Forever Charmed escrita por Bella P


Capítulo 4
Nove Semanas




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/352683/chapter/4

A Bruxa do Mar Parte 1

Shuichi

Magia não existe, magia não existe. Era o que eu repetia para mim mesmo enquanto abraçava os meus joelhos e balançava o meu corpo para frente e para trás, mirando desfocado o poster do Nittle Grasper na parede do quarto.

- Nii-san? - ouvi a minha irmã me chamar, dando leve batidas na porta, mas a ignorei. A ignorei assim como vinha ignorando os meus pais nos últimos três dias. Tudo isto porque magia não existia. - Yuki-san no telefone. - o nome fez o meu coração dar um pulo no peito e eu fechei os olhos com força, sentindo as lágrimas rolarem pelas minhas bochechas mais uma vez.

Magia não existia. Repeti como um mantra mas, mesmo assim, a lembrança voltou à minha mente.

A bela mulher, a canção, nós dois desaparecendo em meio a fumaça e ela me empurrando contra uma cama. O surgimento de Yuki e o meu desespero, a minha vontade de dizer à ele que aquilo não era o que parecia ser, mas ele também estava em transe, me olhando com olhos desfocados e expressão distante. E então, o sussurro em meus ouvidos, a ordem, a canção que nublou todos os meus sentidos e quando dei por mim estava sobre Yuki, o pressionando contra a cama, o atacando, o esganando.

Fechei os dedos em meus cabelos e puxei os fios com força, ignorando a dor que surgiu em meu couro cabeludo.

As memórias eram um pesadelo que eu vivia tanto dormindo quanto acordado. Era só fechar os olhos para ver o rosto pálido do homem que eu amo perder ainda mais a cor à medida em que ele se debatia mais, tentando se livrar das minhas garras, tentando se livrar de mim enquanto eu somente observava como um expectador dentro do meu próprio corpo eu fazer aquelas barbaridades sem poder me controlar. As lágrimas quentes em minhas bochechas me lembravam as mesmas daquele dia, assim como me lembravam do meu pedido interno, desesperado, por ajuda.

E a ajuda veio na forma de Tatsuha e, surpreendentemente, de Ryuichi, com o primeiro pulando sobre mim e tentando me desvencilhar de Yuki e fracassando. Porque eu estava forte, subitamente forte o suficiente para subjugar dois irmãos que em bons dias poderiam me quebrar ao meio como um palito de dente. E a canção na minha mente continuava a tocar, me incitando a feri-los, me obrigando a fazer coisas das quais me arrependerei pelo resto da vida, até que, subitamente, tudo acabou. A canção se foi, Tatsuha não estava mais sobre mim, mas sim perto de Yuki, o ajudando a se recuperar do ataque, e Ryuichi encontrava-se do outro lado daquela estranha caverna com as mãos erguidas e próximo a um monte de cinzas.

- Melhor... Deixá-los conversar. - ouvi Tatsuha dizer, aproximando-se de Sakuma e lhe tocando o ombro.

- Melhor. - e com isto ambos desapareceram em pleno ar, para o meu completo horror. Horror não somente por ter visto algo incompreensível como também por ter sido deixado sozinho com Yuki.

- Shuichi. - a voz rouca dele me chamou mais uma vez, visto que na primeira tentativa eu o ignorei, com muito medo do que tinha feito para deixar que ele me tocasse, ou sequer dirigisse a palavra à mim. - Não foi sua culpa. - em um bom dia eu ficaria extasiado diante desse lado preocupado, desse lado carinhoso, tão raro de se ver em Yuki, mas este não era um bom dia. Aliás, havia se tornado um dia horrível porque eu não estava entendendo mais nada.

A minha cabeça girava, o meu coração pulava no peito enlouquecidamente, as lágrimas pareciam jamais cessar e a única coisa que ficava martelando na minha mente era que eu quase metei Yuki. Eu quase me transformei no monstro que Kitazawa foi.

