Dois Iguais escrita por Mihael


Capítulo 1
Dois Iguais




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DOIS IGUAIS


O mundo ia acabar dentro de poucas horas e tudo o que Petros mais queria era tomar café na cafeteria da Avenida Antares.


Logo que ligou seu radiosinho antigo e ouviu a notícia vinda de uma voz grossa e tranquila que falava sobre um meteoro colossal vindo em direção à terra, o velho Petros logo imaginou as pessoas nas casas entrando em desespero e chorando ou se abraçando, e pôs-se a rir. Eram quase meio-dia, e todos os noticiários falavam a mesma coisa sobre as seis próximas e últimas horas na terra, e que todos os canais de rádios e televisão, a partir desse triste anúncio, parariam suas programações e a cidade entraria naquele silêncio mórbido até o mundo ser explodido pelo meteoro. O velho Petros se entristeceu, pois adorava ouvir política às três horas pelo seu radiosinho, e todas as programações cessariam daqui a alguns minutos, provavelmente quando desse meio-dia. E foi dito e feito, quando o relógio marcou o doze, todas as programações cessaram; parecia que toda a cidadezinha sulista tinha prendido a respiração. Após isso, veio o desespero, o choro descontrolado que ecoava das paredes das casas e das ruas da cidade, e também do mundo, certamente. Pela janela de seu quarto, o velho via os estabelecimentos fechando e as lágrimas invadindo as ruas. Uma enchente de lágrimas logo tomaria toda a Avenida Antares, e Petros tinha que se apressar se quisesse seu café.

Ao colocar a sua mais bela roupa, Petros ligou para seu motorista particular, para o mesmo levá-lo à Avenida, mas obviamente Gustav, o motorista, recusou-se. Queria passar as últimas horas de sua vida com esposa e filhas. “Ora, Gustav, é rapidinho!” Insistiu o velho e bondoso Petros, mas logo entendeu que era injusto tomar uns minutinhos de seu motorista naquela situação. “Ó, tudo bem, então… obrigado por tudo, meu amigo”, e desligou o telefone. O bom velho então percebeu que teria que ir andando à seu destino, o que levaria uns bons quarenta minutos, mas não importava, não tinha compromisso naquele dia. E mesmo se tivesse, não iria, afinal, era o fim do mundo!

Petros, antes de sair de casa, checou a secretária eletrônica de seu telefone, e viu que tinha cinco chamadas perdidas de seu filho, Arthur. Arthur morava em uma cidade dos Estados Unidos que Petros sempre esquecia o nome, e lá morava pois era dono de uma multinacional da mesma cidade, e isso graças a herança que herdara de seu bom pai.

“Me desculpe, Arthur, estou atrasado”, foi o que pensou. Como estava um pouco frio, resolveu pegar o casaco. Por fim, saiu.

O bom velho andou sorridente pela sua rua, repleta de casarões que esbanjavam a frescura da alta sociedade, mas nenhuma tão bonita como a sua… mas isso de nada importava na atual situação. Continuou andando, pensando que Gustav poderia estar agora dirigindo o carro para ele. Ah, pobre Gustav! Sempre foi prestativo e um ótimo homem, se bem que seu sotaque berrante francês chegava a irritar um pouco, mas era um homem culto, e Petros adorava as conversas com ele. Após refletir um pouco, o bom velho chegou a conclusão de que Gustav era seu amigo, e não seu motorista particular.

Depois de cruzar a sua rua, Petros entrou na Rua Alas, onde as casas não eram tão luxuosas, mas sim aconchegantes, e, naquele momento, o aconchego cedeu seu lugar para o silêncio e o desespero, e apenas soluços baixinhos ecoavam.

“O que estariam pensando agora?”

Passo após passo, o bom velho mudava de pensamento, chegou até pensar que gostaria de ter um cachorro chamado Max, ou um gato chamado Bartolomeu. E a medida que andava, uma música ia nascendo na sua cabeça, até que não resistiu mais e pôs-se a cantar. Mas não cantou baixinho, não, cantou em alto e bom som, para que todos dentro de suas casas ouvissem, afinal, tinha nas costas sessenta e sete anos, e ninguém estava na rua, e no dia seguinte não sobraria pessoa para comentar do velho louco que saíra cantando. E a canção saía de sua boca:

Yesterday, all my troubles seemed so far away, now it looks as it as though they’re to stay, oh I believe in yesterdaaaay…

