Não é melhor você me dar o bebê e fazer a poção? Afinal, você é o especialista. - tecnicamente Eiri estava certo. Poções eram a minha especialidade. Eiri era bom nos feitiços de improviso. Mika sempre foi a garota da ação, do planejamento, a que pesava tudo racionalmente e bolava as táticas de ataque.

– Eu tenho a sensação de que não será uma boa ideia. - respondi. Toda vez que coloquei o bebê no cercadinho ele bruxuleou de volta para os meu braços. Logo, não estava a fim de descobrir o que ele faria se eu tentasse entregá-lo para outro. Além do mais, ele estava confortável comigo e eu com ele.

Eiri somente franziu as sobrancelhas, mas não protestou mais, indo até o caldeirão e começando a colocar os ingredientes a medida em que eu ia listando-os.

– Okay! - Mika disse antes mesmo de terminar de tomar uma forma mais corpórea no sótão. - Os Anciões disseram que se não conseguirmos devolvê-lo ao bando que é para destruí-lo. - arregalei os olhos e apertei mais o bebê contra o meu peito como se isso fosse protegê-lo da ideia louca dos Anciões. Destruí-lo uma ova! Ninguém tocaria em um fio ralo da cabecinha dele.

Uma explosão me fez dar um pulo no lugar, pronto para lutar e defender a criaturinha em meus braços, mas logo relaxei ao perceber que era apenas Eiri adicionando o último ingrediente à poção antes de colocá-la nos frascos.

– Tatsuha, nós não podemos ficar com ele e ele é o demônio. - Mika novamente voltou a ladainha de mais cedo.

– Não necessariamente. Eiri disse que não captou nada dele.

– Isso não significa que podemos soltá-lo na sociedade como se ele fosse um humano comum! - ela protestou enquanto aceitava de Eiri um frasco de poção.

– Talvez nós possamos. - rebati quando uma ideia louca surgiu na minha mente. - Se selarmos os poderes dele, ele vai crescer como uma criança normal.

– Selar os poderes dele? - Mika falou em um tom de dúvida e pude perceber que aos poucos estava conseguindo convencê-la.

– A avó de Ryuichi fez isto com ele.

– O que não adiantou muita coisa. - Eiri disse com deboche.

– Sim. Mas isto aconteceu porque Ryuichi desfez o selo acidentalmente. Ele me disse que se não tivesse lido o feitiço, o selo nunca teria sido desfeito. Era poderoso demais para durar até depois da morte da avó dele, aquela que o colocou. E nós somos os Encantados, acho que podemos fazer algo desse nível também. - olhei para os meus irmãos em expectativa e Eiri deu de ombros.

– É uma ideia válida. Mas você esqueceu um fato querido irmão: como vamos entregar o bebê as autoridades se ele não desgruda de você? - me disse e eu olhei para o bebê nos meus braços e que me olhava de volta com curiosidade infantil.

– Isto é fácil de resolver. - Mika veio a mim em passos decididos e tirou a criança dos meus braços, o que me fez sentir vazio repentinamente.

O problema é que assim que ele foi para o colo de Mika, o sorriso dele se desfez e logo o rostinho rechonchudo retorceu no que prometia ser uma bela crise de choro. E não deu outra. Logo os olhos azuis se encheram de lágrimas e ele começou a chorar. Um choro que no meio do caminho se converteu em um grito agudo ensurdecedor, como uma sirene com defeito.

– Mika! Me dê ele de volta! - foi o que ela fez no segundo que manticores surgiram no sótão.



Mika


Eu estava começando a odiar este bebê. O bebê e essas manticores que apareciam do nada e nos arremessavam sobre móveis velhos antes que pudéssemos atingi-las com o frasco de poção.

Engoli um gemido, sentindo o meu corpo protestar todo de dor. Vantagens e desvantagens de ser metade anjo da guarda? Vantagem: podia curar os meus irmãos e portanto não me preocupar com desculpas para dar no hospital. Desvantagem: não podia me curar. Mas vamos esquecer este detalhe por um momento. Porque, agora, o problema era outro.