- Não! - em um gesto brusco Yuki tinha se levantado daquela cama de panos e almofadas e vindo em minha direção com a mão erguida, mas eu recuei um passo ainda temeroso. - Você não é como ele Shuichi, jamais será como ele. - o olhar firme que ele me dava não era nada parecido com o olhar quase apagado de antes por causa da vida que esvaía pouco a pouco dele enquanto eu o enforcava com as minhas próprias mãos.

Minhas próprias mãos.

Olhei para as mencionadas que tremiam intensamente, como se as mesmas estivessem manchadas com o sangue de Yuki, mesmo que ele não tivesse nenhum ferimento visível e a única lembrança de nosso embate fosse a vermelhidão entorno de seu pescoço. Era a minha mente pregando peças, mas eu não conseguia evitar.

Eu tinha jurado a mim mesmo que sempre estaria ao lado dele, que o ajudaria a superar os seus traumas, não importava quanto tempo isso levasse, ou o quanto ele fosse indiferente comigo. As pessoas não entendiam, principalmente Ryuichi, o porquê de eu insistir em permanecer ao lado de Yuki se ele nunca era carinhoso ou delicado comigo. Mas eu não estava procurando carinho ou delicadeza. Se eu quisesse amor incondicional arrumava um cachorro. O que eu queria era aquele olhar que Yuki às vezes me lançava, aquele olhar de agradecimento por estar ao lado dele apesar de tudo.

O olhar que eu não receberia mais depois do que tinha acontecido.

- Talvez fosse melhor eu explicar - a voz dele, ainda rouca, o que me fez sentir ainda mais culpado, havia me tirado dos meus devaneios. - o que aconteceu. - explicar o que aconteceu? Como ele poderia explicar o que tinha acontecido se tudo estava claro como água diante dos meus olhos?

Mas então ele abriu a boca e começou a contar a história mais absurda que eu já tinha ouvido na vida.

A história que me trazia, agora, para o meu antigo quarto na casa dos meus pais enquanto eu me encolhia na escuridão deste, no canto da parede, me sacudindo feito um louco enquanto repetia incessantemente em minha mente:

Magia não existe!

- Sinto muito Yuki-san. - a voz da minha irmã do outro lado da porta chegou aos meus ouvidos mais uma vez. - Mas ele não pode atender no momento. - e quando ouvi os passos dela se afastando pelo corredor, enterrei o rosto entre os joelhos e continuei a repetir para mim mesmo até me convencer:

- Magia não existe.

Eiri

- Nada? - ergui os olhos da tela do meu celular para ver que Tatsuha estava parado sob o beiral de acesso a sala com um copo de sorvete nas mãos, e arqueei a sobrancelha.

- Me pergunto se a barriga que começo a ver sob a sua blusa é o bebê ou o sorvete que você não para de comer. - caçoei, vendo o olhar dele ir diretamente para a barriga ainda plana.

Depois de toda a confusão com a troca de poderes, a Sereia e tudo mais, Tatsuha aprendeu a aceitar o fato de que ele, agora, era um espécime raro da natureza graças a magia de velhos dragões intrometidos, o que melhorou consideravelmente o humor dele. Ryuichi também deixou de ser um covarde e agora estava mais presente, tornando-se um pai que mostrava ser a cada dia que passava super protetor e babão. Mika, logo que tudo se ajeitou, se enfiou no primeiro shopping para comprar coisas para o bebê e Tohma, ao saber da novidade, somente rolou os olhos, suspirou e soltou em um tom sofrido:

- Agora vou ter que arrumar um jeito de convencer a mídia que Ryuichi adotou um bebê que coincidentemente se parece com ele e Tatsuha sem possuir nenhuma relação genética.

- Mas ele tem relação genética conosco. - Ryuichi havia cometido a burrice de responder, somente para receber um olhar assassino de Tohma.

- Eu sei! - ele tinha rosnado para o imbecil. - Mas a mídia não pode saber. - e com isto havia dado as costas para Ryuichi, com certeza pensando alguns impropérios relacionados ao cantor, enquanto maquinava ideias de como iria abafar a gravidez de Tatsuha e o fato de que daqui a alguns meses o vocalista do Nittle Grasper teria um herdeiro.