Era claro que sua voz envelhecera, assim como o próprio Petros, mas ele realmente adorou a sensação de cantar bem alto na rua. Vivera tanto tempo preso em boas maneiras e etiqueta e frescuras, afinal, era milionário, e agora pode fazer algo que tinha vontade… e não parou por aí, continuou cantando Yesterday, mesmo esquecendo uma parte da letra, e repetindo o primeiro verso. E Assim, foi seguindo as ruas que vinham pela frente…

Logo chegou à Rua Blanc, e lá encontrou a pequena capela chamada St. John. O que o chamou a atenção, era que aquela capelinha sempre esteve vazia, só nos domingos umas dez pessoas a visitavam, mas agora parecia que toda a cidade estava lá, e tinha até pessoas na calçada ouvindo o sermão do Padre. Logo que passou em frente à capela, ouviu uma voz chorosa:

– Venha, senhor, venha! – Disse uma mulher que beirava uns cinquenta anos de idade. Estava inchada de tanto chorar.

– Ó, muito obrigado, dona, mas estou atrasado. – Respondeu sorridente.

– Como assim atrasado? É o fim do mundo! Se apegue com Deus nessa hora! – Disse a mulher, mostrando sua indignação por meio do choro, deixando-a mais inchada.

– Desculpa, dona, mas eu sou ateu. E tudo o que mais quero agora é me apegar a um bom café! – E saiu rindo, voltando a cantar os primeiros versos de Yesterday.

Ora essa, nunca em seus sessenta e sete anos irritara uma pessoa, e agora, no fim do mundo, teve uma oportunidade... e simplesmente adorou. "Quem sabe eu não roube um doce!" Era o que vinha à sua mente. Mais tarde considerou que adoraria ir em um parque de diversões após o café.

Era óbvio que quando chegasse lá, o Café Vita (essa era o nome da cafeteria) estaria fechado, mas fazia parte de sua aventura arrombar a porta ou quebrar o vidro, entrar lá e ele próprio fazer o café com os produtos da cafeteria, e o velho Petros estava muito ansioso para isso, pois nunca fora à cafeteria, sempre passava em frente e sentia um delicioso aroma de café.

O bom velho pensava se iria fazer um cappuccino ou um café tradicional, ou talvez um frappé, ou por que não todos? Deliciava-se com a ideia de assistir o meteoro chegando à terra enquanto saboreava as bebidas do Café Vita. Logo, começou a desejar que lá tivesse torta holandesa.

Chegou então à Praça Brim, onde habitava um casarão que servia de ponto turístico, que sempre estava cheio de pessoas, mas agora estava vazio, e lembrava uma casa mal-assombrada. Lembrou da St. John, e quão extremas as situações eram. E então continuou andando, rindo da situação, e cantarolando algumas músicas que não sabia a letra. E como as outras ruas que passara, essa também estava vazia. Era engraçado lembrar como o dia anterior estava repleto de vida nas ruas, e agora as ruas estavam tão mortas, quase putrefatas, assim como a mente das pessoas em suas casas. Logo, Petros se sentiu meio deslocado por não estar em casa chorando. Quando o velho conseguiu afastar esse pensamento, algo que aos olhos de Petros é imperdoável aconteceu.

Primeiro veio o barulho de algo grande quebrando, depois que o bom velho, agora meio atordoado, pode relacionar o som com a imagem que o vinha ao cérebro, seus olhos se arregalaram e ele se percebeu horrorizado... Acabara ver uma mulher que se jogava de um edifício cruzando a praça Brim com a Avenida Antares. Ela estava agora desintegrada no chão, e ao que o sangue deixava ver, era nova de idade, mas não nova de mente. O velho logo pôs suas pernas para funcionar, e desprezando a dor consequente da artrite, correu o mais rápido que conseguiu, tentando não se perturbar o suficiente para que aquela imagem horrível escapasse de sua mente. Mas foi impossível. O suicídio daquela jovem o fizera levantar grandes questões sobre o assunto. Pensou na fraqueza que a dominou, e que desperdiçara umas horas que poderiam ser boas, assim com as dele, com um suicídio. Por que se mataria sendo que em poucas horas o mundo iria acabar, mesmo? Talvez, ela pudesse dormir antes disso e nem sentiria a dor... Mil possibilidades existiam ali, e todas afastavam o suicídio.