Devido aos anos de experiência em ataques, rapidamente ignorei a dor em meu corpo e o zumbido em meus ouvidos. Nunca era bom ficar perdendo tempo se preocupando com isto, poderia ser um tempo precioso, aquele segundo que nos separa da vitória ou da derrota. Além do mais, vivíamos movidos a adrenalina e esta, nestas situações, era ótima para gerar reações rápidas. Por isso, logo que caí sobre o móvel, quebrando mais uma relíquia de família, levantei a cabeça rapidamente para ver Tatsuha recuar com o bebê no colo enquanto as manticores sibilavam para ele, como se decidindo o que fazer.

– Eiri! - chamei ao vê-lo grunhir ao meu lado e começar a se erguer. - A poção. - e indiquei com a cabeça o frasco mais próximo de nós. Frasco este que ele pegou e arremessou na manticore mais próxima, a desfazendo em pó.

Isso chamou a atenção das outras que viraram-se para nós com sibilos e um brilho assassino em seus olhos reptilianos. Eiri e eu tentamos nos levantar o mais rápido possível, mas os restos mortais da mesa sobre a qual caímos e os nossos músculos tensos, estavam tornando o processo mais lendo do que gostaríamos. E então, quando pensei que a coisa não poderia piorar, outro demônio surgiu no sótão.

Não era do bando das manticores, isto era claro. Era grandalhão e o rosto de cor acinzentada e quase humano estava marcado por cicatrizes. Usava trapos remendados como roupa, tinha uma deformação enorme nas costas, na altura das omoplatas, e não parecia ser um grande fã das manticores como nós.

Como percebi isto? Pelo fato de que ele matou uma delas atravessando-lhe o peito com as suas garras enquanto a outra resolveu bater em retirada.

– MIKA! - Tatsuha gritou quando a “besta” virou-se na direção dele e eu reagi rápido, estendendo os braços e invocando o bebê, o orbitando para mim. Com as mãos livres Tatsuha tentou explodir a criatura, mas essa nem se abalou. Na verdade, ele deu as costas ao meu irmão e veio em nossa direção.

Mais uma vez reagi rápido e sem pensar duas vezes entreguei o bebê à Eiri e convoquei um círculo de cristais entorno do meu irmão, criando uma poderosa barreira de proteção que conseguiu manter a criatura afastada. Troquei um olhar com Eiri quando a Besta rosnou enfurecida, tentando quebrar o círculo e isto pareceu enfurecer Tatsuha que voltou a atacar o demônio sem perdão.

Realmente o tal do instinto materno, paterno, o que fosse, tinha despertado com vontade no meu irmão. Pena que não funcionou, apenas enfureceu o demônio mais ainda e eu piorei a situação quando tentei jogar a poção sobre ele somente para ver o frasco ser segurado pelas enormes garras, antes de ser arremessada de novo além do sótão. Grunhi e ergui os olhos para ver uma cena que fez o meu coração vir à boca:

Quando a Besta veio em minha direção, com certeza na intenção de terminar o que começou, Tatsuha a atacou novamente. E então ele bruxuleou, desaparecendo por um segundo e por um momento achei que ele tinha desistido, até que ele surgiu atrás do meu irmão, o abraçou com força e desapareceu com ele, deixando como última imagem na minha mente o rosto apavorado de Tatsuha.

– Acho que Sakuma não vai gostar de saber disso. - ouvi Eiri dizer, ainda dentro da barreira de cristais e com o bebê rindo e gorgolejando em seus braços, e soltei outro grunhido.

Eu estava realmente começando a odiar essa criança.







Tatsuha


Eu já fui mordido por demônio, arranhado, quebrado, seduzido, apanhado, transformado e até mesmo sequestrado. Mas era a primeira vez que era levado por um demônio cujo esconderijo parecia-se muito com uma casa de subúrbio transformada em um depósito de entulho. E eu que pensava que o sótão da minha casa era uma bagunça.