- Também sinto o seu amor aniki. - Tatsuha rolou os olhos, vindo até o sofá onde eu estava e sentou-se ao meu lado. - Shuichi ainda está te ignorando?

Shuichi. Esta era outra questão que assolava a minha mente desde o incidente com a Sereia.

Shindou estava me ignorando sem nenhum pudor, traumatizado demais diante de tudo o que aconteceu para conseguir processar qualquer coisa que fosse de maneira racional. E eu não o culpava, não depois de ter captado remorso o suficiente emanando dele após o ataque. E, obviamente, diante de tudo o que ele passou, de tudo o que ele viu, tive que lhe contar a verdade. O que agora, pensando racionalmente, acho que não foi uma boa ideia.

Se Shuichi estava a um passo de surtar por causa da culpa de quase ter me matado, dizer à ele que eu era um bruxo, que meus irmãos eram bruxos e que a mulher que o enfeitiçou era um demônio, com certeza o pirou de vez porque logo depois de eu colocar o ponto final na minha história, ele arregalou mais ainda aqueles enormes olhos azuis e aos tropeços saiu correndo do covil da Sereia mais rápido do que o tempo que Ryuichi levou para explodi-la.

- Ruim assim, huh? - Tatsuha comentou, dando mais uma colherada no sorvete que, agora que eu percebi, tinha calda de chocolate o suficiente para causar cáries em metade da população do Japão.

- Não o culpo. - resmunguei, jogando o celular sobre a mesa de centro junto ao meu laptop onde o editor de texto estava aberto com o mouse piscando na tela e nenhuma palavra escrita. Minha inspiração estava realmente levando muito mais tempo do que o normal para voltar. Tatsuha permaneceu em silêncio, com a colher de sorvete presa entre os lábios e um olhar distante e pensativo. - O que foi? - perguntei, pois conhecia bem aquela expressão.

- Por que o Tohma não fala com ele? - soltei uma risada de escárnio diante da sugestão.

Tohma? Tohma, o mesmo que ameaçou Shuichi com as suas palavras de duplo sentido e discurso cheio de significados nas entrelinhas quando começamos as no relacionar e que vivia me dizendo, dia após dia, que me envolver com Shindou era má ideia? O mesmo Tohma que ainda diz que ficar com Shindou é má ideia?

- Você está de sacanagem comigo ou são os hormônios lhe subindo a cabeça? - recebi como resposta um salpico de sorvete de baunilha bem na bochecha. Meu irmão, que criatura madura, tinha pena da criança crescendo dentro dele.

- Eu só estou dizendo que Tohma já passou pelo que Shuichi passou: descobrir sobre a magia. Então ele pode dar umas orientações à ele.

- A diferença é que Mika contou para Tohma sobre magia em um lugar calmo e tranquilo, não depois que ele tentou matá-la sufocada por causa de um ataque de um demônio. - silêncio e Tatsuha franziu as sobrancelhas.

- É, isso pode traumatizar um pouco.

- Não, jura? - soltei com azedume. Claro que isso poderia traumatizar, ainda mais Shuichi que já era emocionalmente sensível.

- Ryuichi talvez? - eu queria socá-lo diante das sugestões tolas, mas não podia fazer isto sem correr o risco de ter um enorme dragão na minha cola tentando colocar fogo no meu traseiro. Sakuma parecia sentir quando Tatsuha estava em perigo e Mika e eu tínhamos a teoria de que eram os instintos “animais” dele que o fazia ter uma enorme ligação com o bebê que o meu irmão carregava, assim como perceber o perigo sobre este de antemão.

- Sakuma? Dragão enorme, cospe fogo e para o tempo. Esse Sakuma que você está sugerindo para ajudar o Shuichi a superar o trauma causado por magia?

- É, má ideia de novo. Estou entendendo onde você quer chegar. Mika então, fora de cogitação heim?

- Tatsuha! - rolei os olhos. Muitas pancadas na cabeça, essa era a única explicação para as ideias idiotas do meu irmão. Muitas pancadas na cabeça. Da próxima vez que um demônio atacar irei pedir para que ele maneire nos golpes na região do crânio, os mesmos não estavam fazendo bem a Tatsuha. - Eu sei que você tem que dividir os neurônios com esse bebê, mas acho que a criança está ficando com a maior parte! - ele fez um bico e vi as lágrimas familiares brotarem nos olhos escuros, o que me fez rolar os meus olhos.