Mesmo tentando, e não conseguindo, Petros pôs-se frio ao ocorrido, pois realmente queria o seu café. Por favor, não pensem que era um homem ruim ou desprovido de sentimentos. Pelo contrário, ele amava as pessoas e a vida, mas em um momento onde o mundo breve irá acabar, era desnecessário chorar por uma morte de um desconhecido. Mas desejou do fundo do seu coração que aquilo não tivesse ocorrido. E para, realmente, não pensar naquilo, continuou ansioso seu caminho cruzando a Brim com a Antares, e já pode avistar o Café Vita. Nesse momento seu coração bateu forte, como o coração de uma criança em frente à uma mega loja de brinquedos. Parou um pouco para olhar para o céu, para bobamente verificar se algum sinal do meteoro estava no céu. Viu que não, o céu estava cinza, o habitual cinza do outono, e ao ver que seu café ainda estava de pé, ficou ali, despercebidamente parado e sorrindo; foi então que sentiu algo cutucar as suas pernas.

Olhou para baixo e viu uma senhora, aparentava ter a mesma idade que a dele, estava suja e maltratada pelo tempo e pelas ruas, o olhar triste e vazio escondido entre as fuligens e a poeira do seu rosto. Petros concluiu que era uma pobre mendiga, que ali estava, nas horas antecedentes do fim do mundo, sentada na rua cutucando as suas pernas.

– Sim? – Perguntou o velho com toda a educação que lhe fora dada.

– O senhor está sorrindo? – Perguntou a pobre mendiga, com a voz trêmula e meio rápida, com sua dicção tão velha quanto seu rosto, e Petros assimilou que a velhinha lembrava uma criança, mas não sabia a razão.

– Ah, sim, estou sorrindo!

– O senhor sabia que o mundo vai acabar, certo? E mesmo assim sorri? – O sotaque e o tom de voz da mendiga realmente lembrava uma criança. Petros sorriu ao ouvir sua voz, mas não por zombaria, e sim por afeto.

– Ah, certamente! O mundo vai acabar e eu quero tomar um bom café antes disso.

A senhora logo esboçou um ar de estranhamento no rosto com fuligem. "Esse homem é doido?" era o que Petros lia naquela feição.

– Desculpa a pergunta, senhor, mas... o senhor não tem esposa e filhos para passar com eles?

– Ah, dona, minha esposa faleceu alguns anos atrás, e meu filho está nos Estados Unidos. Certamente, ele deve estar me ligando desesperadamente agora, mas tudo o que eu fiz como um bom pai, eu fiz. E agora o que quero é um café!

– Me desculpa, senhor... – A pobre velha fez uma feição de culpa e dó ao mesmo tempo, o que despertou algo em Petros.

Após olhar a senhora por um tempo, perguntou:

– A senhora gostaria de tomar um café comigo? – Perguntou com seu sorriso mais sincero, acompanhado de sua nobre educação. Logo após essa pergunta, lágrimas sujas de poeira escorreram do rosto da velha, que com a voz trêmula falou:

– O senhor fala bonito... pelas roupas deve ser rico... – Fez uma pausa e olhou no fundo dos olhos de Petros, e tudo o que achou ali foi humildade e um mar de verdade. – E me chama de senhora, como se eu fosse gente...

– Ó, por favor! É evidente que a senhora é gente! Tão gente quanto eu, e eu adoraria um café com a senhora, dona...

– Elise. Sou Elise. – Respondeu a velha, ainda em lágrimas.

– Dona Elise. – Completou. – O que me diz?

– Se o senhor não se importar, eu gostaria muito... – E Elise sorriu. Aquele sorriso fora enigmático e verdadeiro. Petros sabia que aquela pobre mendiga há muito não sorria, e aquele simples gesto de sorrir o fez revigorar a ideia de que realmente adoraria tomar um café com Elise.

Elise se levantou, envolta em múltiplas peças de roupas com um forte odor antigo, mesclado com esgoto, e algumas sacolas presas ao casaco que Elise vestia, mas isso não incomodou o bom velho. Com toda a sinceridade, realmente não o incomodou.

Atravessaram a grande avenida sem preocupação, afinal, não existiam mais carros trafegando ou pessoas passando, pois todas estavam em casa afundadas em desespero, e no coração de Petros, ele sabia que muitas estavam fazendo a mesma coisa que aquela moça na qual ele se deparou tão inesperadamente fez.