E agora aqui estava eu: amarrado a uma viga de madeira em meio a uma zona que pareceu ter sido criada por um tornado, sem ideia alguma de onde estava o meu captor.

Vamos deixar uma coisa clara aqui: eu não tinha medo de demônios. Uma relutância natural em permanecer no mesmo ambiente que eles, isso eu tinha. Se chama instinto de sobrevivência. Eu não tinha medo de morrer mas, como qualquer outro ser humano, esperava não encontrar o meu fim tão cedo. Queria morrer velhinho ao lado de Ryuichi e cercado de netinhos. Pode parecer um sonho piegas, mas para quem arrisca a vida todos os dias, para mim era mais do que justo.

Meu problema era que eu tinha sido sequestrado por um demônio, estava em sua toca, corria risco de vida e não estava sozinho nesta enrascada. Eu tinha um cúmplice. Um que parou de se mexer e chutar dentro da minha barriga como se tivesse pressentido o perigo. Alguém por quem o meu coração batia de pavor e me fazia tremer só de pensar se alguma coisa acontecesse com ele.

Um vulto passou pela porta, tirando a minha concentração do fato de que tentava soltar as minhas amarras.

– Olá? - chamei quando vi novamente o movimento. - Tem alguém aí? - é uma pergunta clichê e idiota que fazia meu irmão e eu zombarmos das mocinhas dos filmes de suspense. Afinal, o assassino nunca iria responder. Mas, no momento, era melhor do que este silêncio opressor e eu estava longe de ser uma mocinha indefesa.

Ouvi um grunhido, ou foi um rosnado? O que seja, e uma sombra aparecer perto do batente da porta.

– Sabe, se está tentando me assustar, não vai conseguir. Já vi coisas piores. - e eu não estava mentindo. Teve esse demônio que uma vez enfrentamos que ele expelia uma substância melequenta dos seus poros que era um nojo só.

– Eu quero a criança. - olha só, ele fala!

– Hunf, tá. Vai ficar querendo. - o vi se mover, entrar no quarto, sala, sei lá que aposento era este, mas as sombras ainda me impediam de vê-lo melhor e quando ele nos atacou na mansão eu estava ocupado demais tentando proteger o bebê para me atentar a qualquer detalhe. Mas as feições dele não pareciam com as das manticores. Aliás, acho que elas nem sabiam falar. - Você não é uma manticore, não é? - ele se escondeu atrás de uma estante capenga.

– Como você conseguiu tirar a criança da mãe dele?

– Meus irmãos e eu a derrotamos.

– Você não faz ideia do problema que arrumou.

– Talvez em faça. - debochei, mantendo a conversa para distraí-lo do fato de que eu estava quase conseguindo me soltar.

– Eu só quero a criança e ninguém se machuca.

– Hunf, como se eu fosse entregá-la à você para ser o seu lanchinho da tarde. - ele rosnou para mim, dando um passo à frente bem na direção de um feixe de luz, mostrando dentes desiguais e pontiagudos, como se isso fosse realmente me assustar.

– Então você vai morrer. - me ameaçou e eu quis rir, mas estava ocupado demais em me soltar e acho que já era na hora de sair daqui.

Com uma pequena descarga dos meus poderes, arrebentei as cordas e mirei as minhas mãos na direção dele.

– Vai sonhando. - e disparei, acertando a parede atrás do demônio, o fazendo se encolher em busca de proteção e enquanto poeira voava para todos os lados, eu saía correndo dali em direção a porta de entrada, apenas para ser arremessado contra a parede oposta quando uma barreira mágica me impediu de abri-la.

Merda! Detestava quando isso acontecia.

Não fiquei muito tempo ali contemplando a minha vida, apenas dei meia volta e tomei outro caminho entre a zona que estava aquele lugar, encontrando uma porta e entrando no que me pareceu ser um quarto. Se o colchão sobre a cama quebrada, a pilha de roupas e os móveis revirados fossem alguma indicação. Passei por trás de uma cômoda e me agachei, a usando como escudo, sentindo algo que pareceu ser vidro estalar sob a sola do meu tênis.