- Eu só estava tentando ajudar. - choramingou e mais silêncio seguiu até que: - Que tal uma música, que nem daquela vez? - eu queria bater com a testa na quina da mesa na minha frente. Talvez uma concussão seria a solução para eu parar de ouvir tanta tolice.

- E você espera que eu diga o quê? “Desculpe por não ter te contado, ainda mais que você tentou me matar, mas sou um bruxo e nada entre nós precisa mudar”? - ele torceu o nariz e deu mais uma colherada no sorvete que já estava se tornando uma massa pastosa de baunilha com chocolate.

- Foi horrível. Eu não voltaria para você se cantasse isso pra mim. - jura genialidade? E mais silêncio, com cada um de nós ponderando as possibilidades. Ao menos acho que era isso que Tatsuha estava fazendo, isso ou a expressão pensativa dele poderia ser o que ele estava planejando cozinhar para o jantar.

- Me diz, quando você e Sakuma brigam – eu não acredito que estava pedindo conselhos ao meu irmão caçula. Isto é ir além do fundo do poço. - como vocês se entendem? - pergunta imbecil, atestei ao ver o sorriso safado no rosto de Tatsuha.

- Na cama. - arqueei as sobrancelhas.

- Na cama? Cada briga de vocês termina na cama? - impossível! Então eles viviam mais sobre um colchão transando enlouquecidamente do que fora dele. Porque eu preciso dizer que não existe casal mais controverso do que Ryuichi e Tatsuha.

Quando eles começaram a se relacionar eu cheguei a pensar que seria açúcar puro regado a mel, já que Tatsuha sempre foi fã árduo de Ryuichi e o mesmo tinha a mania de agir como uma criança retardada como parte da fantasia profissional criada para os fãs. Mas então eu descobri que Ryuichi Sakuma é temperamental como qualquer outro gênio, porque mesmo para mim ele sendo um idiota, não mudava o fato de que para a ciência ele ainda tinha um QI acima do normal, e junto com Tatsuha que sempre foi neurótico e impossível de lidar desde bebê, com certeza era um casal que estava fadado a fracassar.

O problema era que eles não fracassaram.

A personalidade forte que os dois tinham não era empecilho para eles se entenderem. Aliás, creio que por ambos serem teimosos é que eles se entendiam. Eram iguais por demais em certos aspectos e por isso se mereciam.

- Ou no sofá, no chuveiro, ou na superfície plana, horizontal ou vertical, mais próxima. A última briga foi porque o bebê trocou os nossos poderes, mas no fim resolvemos tudo mesmo...

- Deixe-me adivinhar: na cama.

- Sim.

- Meu irmão, o ninfomaníaco. Faz sentido, já que você namora um pedófilo. É o casal ternurinha.

- Ei! Ryuichi não é pedófilo!

- Ele é quinze anos mais velho do que você!

- E isto apenas adiciona para o charme dele. - rolei os olhos. Por que eu ainda insistia em discutir isto com Tatsuha? Ele era o claro exemplo de como o amor era cego... E burro. Mas não vamos entrar em detalhes.

- Certo, quer saber? Para mim já chega. Aquele idiota teve tempo o suficiente para pensar. - levantei, indo até a porta de entrada e recolhendo do cabideiro o meu casaco e as chaves do carro.

- Vai dirigir até Tóquio? Viagem longa aniki. - rolei os olhos. Claro que não iria dirigir até Tóquio. Queria resolver isto ainda hoje, não amanhã. Iria dirigir até a estação de trem.

- Trem bala. - foi o que respondi antes de sair de casa e ainda ouvir Tatsuha gritar às minhas costas:

- Boa sorte!

Com aquele tapado do Shuichi? É, eu ia precisar.