Após atravessarem a extensa avenida e chegarem em frente ao Café Vita, finalmente, Petros teve um surpresa: a porta estava aberta! Talvez no desespero em que o dono estava para estar logo com a família, nem se preocupou em fechar o estabelecimento. Isso até era um ponto positivo, pois arrombar ou quebrar o vidro da cafeteria levaria tempo, e o tempo que restava, segundo Petros, deveria ser gasto com o café. Por fim, ambos entraram. Não era tão grande lá, nem tão luxuoso. Era simples, com mesas almofadadas que ficavam ao lado do vidro que dava para a rua. Um balcão de madeira, assim como o resto do Café Vita, e um palco, aonde Petros imaginou que tocava alguma banda de Jazz ou deveria ser para "A Noite da Poesia".

Elise sentou, meio desconfiada, mas ao sentir o aconchego do almofadado das poltronas, logo se sentiu à vontade. Há tempo não sentia algo fofo para sentar, senão o frio do asfalto. Enquanto isso, Petros foi dar uma olhada no cardápio, e viu as variedades enormes de cafés e frappés e cappuccinos e outras bebidas importadas e caras que tinham ali.

– Elise, aqui é muito caro! Sorte que beberemos o que quisermos de graça! – Disse Petros, esbanjando felicidade. – Mas seria bom se eu soubesse preparar essas coisas aqui, já que não tem nenhum funcionário. ­­– E riu, pondo-se para trás do balcão, revirando e vendo os produtos que tinha no Café Vita.

Após algum tempo na cozinha da cafeteria, voltou com dois (tentativas de) cappuccinos com mais chantilly do que deveria ter. Nessa hora, Elise soltou o melhor dos seus sorrisos.

– Eu nunca bebi um desses! Sempre vi pelo vidro um monte de gente bebendo isso e parecia tão gostoso! – Disse ela, com sua voz infantil esganiçada de felicidade.

– Ah, eu garanto que é realmente muito bom! – Respondeu Petros, sorrindo e sentando-se à mesa.

E então, empurrou a xícara para Elise, que a olhou meio desconcertada. Lançou um olhar mais infantil à Petros, com um rosto meio de vergonha. Após, aparentemente, pegar coragem, perguntou:

– É só... pegar e beber mesmo, né? Mesmo com essa espuma aqui em cima? – Elise se sentiu boba perguntando isso, e mais boba ao ver que Petros havia sorrido. Petros sentiu uma incontrolável vontade de chorar, mesmo escondendo bem por trás de seu sorriso gentil. Nesse momento, sentiu um imenso afeto por Elise.

– Sim, sim! – Respondeu meio trêmulo. – Se você afundar essa espuma no café, fica mais gostoso!

E assim beberam, contemplando o céu nublado e a rua silenciosa e vazia, e o café de Petros realmente tinha um gosto muito bom, e mesclando isso ao céu e ao aconchego da cafeteria. Após o velho acabar de beber seu café, Elise notou que havia ficado muito chantilly em sua barba, e isso causou um acesso de riso. Petros, ao notar do que Elise estava rindo, pôs-se a rir também, e logo limpou o chantilly de sua boca.

Desde que chegaram, não tinham notado os quadros na parede de carvalho ao lado do palco, de mulheres antigas ou alguns do Elvis Presley. Os quadros, mais o carvalho e mais o acolchoado das poltronas, que eram vermelhas, deram aos dois a sensação de estarem em uma lanchonete nos anos 50, e isso foi estranhamente acolhedor.

Logo, um silêncio intruso flutuava pelo Café Vita, mas não durou muito, após um tempinho, Elise o quebrara:

– O senhor... Eu não sei seu nome... – Sua voz era triste e distante, e parecia que Elise tinha medo de olhar Petros nos olhos, e era compreensível, só a própria Elise sabe o quanto sofreu, e esse sofrimento estava refletido nos olhos molhados de lágrimas amargas, no rosto sujo, nas ruas cruéis...

– Sou Petros. Petros Alphard.

– O senhor... senhor Petros é rico, né? – Perguntou, e aquele olhar infantil com vergonha voltara novamente, no qual despertava em Petros nada mais que piedade.

– Sim... sou. – Disse o velho, com um sorriso amarelado.

– E por que me chamou... para... – Elise, evidentemente, tinha vergonha de fazer aquela pergunta previsível, mas era uma pergunta que não queria calar.

– Para tomar um café? Ora essa, não é errado chamar uma pessoa para um café e tentar fazer novos amigos, mesmo eu estando velho, não é? – E riu, encarando os olhos vazios de Elise.