Era uma moldura com uma foto de um homem de cabelos negros e grandes e familiares olhos azuis e, mais a frente de onde encontrei a moldura, havia um chocalho com peças coloridas. Um brinquedo de bebê.

Arregalei os olhos quando uma sombra caiu sobre mim e engoli um grito quando senti garras fecharem em meus ombros, alguém me virar bruscamente e me arremessar contra uma parede. Ótimo, como se eu já não estivesse dolorido o suficiente.

– Você não deveria ter feito isto. - a Besta praticamente baforou na minha cara e eu ri zombeteiro para ele.

– O que você faz com isto? - perguntei, erguendo o brinquedo na altura dos olhos dele. Era muito estranho um demônio estar atrás de um bebê. Mais estranho ainda era ele manter em seu covil brinquedos para entreter a criança.

A pergunta parece que não agradou muito, percebi isto quando fui arremessado sobre o colchão da cama quebrada.

– Você quer morrer?! - ele praticamente rosnou e eu franzi a testa. Havia alguma coisa errada nesta história toda.

– E o que você está esperando? Me mata! Vamos! - sei que não era uma boa ideia provocá-lo, ou lhe dar ideias, mas quando um demônio capturava um Encantado, ainda mais um Encantado carregando a prole do último Dragão do Tempo, ele não ficava hesitando em matar a sua presa. Não como este está hesitando.

– Eu posso fazer pior. Eu posso mantê-lo aqui. Você e esse... - ele apontou para a minha barriga. Como ele tinha deduzido que o que tinha aqui dentro era uma criança e não um sério caso de gases, eu não sei. Mas acho que ele deveria sentir a magia que ela emanava, como o restante da comunidade mágica sentiu no momento em que ela foi concebida. - posso mantê-los aqui e depois separá-los. Você nunca mais veria o seu filho, a sua família, o que acha?

Agora foi a minha vez de rosnar para ele. Como ele ousava me ameaçar? Mas antes que eu pudesse estourar a cara feia dele, ele desapareceu.

Eu detestava a minha vida. Pensei quando o meu estômago roncou de fome e eu vi através do vidro sujo da janela que claridade começava a invadir o quarto. Ótimo, além de faminto, mais uma noite em claro. Eu ia matar Ryuichi quando voltasse para casa. Se eu voltasse para casa.

Deixei o meu corpo cair sobre o colchão, pensando se seria uma boa ideia tirar um cochilo que fosse, mas a tensão da situação não me permitia relaxar em nada. Com isto, finalmente me levantei e retornei a porta de entrada. Não acredito que a casa inteira esteja embarreirada. O lugar parecia grande o bastante e lugares grandes eram difíceis de envolver em barreiras mágicas. Eu sei. Já tentei algumas vezes com a mansão, sem sucesso. Mas janelas e portas eram mais fáceis de proteger.

Com isto em mente, comecei a disparar contra a porta, com os meus poderes se chocando contra a barreira, mas isso não me desencorajou. Ao contrário, apenas me incentivou a continuar até que no décimo disparo ocorreu um estouro mais forte seguido de um brilho azulado que logo desapareceu e eu pude sentir a energia esvaindo com ele.

Cautelosamente levei a mão a maçaneta e quando não fui repelido, sorri pela minha vitória e abri a porta, apenas para ser cumprimentado por algo que não se via todos os dias:

Uma rua, casas de muros baixos e com jardins e um ou outro humano recolhendo o jornal matinal de frente do portão.

Fechei a porta rapidamente. A cena apenas confirmou o que eu já desconfiava: aquele demônio não era comum.

Recuei um passo e ouvi um grunhido vir de dentro da casa. Hesitei, olhando da porta para o corredor que sumia casa adentro e do corredor para a porta e sabia que iria me arrepender mais tarde, mas que se dane. Dei meia volta e retornei para o quarto para ver a Besta colocar o bebê delicadamente sobre o colchão enquanto murmurava:

– Você está seguro agora. Está seguro.