Shuichi

Meus surtos não eram desculpas para faltar ao trabalho. Foi o que K me disse quando arrombou a porta do meu quarto, apontou a sua fiel magnum entre os meus olhos e falou que se em cinco segundos eu não entrasse no carro, que ele não se responsabilizaria pelos seus atos. Óbvio que eu o obedeci. Minha mente poderia estar um caos com tudo o que aconteceu, mas o meu instinto de sobrevivência ainda permanecia intacto.

A viagem até o prédio da NG foi feita em silêncio. Eu não tinha nenhuma energia para tagarelar como sempre fazia ou protestar sobre as atitudes nada convencionais de K. E essa minha falta de energia permaneceu durante o resto dia e foi notada por todos.

Sei disso pelos olhares que Suguru e Hiro trocaram quando me viram parado em frente ao microfone por dois minutos, de cabeça baixa, sem dizer nada.

- Outra briga com Yuki? - Hiro provocou e eu pude perceber o tom de divertimento na voz dele, mas tudo o que eu queria era chorar.

Não o choro histérico e teatral que eu sempre fazia para chamar a atenção. Chorar de verdade. Aquele choro que me fazia querer encolher-me em um canto escuro do meu quarto e ficar lá até o pesadelo passar.

De todas as brigas com Yuki, essa foi a pior delas. Porque, desta vez, foi minha culpa. Tudo minha culpa.

Porque não importava o que ele dissesse, não importava quantas vezes ele repetisse que estava tudo bem, ainda sim não era fácil. Assimilar algo que até pouco tempo atrás eu achava existir somente na fantasia não era fácil. Mas pior era que esse algo me fez ferir Yuki e era essa sensação de impotência que não me largava.

Eu já passei por muitas coisas nesta vida: desde as implicâncias dos meus colegas de classe por causa do meu sonho de ser cantor até ataques de bandas rivais. Mas isso, isso foi a pior coisa de todas.

- Shindou! - o chamado de K me fez erguer os olhos para mirá-lo e algo no meu rosto deve ter despertado a comiseração dele, pois o vi trocar um olhar com Sakano e depois sacudir a cabeça em negativa, soltando um longo suspiro em seguida. - Melhor encerramos por hoje. - respirei aliviado. Não tinha inspiração e nem pique para trabalhar.

Com movimentos morosos recolhi a minha mochila, ignorando o chamado de Hiro enquanto eu saía do estúdio e tomava o caminho do elevador. Apertei o botão deste, esperando pacientemente a sua chegada e quando isto aconteceu e as portas se abriram, entrei no aparelho.

- Shindou-san? - pulei de susto ao ouvir alguém me chamando, pois nem tinha percebido que havia mais alguém na máquina, e ergui os olhos para ver Tohma ao meu lado.

Franzi as sobrancelhas, pensativo.

Yuki havia me contado a história de sua família, como esta consistia em gerações e gerações de bruxos do bem que lutavam contra demônios. Disse que ele e os irmãos eram três bruxos profetizados que, juntos, possuíam um poder fenomenal. Na hora, pouco assimilei porque ainda estava em choque. Mas agora, dias depois, posso pensar melhor no assunto.

Será que Seguchi-san sabia que era casado com uma bruxa?

- Sim, eu sei. - dei outro pulo de susto ao ouvi-lo. Eu pensei isto em voz alta? Arregalei os olhos na direção dele e o vi me dar um pequeno sorriso divertido. - Acredite Shindou-san, você irá se acostumar com a ideia.

- Será? - falei com uma voz rouca, reminiscência dos meus dias trancado em meu quarto, chorando. Tohma sorriu mais ainda e apertou o botão de emergência do elevador, o parando no meio do percurso.

- É um conflito de crenças a princípio. Você fica se perguntando: como assim magia existe? Depois, fica olhando e avaliando todos a sua volta, querendo saber quantos deles são pessoas normais, se alguém é um ser mágico disfarçado ou um demônio. E então, depois de um tempo nesse meio, você nem mais pisca o olho quando o assunto vem à tona durante um jantar em família.

- Mas você descobriu como eu? Depois de ser usado por um de-demônio? - eu nem conseguia falar a palavra direito. Para mim, demônios eram criaturas frutos da mitologia.