– Uma pessoa... – E então Elise pôs-se a chorar. O motivo era aparente, e por simples respeito, Petros deixou-a chorar, apenas observando-a.

– Eu acho que o senhor é um homem muito bom... ou o fim do mundo afetou seu juízo. – E numa súbita mudança de humor, Elise caiu na gargalhada. Talvez achara engraçada toda essa situação. Sua risada lembrava muito a risada de uma criança, e isso fez Petros rir, e mais uma vez ficaram ali rindo.

Após o acesso de risadas, Elise concluiu:

– Eu gosto de acreditar que o senhor é um homem bom... eu já vi todo mundo dessa cidade passar por mim, e ninguém nunca olhou para mim como o senhor olhou. Se eu acreditar que o senhor perdeu o juízo, eu ficaria bem triste, sabe? – Disse por fim, dando o último gole no cappuccino.

– Vou te dizer uma coisa: eu sou um homem bom, então não fique triste.

– Ah, estou muito feliz! E seu café é muito bom!

– Muito obrigado, Elise, muito obrigado. E modéstia a parte, eu também achei muito bom.

– Já que hoje aqui 'tá de graça... desde que eu entrei aqui eu fiquei de olho naquele bolo ali – Elise apontou para o refrigerador que mostrava todos os bolos e tortas que tinham no Café Vita, e o "bolo" que Elise apontara era, na verdade, uma torta holandesa.

– Olha só, torta holandesa! – Disse Petros feliz da vida, levantando-se para pegá-la. Trouxe, então, a torta inteira, e dois garfos.

– Vamos comer essa torta inteira, está bem? – Disse o velho ao colocar o garfo na deliciosa torta holandesa.

– Esse bolo parece muito gostoso. – Disse Elise, pegando uma garfada.

– Sim, e realmente está ótima, mas não é um bolo, e sim uma torta.


Após acabarem com a torta holandesa, conversaram sobre o tempo. Estava cinza, com alguns ventos cortantes, e era o tipo de clima que o bom velho Petros gostava, mas não agradava muito Elise, que achava que o sol era a coisa mais linda que já vira. Enquanto jogava algumas palavras fora com Elise, pensou na situação que estava ocorrendo, e lembrou que o desespero estava lá fora, e tentando, mas não conseguindo, lembrou da jovem que se suicidara. Um nó veio à sua garganta, e um aperto sufocou seu coração, e uma pontada de temor que fora ignorada começou a crescer. Logo, via apenas a boca de Elise mexer em palavras com seu sotaque confortavelmente infantil e a inocência de seu olhar, e refletiu sobre o que aquela moça deve ter passado na sua sobrevivência que até seria um insulto chamar de vida. Pensou na mordomia que ele tinha todos os dias, e ao olhar o rosto sujo de Elise, não conseguiu mais sufocar um desejo grande que subia pelo seu rosto, e chorou. Elise falava sobre como o Café Vita era "bonitinho" e ao ver o velho se desmanchar em lágrimas, ficou, obviamente, confusa.


– O que foi? – Perguntou encabulada, franzindo o cenho.

Petros não conseguia falar. Apenas soluçava bobamente, e se achou ridículo por estar chorando tão intensamente, mas logo chegou a conclusão de que o amontoado de emoções abafadas desde o anúncio do rádio resolvera se soltar como uma alcateia selvagem.

Após se recompor, apenas disse "Elise é um nome muito bonito", deixando a pobre velhinha confusa.

Um silêncio tomou o mundo, e ecoou forte nas paredes de madeira da cafeteria. Uma onda de reflexão inundou os dois velhos. Uma imagem da vida passou pelos olhos dos dois, um pôde ver a vida do outro refletida no brilho perdido dos olhos vagos. Naquele momento, toda a diferença que supostamente tinham caiu, e viram que entre a distancia que tinham em todas as circunstâncias, nada mais existia além dos sorrisos de Elise e Petros. Logo, o silêncio foi quebrado por uma conversa boba.

Ao longo que o dia passava, Petros trouxe mais um café, dessa vez simples, e constantemente pegava uns quichés ou tortinhas.

– ... Lembro quando fui para o Peru. Foi a melhor viagem que fiz, e quando conheci Cusco foi definitivamente o dia mais feliz da minha vida! – Dizia Petros, empolgado em ver o sorriso brilhante refletir no olhar curioso de Elise sobre países tão diferentes. – Ah, é tanta história gravada em cada pedra, sabe? O ar cheira à histórias e guerreiros...