– Sabe, ele também estava seguro conosco. - falei, cruzando os braços sobre o peito.

– Por que não foi embora quando teve a chance?

– Fiquei curioso. Grande defeito meu. Então, vai me dizer o que está acontecendo? - ele me olhou feio e eu só arqueei as sobrancelhas, ainda mais que vi uma mancha de sangue nas costas dele. - Isso aí parece feio. Onde fica o banheiro? - não esperei ele me responder. - Pode deixar que eu acho. - e parti a procura do banheiro, o achando mais rápido do que imaginei.

O lugar, como o resto da casa, não estava nas melhores condições. A cortina do boxe estava rasgada, a banheira lascada, o espelho no armário sobre a pia só tinha um caco. A pia em si só se mantinha em pé porque o cano da torneira a estava segurando e o vaso sanitário... Bem, esse não mais existia.

Mas ao menos eu encontrei uma toalha razoavelmente limpa e um frasco de peróxido de hidrogênio. Ao menos eu esperava que fosse peróxido. Estava junto com alguns produtos médicos, então resolvi arriscar.

Retornei ao quarto e recebi um olhar descrente da Besta que sem dizer nada puxou duas cadeiras para nós. Devo confessar que este era o demônio mais esquisito que eu já encontrei.

– Então, como isso aconteceu? - perguntei ao sentar na cadeira e abri o frasco, molhando a toalha com uma boa quantidade de peróxido.

– Seus irmãos. - engoli uma risada.

– Se eles usaram a poção que acho que eles usaram, você tem sorte de estar vivo. - ele somente grunhiu como resposta antes de soltar um rosnado quando coloquei a toalha sobre o seu ferimento, dando um pulo no lugar e praticamente se encolhendo todo. - Quer parar quieto? Que tipo de demônio é você que se acovarda diante do menor ferimento?

– Eu não sou um demônio! - recuei com as mãos erguidas em um gesto de paz diante da resposta irritada dele.

– Bem – coloquei a toalha de volta sobre o ferimento e desta vez ele ficou quieto. - se você não é um demônio, o que você é? - silêncio. - Eu vi uma foto de um homem mais cedo...

– Eu sei o que você está pensando. Que eu devo ter sido amaldiçoado ou coisa e tal.

– E não foi?

– Não. Eu fiz isso comigo mesmo. Manticores gostam de cruzar com humanos para terem filhotes que possam passar despercebidos pela sociedade. Quando a concepção é realizada, elas matam os parceiros e ficam com os bebês. Eu tive sorte, consegui fugir. - eu não tive tanta sorte quando a minha imaginação fértil resolveu me assolar com a logística da situação. Manticore não era um demônio visivelmente atraente, então como... Argh, melhor nem pensar. - Mas não pude pensar em deixá-lo lá com aqueles monstros. - nós dois lançamos ao mesmo tempo um olhar para o bebê quase adormecido entre almofadas e lençóis.

– Como? Quero dizer... Como você conseguiu isto?

– Fui misturando poções até que o resultado foi este. Eu precisava ser forte o suficiente para poder resgatá-lo. - retirei a toalha do calombo que era as costas dele, a molhando mais um pouco no antisséptico.

– Eu queria ter essa sua convicção. - murmurei e ele virou sobre a cadeira para me olhar com uma expressão confusa. - Você parece tão certo em ser pai a ponto de fazer isso consigo mesmo para resgatar o seu filho.

– E você não? - acho que se ele tivesse sobrancelha, a mesma estaria erguida em minha direção. Os seus olhos de íris opacas foram para a minha barriga e depois voltaram para o meu rosto e eu encolhi os ombros.

– É, isto não é um caso agudo de gases ou barriga de cerveja. - tentei fazer uma piada, mas sem sucesso.