- Não. - Tohma ficou com uma expressão séria. - Mika me contou depois da enésima vez em que desapareceu sem dar explicações. Confesso que a minha introdução a esse mundo foi feita de maneira suave, mas não menos difícil.

- Como assim? - Tohma suspirou.

- Mika, Eiri e Tatsuha individualmente são bruxos poderosos. Juntos, são uma força descomunal. São conhecidos em toda a comunidade mágica. E quando eu falo toda, eu me refiro ao mundo inteiro. E óbvio que qualquer representante da magia negra ou quer destruí-los para fazer nome no submundo, ou quer roubar os seus poderes. - engoli em seco diante dessa explicação.

Yuki havia me dito que eles eram poderosos, mas eu não tinha imaginado que eles poderiam ser tão poderosos assim.

- E eu, como simples mortal, me sinto de mãos atadas. No mundo da música e dos negócios eu sou a força descomunal. No mundo da magia, eu não sou ninguém. Não sei se você percebeu Shindou-san, mas eu gosto de proteger aqueles que me são queridos. - se eu percebi? As ameaças disfarçadas de preocupação que recebi nos primeiros anos me relacionando com Yuki foram uma boa indicação. - Mas, neste caso, eu não posso proteger os irmãos Uesugi. Toda a minha influência em nada serve para eles. E pior. No caso de Mika, eu sou uma das fraquezas dela.

Pisquei várias vezes ao ouvir isto. Com certeza Tohma detestava a ideia de ser uma fraqueza, de quem quer que fosse.

- Sei que se sente culpado mas acredite: se Eiri o perdoou é porque ele não o culpa de nada. - me disse, apertando novamente o botão de emergência e colocando o elevador de volta em movimento.

Eu sei que deveria levar as palavras de Tohma em consideração porque ele estava certo: o perdão de Yuki era algo difícil e raro de se obter e se ele o dá, é porque o mesmo é sincero. Mas ainda sim era complicado.

O elevador chegou ao térreo e as portas se abriram e eu rapidamente sai dele, sendo acompanhado por Tohma.

- Ah! E Shindou-san? - parei em meu caminho para as portas principais do prédio, olhando por cima do ombro para Tohma que tomava o caminho em direção a sala da administração do condomínio. - Magoe Eiri e...

- Eu já sei: terei que responder ao senhor. - Tohma me deu um sorriso que fez calafrios descerem pela minha espinha.

- Ah não, Shindou-san. Terá que se ver com os irmãos dele. E tenha certeza: quando Mika e Tatsuha terminarem com você, irá ter desejado ter sido eu a lidar contigo. - e com aquele falso sorriso amigável de sempre no rosto, ele se despediu de mim e sumiu corredor abaixo.

Sai do prédio, cogitando, enquanto estava parado no meio da calçada, se pegava o metrô de volta para casa ou se ia a pé.

Casa. Agora esse era o problema. O que eu poderia definir como casa? O apartamento que dividia com Yuki e que agora me sufocava, mesmo que ele não estivesse lá para me lembrar constantemente dos meus erros, ou a casa dos meus pais que sempre me olhavam preocupados cada vez que me viam sair do meu quarto com o rosto marcado pelas lágrimas?

- Shuichi. - arregalei os olhos ao reconhecer a voz e, temeroso, girei lentamente o corpo para mirar a pessoa que me chamou.

E não deu outra.

Ali, parado a poucos passos de onde eu estava, encontrava-se Yuki.

- Yu... - minha voz ficou presa na garganta e eu sabia que os meus olhos estavam largos.

- Cansei de esperar Shindou. - vi ele vir a passos largos em minha direção, mas estava paralisado demais diante das minhas inseguranças e terror para poder fugir. - Está na hora do drama acabar. - falou, segurando com força em meu braço e me puxando na direção de um beco onde ficava e entrada de carga e descarga da NG.

Me deixei levar como uma marionete. Meu coração descompassado batia com força em meu peito e os meus olhos largos agora deixavam lágrimas formarem uma trilha em minhas bochechas.

- Não... - disse fracamente. - Não! - me soltei dele com força, me afastando um passo. - Você não entende... - tentei explicar, tentei fazê-lo entender. Não era a magia, era o que ela me fez fazer.