Elise contemplava a verdadeira felicidade e sinceridade com que Petros descrevia suas viagens. Falou encantado sobre ver a Aurora Boreal na Noruega e sobre como São Petersburgo é linda, e em como Copenhague é o lugar perfeito para se morar. Não se demorou muito para falar dos templos da Tailândia e de como Tóquio é linda.

–... E você, Elise... Deve ter alguma lembrança feliz, não? – Disse o bom velho, cuidadoso e afetivo, agora meio trêmulo ao ver que Elise encolhera sorrira sem graça. Talvez essa não era uma pergunta boa para fazer para uma senhora que viveu de asfaltos. Mas Elise tinha uma lembrança boa...

– Bom, eu tenho sim... – começou, meio desconcertada. – O senhor me desculpa, mas não é nada como as suas viagens pra esses lugares longes. – Nessa hora, a velhinha engoliu o que seria o começo de uma emoção que resultaria num choro.

– Bom, era um dia mais frio que esse, e eu estava sentada no chão, com um cobertor velhinho que eu tinha ganhado, naquela mesma rua que o Senhor me achou. E eu lembro que eu estava quase dormindo, quando passou uma mãe e seu filhinho. Lembro certinho que ele usava um casaco vermelho, e usava óculos. Ele devia ter pelo menos uns três ou quatros anos. Então, ele olhou pra mim enquanto passava na rua, e do nada ele soltou do braço da mãe dele e veio correndo pra minha direção. Pensei que ele fosse me bater ou zombar de mim, como muitas crianças ficavam fazendo... Mas ele me abraçou. – Nessa hora, Elise não suportou, e chorou tão intensamente quanto Petros chorara.

– Eu sempre choro quando lembro disso... Eu me senti gente naquele dia, sabe? Igual tô me sentindo hoje. Eu pedi desculpas pra mãe do menino, e agradeci à ele. A mãe acenou dizendo "tudo bem, tudo bem", mas deu pra ver o ar de nojo no rosto dela. O menininho me deu um beijo no meu rosto... tava tão sujo, meu rosto, sabe? E depois foi embora... – Elise soluçava e fremia enquanto chorava. Apoiou o punho nos olhos tentando em vão parar de chorar, mas estava tão frágil que logo desistiu.

Petros à acompanhava no choro, segurando sua mão após Elise desistir de apertar os olhos. Cada ato que a velhinha fazia, o lembrava vigorosamente de uma criança perdida. Petros enxugou os olhos, e deu um beijo na mão de Elise, enquanto fitava o sentimento em cada lágrima dela.

– Você fala que sua lembrança mais feliz é quando foi abraçada, e eu falo que a minha foi todas as viagens que fiz... Estou tão envergonhado. – O bom velho não conseguia parar de chorar, mas após se conter, prosseguiu:

– Mas eu não sou somente um poço de felicidade. – O choro deu lugar para um olhar sério e aflitivo, após um longo suspiro.

– Quando eu era criança, meu maior medo era meu pai. Ele era um monstro. Ele batia na minha mãe quando chegava bêbado em casa. Uma vez trancou eu e minha mãe do lado de fora da nossa casa. Tivemos que dormir na casinha da empregada que ficava no nosso quintal.

O olhar de piedade de Elise duplicou o sentimento confuso que Petros sentia no momento. Estava tão frágil aquele ponto que até validou que o suicídio da jovem que vira poderia ser uma opção para afogar aquele sentimento que adormecia escondido, mas que acordara com uma grande fúria.

– Lembro que, na hora do jantar, era ele que comia primeiro, e o que sobrava era para eu e minha mãe comer. Mas até aquele ponto, eu ainda o amava, o admirava por ser rico e poderoso, e na escola me gabava por todos me conhecer por ser filho do homem mais rico e influente da cidade. Mas isso passou rápido... – Petros fechou o punho na mesa com tanta força que suas veias saltadas pareciam que breve explodiriam.

Ao continuar, sua voz veio trêmula, mesclada de humilhação e ódio, dois sentimentos incabíveis ao gentil Petros Alphard.

– Uma vez, eu e meus primos chegamos em casa após meu treino, e ele estava na sala. E foi aí que eu queria mostrar uma imagem de boa família aos primos, que raramente iam em casa, e decidi cumprimentar meu pai um beijo no rosto. Eu nem cheguei a encostar meus lábios na bochecha dele, ele me deu um tapa na cara. Eu caí no chão por causa da força dele, e ele me disse que não criou um homem para ser bicha! Tudo isso na frente dos meus primos.