– Quando andei pelo submundo a procura de pistas do meu filho eu ouvi os boatos. Um dos Encantados, o irmão mais novo, carregava no ventre a cria do último Dragão do Tempo. Achei ser bobagem, loucura dos demônios, até te conhecer. Mas eu pensei que pelas histórias que ouvi sobre você e a sua família que a criança seria bem vinda. - era só o que eu precisava: o olhar de reprovação de um demônio. Não, humano, o Corcunda de Notre Dame, o que fosse.

– Ele é bem vindo. Claro que é! Só que até ontem a minha maior preocupação era dividir o meu tempo entre a faculdade, magia e administrar o templo. Agora eu vou ser pai. Eu só tenho vinte e dois anos, eu não sei como ser pai.

– Ninguém sabe, mas você aprende. Me diz uma coisa: você ama essa criança? - comprimi os lábios e automaticamente pousei uma mão sobre a minha barriga e senti o bebê se mover respondendo ao meu toque. Se eu o amava? Fechei os olhos por um momento, pensando na minha vida antes e depois deste bebê e como, agora, todos os meus planos para o futuro o envolvia e em como eu não conseguia mais imaginar a minha vida sem ele.

Então sim, eu o amava.

– Aí está a sua resposta. Parta do amor e o resto vem com o tempo. - ri.

– Eu não acredito que estou recebendo conselhos de um demônio.

– Eu não sou um demônio! - rosnou para mim.

– Desculpe, desculpe. - coloquei a toalha de volta no ferimento que estava começando a me preocupar. - O sangramento não quer parar. Talvez fosse melhor voltarmos para a minha casa. Meus irmãos e eu podemos reverter o que você fez para assim curá-lo.

– Não! - ele se levantou de supetão, me pegando de surpresa. - Não há como reverter o que eu fiz, a não ser que eu morra.

– Então, como você pretendia criar o seu filho?

– Não tinha pensado tão longe, estava apenas concentrado em salvá-lo.

– Ainda sim acho melhor... - mas a manifestação da minha opinião foi interrompida pelo aparecimento dos meus irmãos.

Pulei fora da cadeira, largando vidro de remédio e toalhas no chão e reagi rápido, explodindo os frascos de poções que eles arremessaram contra a Besta.

– Tatsuha, o que você... - Mika me olhou com olhos largos, sem entender, e eu iria respondê-la quando duas manticores apareceram do meu lado, me seguraram uma em cada braço e me levaram com a sua supervelocidade até os meus irmãos.

– Hei! - protestei quando já estava entre Mika e Eiri e quis ir até a Besta quando o vi ser encurralado pelas manticores. Entretanto, já era tarde pois Mika nos orbitou para fora dali. - Não... Não! Me leve de volta! - falei assim que nos materializamos no solário.

– Não! Tivemos trabalho em fazer aquele acordo com as manticores para te resgatar. Não vamos voltar lá. - Eiri reclamou.

– Vocês não estão entendendo! A Besta não é um demônio, é um Inocente! Me leve de volta! - Eiri e Mika me olharam estranho, mas eu estava pouco me importando e exalei longamente quando vi o mundo a minha volta desaparecer em orbes azulados e reaparecer em uma casa bagunçada.

Rodei os meus olhos por todos os cantos do quarto até que achei quem eu queria. A Besta estava caída perto da cômoda que usei para me esconder mais cedo, completamente ferida e gemendo e grunhindo de dor. E, obviamente, que sobre o colchão não havia mais bebê. Me aproximei dele e ajoelhei-me na sua frente, hesitante em tocá-lo. A aparência dele não era boa e a gravidade dos seus ferimentos ficou nítida quando num flash de luz a forma demoníaca dele sumiu para ceder lugar a forma humana. Ao homem que eu vi no retrato mais cedo.

– Mika! Cura! - eu sei que ele tinha dito que o feitiço só seria anulado quando morresse, mas, talvez, nós tivéssemos sorte.