Eu sabia da história de Kitazawa. Convivi os últimos seis anos com as consequências dos atos daquele monstro. Tentando dia após dia quebrar a muralha que Yuki construiu ao seu redor. Tendo cada dia em que uma lasca era formada na barreira contado como um dia de vitória. Somente depois de dois anos de relacionamento que eu consegui a confiança de Yuki, três para demonstrar o mínimo de afeto que fosse por mim. Cinco para ele se permitir dormir uma noite inteira ao meu lado. Seis para os pesadelos que lhe davam insônia finalmente cessarem.

Um trabalho que ainda estava longe de ser terminado e que foi destruído em uma única noite por causa da magia.

Yuki suspirou e esfregou os olhos com as pontas dos dedos. Um gesto que eu sabia que indicava que ele já estava perdendo a paciência.

- Você não ouviu nada do que eu lhe disse no dia do ataque da Sereia?

- Hã?

- Meus poderes, Shuichi. Meus poderes. - tentei trazer à tona, no meio da minha confusão mental, alguma lembrança da conversa daquele dia.

- Vidência... - murmurei quando finalmente recordei. - Empata. - ofeguei.

- Eu sei exatamente o que você está sentindo. - sibilou e eu quis morrer. - Pare de chorar! - me ordenou em um tom levemente irritado. - Você não é o Kitazawa e nem de longe chega perto daquele monstro.

- Eu tentei... - Yuki rolou os olhos e soltou uma breve risada de escárnio.

- Tatsuha tentou o mesmo quando ele tinha uns treze anos. Mika aos vinte. E eu tentei com eles o mesmo aos dezesseis quando me relacionei, em Nova Iorque, com um demônio chamado Kitazawa. Nesta família, ter algum ente querido sendo manipulado pelas forças do mal e tentando te matar é corriqueiro.

- Não fale assim! - o repreendi. - Não fale como se não fosse nada! - porque não era. Era terrível, traumatizante. E ele ainda brincava com o assunto?

- Se eu levar a sério, aí sim que enlouqueço. Kitazawa era um demônio, Shuichi. Literalmente um demônio. Sim, eu disse que eles são criaturas maléficas, mas não incapazes de sentir. Na maioria das vezes eles somente sentem ódio e desprezo pelo mundo ao redor e, em raros casos, amor. O que me magoou não foi Kitazawa ter feito o que fez, foi ele ter quebrado todas as promessas de tentar ser uma criatura melhor. Pode parecer ridículo: um demônio se tornar uma criatura melhor, mas existem casos bem sucedidos ao redor do mundo. Eu achei que Kitazawa fosse um deles. Estava errado. O amor dele por mim não foi o suficiente para abafar a sua natureza e, no fim, ele fez o que fez e eu tive que extingui-lo com a ajuda dos meus irmãos.

Senti as minhas pernas fraquejarem e cambaleei até apoiar as minhas costas na parede do prédio da NG.

- Meu problema com relacionamentos é conseguir confiar nas pessoas, não é falta de amor. Amar... - o vi ficar em silêncio por alguns segundos, desviar o olhar para a rua beco afora e depois voltá-lo para mim. - Amar, eu o amei no segundo que nos encontramos naquele parque. - arregalei os olhos e achei que o meu coração fosse saltar para fora do peito. - Confiar... Bem, neste quesito eu levei algum tempo. Mas eu confio em você, Shuichi. Plenamente.

Eu não sei qual declaração me emocionava mais: a de que ele me amava ou a de que ele confiava em mim.

- Yu... - novamente a minha voz ficou presa na garganta por causa do soluço que a atrapalhou e com um impulso, desencostei da parede e me arremessei contra ele, sendo recebido pelos braços de Yuki enquanto me aconchegava contra o seu peito.

Pela primeira vez, depois de dias, eu senti o turbilhão de sentimentos que me assolava finalmente tranquilizar enquanto Yuki me apertava ainda mais contra o seu corpo.