Elise estava espantada e ao mesmo tempo emocionada com tudo aquilo. Lágrimas não caíram, mas Petros viu que seu coração estava partido apenas pela força de seu olhar.

Continuou dizendo que o pai se suicidara com a crise de '29, e que após isso o próprio Petros conseguira reerguer a fortuna da família, trazendo bons tempos e felicidade à mãe que há muito havia esquecido esse sentimento. Petros também contou que ficara feliz com o suicídio do pai, e seu ar gentil retornou ao seu rosto.

O bom velho resolveu fazer mais um café e desconversar assuntos tristes, mas havia uma dúvida engasgada com ele, e essa dúvida não queria se calar, e logo após se sentar à mesa trazendo mais dois cafés, disse finalmente:

– Elise, por favor não se ofenda, mas eu queria muito lhe fazer uma pergunta. – Esperou o aceno de consentimento, e então prosseguiu:

– Eu gostaria de saber como você chegou às ruas... à ser uma...

– ... Mendiga? Ah, Senhor, não vamos falar disso. É uma coisa muito triste, e acho melhor parar de histórias tristes. Vamos aproveitar com histórias engraçadas!

Ao ver o desapontamento nos olhos do bom velho, Elise decidiu contar, por fim, mas o fez prometer que não choraria e não pediria detalhes. Ele assentiu, e então ela começou:

– Bom, eu morava no interior, numa cidadezinha bem pequena chamada Misttown, com meus pais. Eu era filha única, e vivíamos muito bem, até. Mas um dia, ao que parece, meus pais foram confundidos com outro casal que devia alguma coisa para alguma pessoa que nunca me interessei saber, e eles foram mortos em casa por uns homens contratados. Eu fugi sem eles me verem, e cheguei aqui. E aí fui vivendo. Cheguei a me vender, sabe... entrava em filas de caridade e coisas do tipo...

Petros forçou não chorar ao ver que a criança dentro de Elise ainda estava viva e pulava freneticamente pelos seus olhos. Era realmente uma sobrevivência, não uma vida. Petros deixou uma lágrima cair.

Desconversaram para não caírem no choro novamente, enquanto saboreavam uma quiché, e olhavam ora a decoração que já estava se tornando enfadonha, ora o céu cinza lá fora, sustentando as últimas horas da terra.

No silêncio, Petros notou que Elise "farejava" algo. Logo ela disse algo sobre um cheiro bom, que Petros logo relacionou ao café, mas no final era o cheiro de seu perfume.

– Ah, é meu perfume... Bom, né? – Disse o velho esbanjando gentileza.

– Deve ter custado os olhos na cara – Riu-se Elise, o fazendo sorrir, mas logo Petros encarou a brincadeira.

– Foi mesmo! Mas de que adianta, vamos morrer mesmo? – E riram os dois, encarando a situação que estava prestes à ocorrer como mais um fato cotidiano, mas dentro de poucos minutos toda a cidade pareceu prender a respiração. E outro café foi bem vindo, e pelo que aparentava, mais alguns posteriormente também seriam bem-vindos.

– Eu nunca usei perfume. – Disse Elise, após uns bons minutos já terem passado do assunto em questão. Petros, como sempre, sorriu, e essa foi sua resposta. O que mais poderia dizer à beira do fim do mundo? Não queria mais lamentar, nem sofrer pelo mundo injusto que logo iria acabar. Mas recuperou um grande sorriso quando olhou para o lado de fora da vitrine e viu a rua, e viu, também, que atravessando uma pequena parte da Avenida Antares tinha ali uma solitária perfumaria chamada Lavie's. Petros logo percebeu que Elise acompanhara seu olhar e viu o brilho em seus olhos que iluminava o resto do dia, e do mundo.

O bom velho levantou-se e puxou Elise pelo braço, e saíram os dois rindo pela rua, correndo feito crianças, atravessando ora dançando, ora pulando a parte vazia e solitária da Antares. Finalmente, em meio de risadas infantis e bobas, chegaram à Lavie's.

Na vitrine, frascos de perfume refletiam o branco do céu e o frio ameno que fazia. Brilhavam frascos coloridinhos com nomes em francês e altos preços. Atrás dos fracos, cartazes com propagandas forçadas com modelos cheios de si em esbanjar sua cara cenográfica de desprezo.

– Vamos, Elise... escolha um.

