Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 57
"(In)Confidências"


Notas iniciais do capítulo

Fiquei tão contente que o capítulo anterior foi do agrado de todas, só tenho a agradecer. Posto este ciente de que não saiu metade do que era suposto. Além de tudo ainda ficou longo, muito longo então só posso desculpar-me e espero que não se macem muito lendo.



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Dizem os sábios, ou os que se consideram como tal, que é no seio da adversidade que o Homem se conhece realmente e melhor desvenda o próximo. Talvez assim seja porque, querendo ou não, evapora-se mais um pingo de inocência, da crença por vezes inabalável de que todos são infinitamente bons, equilibradamente justos e incapazes de atos ignóbeis.

A entrada em casa fora tumultuada ajustando-se à intempérie que se vinha arrastando há mais de quarenta e oito horas. Francisco aguardava os progenitores num agito implacável que atarantava Matilde pelo que, ao sinal de chegada, lançou-se no encalço deles esticando o corpo no limite de suas forças e arregalando os doces olhos para com eles atestar a presença de Melissa. Confirmações efetivadas e prontamente o casal tratou de apaziguar as questões do pequeno que lhe saltavam da boca como bolas de canhão lançadas à toa. Ainda atordoada pelos vapores do éter, Melissa deu-se ao necessário banho sem mover nada além das reticentes pálpebras. Para ela, a noite seria de um sono cavado nas rochas entre o pesadelo do que lhe sucedera e o descanso do regresso ao lar. Sob o olhar atento e preocupado de Francisco, dividem a estreita cama do quarto da menina pois que o medo da perda exacerbara os instintos protetores do pequeno e somente ali, com a irmã ao seu lado, se entregou enfim à plácida terra dos sonhos.

O lúgubre e imenso dia atinge então a luz do crepúsculo e com ele vem também, como nuvens de algodão macias e reconfortantes, as primeiras sensações de alívio e temperança que por esta altura refreiam as mazelas dos Vieira. Envolto no tecido aveludado do reposteiro que pende da janela, embrulhado nas duas peças do pijama, Edgar contempla a vidraça, detendo-se nos pontos de luz que vão avivando os candeeiros da rua. A opacidade verde dos olhos e o mover lento das mãos uma na outra, revelam o quão longe vagueiam seus pensamentos e o suspiro que lhe inflama pesadamente do peito, antevê a clara estafa. O fino uivo da porta abrindo-se perante Laura retira-o deste enlevo e, sorrindo, dirige-se a ela estendendo os braços ao longo do espaço onde a jovem se refugia sem delongas. O penhoar conserva-lhe a temperatura amena do corpo mas é Edgar quem lhe proporciona o verdadeiro conforto. Porém, a mente do jovem fervilha, conjeturando as últimas contingências e os pormenores que adiara em prol de bens maiores mas que agora se fazem prementes de elucidação.

Edgar: Laura, eu sei que não é o momento, que você precisa repousar mas as dúvidas me atormentam… eu preciso entender o porquê de tudo isso ter-se passado – murmura sem pôr cobro ao entrelaçar dos corpos.

Laura: Eu conto, também sinto necessidade de desabafar – concorda fitando o marido e erguendo a mão esquerda para lhe afagar a face. – Mas antes, quero que fique claro que te amo e nada do que tenha acontecido no passado ou no presente vai mudar isso – declara enternecida escolhendo o tom apropriado ao colóquio acerbo que se seguirá.

Edgar: É grave… seus olhos não mentem – observa.

Laura: Sim, e desolador. E por mais que eu tente achar as palavras certas para te contar, sei que jamais tal será possível – acrescenta afastando-se cuidadosamente dele. – Não quer sentar?

Edgar: Estou bem assim. Por favor meu amor, diga logo que eu estou ficando impaciente – solicita alisando nervosamente os cabelos humedecidos pela água do banho.

Laura: Assim sendo… – concorda certa de que maiores rodeios não trarão o efeito do bálsamo.

O relato, contudo, não principia de imediato. Por entre as sombras funerais que banham o casal através da janela competindo com os estreitos clarões das velas, Laura ajeita-se na beirada do leito de forma a encarar o jovem marido que insiste em manter-se em pé. Destaca-se a seriedade em ambos os semblantes, fortalecida por uma mansa doçura que só aos amantes realmente apaixonados e cúmplices contempla e, na maciez das bocas que se olham desejosas de nada dizerem, ambos respiram profundamente, procurando coragem e alento. Só então, e em retrospectiva, se dão as primeiras explanações com as quais a jovem busca estabelecer os alicerces de tão perniciosos acontecimentos, recuando como tal à ausência de Constância aquando da premeditada visita.

Laura: Entrei no meu antigo quarto – recorda esboçando um tímido sorriso – e por lá me perdi nas memórias. Entretanto percebi que Luzia me espiava junto à porta. Ela parecia inquieta… estranhei quando tentou impedir-me de descer e só então, quando atingi as escadas, soube o porquê. Era a voz da… – interrompe momentaneamente engolindo em seco o impropério que automaticamente atribui ao nome que se prepara para dizer – da Catarina.