Ficamos assim por minutos, até que Yuki se moveu e me afastou dele, mantendo as suas mãos sobre os meus ombros, e eu ergui a cabeça para olhá-lo. Ele estava com as sobrancelhas franzidas, expressão séria e rodava os olhos pelo beco como se procurasse algo.

- Yuk...

- Shhh. - me cortou, virando-se para a entrada no beco enquanto me empurrava, me colocando às suas costas e usando o seu corpo como proteção.

Me apavorei, porque imaginei que se Yuki estava tenso como estava era porque alguma coisa grande, alguma coisa relacionada a magia, estava prestes a acontecer. E não deu outra. No momento em que eu soltei:

- Yuki o que... - uma sombra se mexeu no beco, saindo a toda velocidade detrás de um latão de lixo, e veio em nossa direção.

Arregalei os olhos, me encolhendo e esperando pelo pior, mas o ataque para o qual já me preparava não veio.

Em um piscar de olhos Yuki estava na minha frente, no outro ele estava segurando com uma mão o braço da pessoa que nos abordou, a outra já se fechava em sua nuca e com um empurrão a prensou contra a parede do prédio.

- AI! - o estranho, ou melhor, a estranha soltou enquanto era imobilizada por Yuki.

- Como... - balbuciei ao ver a reação tão rápida dele e ele rolou os olhos em minha direção.

- Nem sempre os nossos dons são efetivos. Mamãe nos treinou desde pequenos em combate corporal para possíveis eventualidades. - explicou, pressionando mais a mulher contra a parede.

- Eu não sou um demônio! - ela gritou em defesa e Yuki bufou.

- Claro! Já perdi as contas de quantas vezes ouvi isso.

- Eu sou uma Inocente! - uma o quê?

- Repita isso até se convencer.

- Você pode atestar! Basta me sentir. - ela continuou protestando e Yuki franziu as sobrancelhas, a mirou intensamente por um minuto e pareceu descobrir algo de verdadeiro nas palavras dela, pois logo em seguida a soltou vagarosamente.

- Uma gracinha... - ele ameaçou, voltando para o meu lado e me colocando às suas costas novamente. Entretanto, eu estava curioso e com isto inclinei um pouco o corpo para ver a desconhecida.

Era uma mulher bonita, de longos cabelos negros e grandes olhos castanhos. Pele morena e rosto arredondado e usava um pulôver com uma saia jeans, sem nenhuma meia calça por baixo, o que me fez perguntar como ela estava aguentando o frio daquele início de Março.

- Eu preciso da sua ajuda. Eu vi uma foto sua em uma livraria e logo o reconheci. Você é Eiri Uesugi, certo? Um dos Encantados? Não pensei em encontrá-lo aqui, mas tentei a sua casa e ninguém atendeu e o porteiro me disse que talvez o seu namorado soubesse do seu paradeiro e eu vim para cá. E olha a surpresa quando o vi... - ela deu um passo à frente e segurou uma das mãos de Yuki com as suas duas mãos. - Precisa me ajudar! A Bruxa do Mar está atrás de mim!

A o quê?

- Como? - parecia que nem o meu namorado tinha conhecimento do que era essa tal Bruxa.

- Não há tempo de explicar eu... - mas ela foi interrompida quando subitamente o tempo fechou-se sobre nós e grossas gotas de chuva começaram a cair do céu.

Os olhos dela ficaram largos e os meus a imitaram pois no segundo em que as gotas tocaram as pernas dela, essas desapareceram para darem lugar a uma longa cauda escamosa.

- Merda! - Yuki soltou quando a mulher perdeu o equilíbrio e caiu sobre ele, quase o derrubando também. - Era só o que me faltava. - resmungou e antes que eu pudesse reagir, ele acomodou a mulher contra o seu peito com um braço e o outro passou sobre os meus ombros, me trazendo para junto dele. O ouvi murmurar algo sob a respiração mas não atentei ao que era pois estava ocupado demais, mirando surpreso, a estranha com cauda apoiada em meu namorado.

Somente quando luzes douradas nos envolveram e o beco começou a desaparecer em frente aos meus olhos é que os meus pensamentos retornaram ao mundo terreno e concentraram-se em somente uma pergunta:

No que foi que eu me meti?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!