Soltei um suspiro de alívio quando vi que tivemos, pois o brilho dourado familiar da cura foi emitido pelas mãos de Mika e pouco a pouco os ferimentos foram se fechando no corpo dele até sumirem totalmente e ele abrir os olhos, mirando grandes íris azuladas em mim.

– Obrigado. - a voz dele era suave, diferente da rosnada que a sua forma bestial tinha, portanto levou uns segundos para eu associar aquela criatura horrorosa a este homem de expressão tão inofensiva.

– Não nos agradeça ainda. Eles levaram o bebê. - resmunguei.

– Você não está pensando... - Eiri me olhou como se eu tivesse enlouquecido. - Eu sabia! O bebê está ficando com a maior parte dos seus neurônios. Sério mesmo Tatsuha? - reclamou e eu dei uma careta infantil para ele.

– Menos reclamação e mais orbitação. Precisamos de poções e um plano. Vamos, vamos, vamos. - Mika rolou os olhos e estendeu as mãos. Logo formamos um círculo e orbitamos para o sótão da mansão.

– Ainda sobrou bastante poção. Vou encher alguns frascos. - ela disse assim que materializamos no sótão e foi até o caldeirão parcialmente cheio com poção.

– Vocês sabem onde encontraremos as manticores? - perguntei e foi Eiri quem me respondeu.

– Encontramos o ninho delas mais cedo, foi assim que barganhamos a ajuda delas para te salvar. E agora vamos ao resgate de novo. Se eu soubesse que aquela minha visão daria tanto problema, teria a ignorado.

– Tá, acredita nisso que é bacana. - zombei. Eiri nunca ignorava uma visão. Ele poderia bancar o bastardo frígido, mas ainda não era sem coração. Afinal, ele era um empata.

– Vidros cheios! - Mika declarou e eu fui até a Besta, quero dizer, ex-Besta, e o envolvi em uma barreira de cristais.

– Melhor prevenir do que remediar. - expliquei quando ele me olhou com uma expressão curiosa diante do que eu estava fazendo. Se alguma manticore aparecesse enquanto estivéssemos atacando o ninho delas, ao menos ele estaria protegido. - Vamos. - declarei enquanto pegava alguns frascos de poção com Eiri e logo orbitamos para o submundo, para trás de uma grande pedra dentro do ninho.

– E agora? - Mika sussurrou para mim e eu me inclinei um pouco para ver além da pedra para dentro do ninho.

– Eu o vejo. - o bebê estava sentado em uma trouxa de pano, circundado por umas cinco manticores adormecidas.

– Como vamos tirá-lo de lá? Ele ainda é meio demônio, a poção vai afetá-lo se o atingir. - Eiri falou bem próximo ao meu ouvido e eu entreguei para ele dois frascos, ficando somente com um na mão e saí um pouco mais do esconderijo atrás da pedra. - Tatsuha, o que você está fazendo?

– Shh... Não vamos acordá-las. - comecei a fazer gestos suaves com a mão, tentando chamar a atenção do bebê, até que vi os grandes olhos azuis dele se viraram na minha direção. - Quem é o bebê mais lindo que eu já vi? - falei baixinho e ele pareceu ouvir, porque riu para mim. - Vem para o tio Tatsuha, neném. - ignorei os olhares de Mika e Eiri. Eu sei que estava sendo ridículo falando em “bebenês”, mas era o melhor plano que eu tinha no momento. - Heim? Vem para o tio Tatsuha. - repeti e encolhi os ombros quando ele soltou um ruído que praticamente ecoou como um grito na caverna.

– Tatsuha... - Mika sibilou ao meu lado, mas eu não precisava do aviso dela para ver que as manticores estavam acordando.

– Vem para o tio Tatsuha. - chamei de novo, com um sorriso enorme no rosto, um sorriso convidativo, e ele riu para mim antes de finalmente bruxulear para o meu colo. E quando ele apareceu nos meus braços é que a coisa ficou feia.

As manticores acordaram por completo e logo perceberam a ausência de um certo pequeno ser entre elas, mas não esperamos que elas reagissem e logo começamos a arremessar as poções sobre elas, explodindo uma a uma até não sobrar nada mais que cinzas dentro daquela caverna.