Os olhos da velhinha brilharam ao ressoar da frase. Pegaria e usaria um perfume, e fazia questão de pegar o mais caro, mas logo seus olhos encontraram um frasquinho cor-de-rosa, e instantaneamente mudou de ideia.

– Como vamos entrar? – Perguntou ela.

– Vamos quebrar o vidro, oras. Seremos ladrões! – E riu-se Petros, excitado com a ideia de finalmente quebrar algo.

O velho fez uma fisionomia como se gozasse de juventude e os dezoito anos estivesse em seu rosto. Pegou a jaqueta, enrolou-a no punho e deu um soco revigorado de vontade infantil na vitrine da Perfumaria, que pela surpresa de todos, rompeu-se num estrondo e pequenos cacos de vidro já brilhavam no chão. Petros não estava tão velho assim, afinal.

Elise sorriu ao pegar o frasquinho cor-de-rosa. Sempre gostara dessa cor, e aquele perfume de sua cor favorita parecia ter um aroma tão agradável... Sorriu como nunca antes. Logo, borrifou o líquido cor-de-rosa por todo o seu corpo, o quanto pode, até estar encharcada do perfume. Aproximou-se de Petros e perguntou se cheirava bem. O velho, por sua vez, farejou o pescoço de Elise e sorriu. "Está muito cheirosa!" Exclamou ele sorrindo. E então, voltaram correndo pela Avenida.

Antes de entrarem no Café Vita, viram que por ali perambulava um cachorro com a língua para fora, se divertindo em andar sozinho pela rua. Os velhinhos trocaram um olhar bem significativo, e então, tocaram o cachorro para dentro da cafeteria, afinal, uma tortinha não faria mal.

Os dois e o cachorro entraram, e logo o cão saiu pulando pelo estofado da cafeteria, mas logo pareceu até sorrir quando Petros pegou umas quichés e colocou no chão para ele comer.

– Vamos dar um nome para ele? – Perguntou o bom velho sorridente, aproveitando ali para descarregar toda sua vontade infantil de ter um "melhor amigo do homem" chamado Max. Por final, Elise assentiu que o nome do cachorro seria Max, para a felicidade do dia do velho.


O dia passava, e era estranho pensar em como se divertiram em um tempo curto. Toda a diversão escondida pela vida de regras ou pela sobrevivência à rotina árdua estava sendo aproveitada dentro da cafeteria, agora com o cãozinho Max sendo o centro das atenções.


Em questões de segundos, um silêncio pesado encheu o mundo. Uma reflexão da vida passou como um filme diante dos olhos de todo ser vivo. Pesava agora na consciência que logo iriam morrer, e o desespero não se calou. De dentro da cafeteria, agora, como uma crise que afetara todo o mundo, ouvia-se gritos e choros altos, estampidos de revólveres e um estrondo de ossos quebrando com o impacto no chão. A ideia do suicídio era mais reconfortante do que esperar ser explodido por um meteoro. Petros chorou ao pensar nisso. Elise apenas olhava para fora, pensando em como sua vida seria ótima se aquilo tivesse acontecido muito antes, muito antes de restar apenas algumas horas para o fim do mundo. Mas não reclamou, nem chorou a injustiça do mundo, pelo contrário... Agradeceu por se sentir humana nas últimas horas de sua existência. Ela há muito tempo tinha esquecido de Deus, nem pronunciava mais a palavra "Deus" ou "Jesus", mas nesse momento agradeceu à Deus por Petros estar ali, sendo sua mãe, seu pai, ou nos devaneios mais profundos, seu amor, seu amante. Isso fez Elise soltar uma frase sem processá-la ou pensar, mas não se arrependeu, somente a verdade competia lugar com o silêncio agora.


– Sr. Petros, eu gostaria de ter conhecido o senhor antes... Eu acho que teria me apaixonado por você.

Petros ainda tinha lágrimas nos olhos, e em meio ao choro fraco, envolveu as mãos com fuligens de Elise nas suas, com um sorriso que aparentava triste.

– Sabe Elise... eu acho que estou apaixonado por você...

Elise corou, mas não teve tempo para uma resposta, pois nesse momento um clarão que doía os olhos irrompeu no céu, e uma luz gigantesca e barulhenta rumava com uma velocidade monstruosa à terra.

– Elise, você gostaria de morrer comigo? – Perguntou o velho, com o cachorro Max em seu colo, sem esconder o desespero nos olhos.

– Eu adoraria – Elise sorriu.

E um clarão explodiu a terra.


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