– Ufa! Essa foi por pouco. - e eu não precisei dizer nada para Mika nos orbitar de volta para casa.

Quando chegamos, pude perceber que o nosso esforço valeu a pena, pois o olhar no rosto da ex-Besta foi tão iluminado, o sorriso dele continha tanta alegria quando nos viu com o seu bebê, que eu pensei: que bom que eu fui contra em extinguir essa gracinha.

– Eiri... - soltei um pigarro. - Por que não leva o... - olhei para o homem que Mika terminava de soltar da barreira de cristais e ele sorriu para mim, compreendendo a minha confusão.

– Dan. Meu nome é Dan. - esclareceu.

– Dan para trocar de roupa, acho que alguma das minhas antigas roupas deve caber nele. - Eiri me olhou estranho, mas eu desviei o olhar do rosto dele enquanto o via guiar Dan para o andar de baixo, para o meu quarto.

– Tatsuha... - Mika me chamou, mas eu dei as costas para ela, saindo do sótão e a ignorando por completo, descendo as escadas e tomando o caminho do berçário, logo colocando o bebê sobre o trocador.

Ele riu para mim, um riso sem dentes e que iluminou os seus olhos e eu sorri de volta enquanto recolhia uma das três bolsas de bebê que possuía e comecei a enchê-la com algumas mudas de roupas e um ou outro brinquedo. Ter família rica tinha as suas vantagens e desvantagens e a vantagem no momento era que o meu filho tinha ganhado tanta coisa do pai e tios que eu poderia me dar ao luxo de doar algumas peças.

Quando terminei, me inclinei sobre o trocador e acariciei os ralos cabelos claros do bebê.

– Vou sentir a sua falta pequenino. - murmurei para ele e inspirei profundamente para engolir o choro que ameaçava surgir. Malditos hormônios.

– Eu nunca saberei como agradecer o que vocês fizeram por mim. - me endireitei e vi Dan parado sob o batente da porta vestindo algumas das minhas roupas.

– Apenas... cuide bem dele. - respondi enquanto pegava o bebê no colo e o vi sibilar aquela língua bifurcada dele. - Sabe... Nós podemos selar os poderes dele. - ofereci e Dan deu uma negativa de cabeça.

– Ele é um bom menino, só tenho que garantir que ele permaneça assim.

– Então eu fico tranquilo. - estendi para ele a bolsa de bebê e Dan me olhou com hesitação.

– Acho que não precisava, vocês já fizeram tanto... - soltei uma risada de escárnio.

– Olhe para este quarto. - indiquei com a cabeça o quarto ao nosso redor. Cheio de móveis, brinquedos e qualquer outro badulaque provindo de lojas infantis. - Acho que o meu filho já tem o suficiente. Não vai fazer falta. - Dan riu e aceitou a bolsa e quando a pendurou no ombro eu estendi o bebê para ele, com muita relutância. Tinha me apegado ao pivete. - Eu sei o seu nome... Mas não sei o dele.

Dan olhou para o bebê que riu para o pai e depois para mim.

– Com toda essa confusão eu nem tinha pensado em um nome. Mas acho que Tatsuha cairia bem. Em homenagem a esse cara que eu conheci que me ajudou a recuperar o meu filho. - malditos hormônios me deixando emotivo. Porque era culpa deles eu estar chorando agora. - Você vai ser um bom pai, Tatsuha, eu tenho certeza disto.

E com essas palavras de incentivo ele se despediu, dando meia volta e levando o pequeno Tatsuha com ele enquanto eu ficava feito um otário parado no meio daquele quarto, chorando diante de tudo o que aconteceu. Um chute me fez dar um sorriso entre as lágrimas e eu coloquei a mão na minha barriga, sentindo outro chute sob a palma.

Eu ia ser um bom pai e tinha certeza de que os Antigos estavam me dando de presente um ótimo filho.


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