Edgar: Da Catarina? Como assim Laura? O que a Catarina fazia na casa dos seus pais? – questiona sucessivamente atónito com a estranha presença.

Laura: Ouvi muito pouco mas bastou para entender que ela acusava minha mãe de ser a responsável pelo incêndio no teatro – conta levando as mãos ao rosto num esforço de conter a comoção que sente apoderar-se de si.

Edgar: Mal posso crer! – exclama estupefacto indo sentar-se ao lado da esposa consolando-a com um mimo no canto da boca. – Se eu não tivesse presenciado tudo o que ela fez contigo e com Melissa, não sei se a consideraria capaz de atentar contra a vida de alguém. Eu lamento muito meu amor… mas tem algo que ainda não compreendo. Que motivos D. Constância teria para cometer tamanho crime?

Laura: Ao que tudo indica, o medo de ver a máscara de mulher íntegra desfazer-se, … de que Catarina tornasse públicos os segredos atrozes que dela sabia – continua perdendo o controle sobre as lágrimas. – Edgar, ela traiu o meu pai durante anos.

Edgar: Ah Laura… – fala carinhoso apertando a jovem contra o peito, amparando-lhe o sofrimento da revelação parcial. – Agora eu entendo…

Laura: Não é só isso… – adita enxugando a face intentando recompor-se minimamente para a conclusão da prosa. – O comparsa da minha mãe, a pessoa com quem ela provavelmente maquinou o assassinato daquela mulher e de quem foi ou é ainda amante, é… – trava novamente resvalando na coragem de proferir a verdade que acarretará mais um quinhão de desgostos ao rapaz – é o seu p…

Por mais sóbrio que esteja, a sensação que acomete subitamente Edgar é a mesma que escala as paredes cerebrais de um alguém ébrio que perde os sentidos. Laura não consegue finalizar o vocábulo e nem seria fundamental. Cada expressão individualizada em seu cenho franzido e dolente, as palavras palpadas como vidros estilhaçados ao redor dos pés, cortando quem sobre eles se desloca, e a emoção flutuando, transmitem a gravidade do que não concluíra. O nó que se forma na boca do estômago de Edgar, estrangula-lhe o discurso que não se escuta e massacra-lhe o corpo sem laivos de misericórdia. Contorcido num choro mudo e apático, levanta-se de supetão estacando um passo depois como se o ar lhe faltasse e os músculos cedessem, agravando o desespero de Laura que aflita testemunha o choque do marido. Chegando-se lentamente a ele, cogita tocá-lo e esticando uma das mãos, tateia o ombro do jovem com os dedos.

Edgar: Diz que é mentira, que eu entendi errado… – pede guerreando com as constatações. – O meu pai… a sua mãe… – replica enojado. – Que pessoas são essas que nos ludibriaram a vida toda? – indaga consternado.

Laura: As mesmas que nos cobraram condutas irrepreensíveis, atitudes dignas de serem socialmente aceites e que nos repreenderam e condenaram quando optamos pela nossa consciência ao invés da hipocrisia – afirma entristecida.

Edgar: Estou tonto, com uma ânsia de volver o quase nada que ingeri. Mesmo sabendo que o meu pai nunca foi o mais correto dos homens, custa-me saber que ele é pior do que acreditei – desabafa sentido. – Nós não podemos compactuar com essa imundice. Minha mãe e seu pai tem que saber disso – afirma decidido recobrando aos poucos a fluidez do discurso.

Laura: Eu sei, mas não consigo nem imaginar onde buscaremos forças para contar-lhes – admite emoldurando o rosto de Edgar entre as mãos e fitando-o intensamente.

Edgar: Um no outro meu amor – completa envolvendo-a num abraço reconfortante antes de lhe aplicar um caloroso beijo nos lábios.

Permanecem unidos neste enleio lancinante, aparando-se mutuamente e sarando as feridas que a desilusão causara. As ideias, essas continuam perdidas, vagas e incertas bamboleando entre reminiscências detalhadas, que nada mais fazem senão acirrar as mágoas, e os restantes confrontos que não tardarão a eclodir. Aconchegados no leito, aninhados um no outro, ainda trocam mais umas quantas palavras, todas elas relacionadas ao remoinho que os atingira mas, eventualmente, o cansaço extrapola a mente e os olhos cedem. A noite passa sem atropelos de maior, mal dormida para ambos mas discreta.

Um céu alaranjado anuncia a aurora e o dia seguinte a estes acontecimentos amanhece enevoado e triste. A cidade acorda ociosa e, pelas ruas, o fraco movimento do alvorecer é notório. Aqui e ali principia a distribuição matinal de bens porta a porta e, a pé ou montados nos esguios velocípedes, os ardinas da capital apregoam e distribuem os títulos do dia.

Margarida levantara-se cedo, acometida que fora durante a noite por uma enxaqueca grosseira. A face debilmente rosada casa com os tons pálidos do vestido cuja curta cauda ondula monótona pelos cantos vazios da sala ao som pardacento da criada que compõe a mesa para o dejejum. Perto da porta principal da residência, em cima de uma pequena mesa redonda, os jornais diários habituam-se à brisa amena que lhes seca as páginas marejadas pelo orvalho que caíra sobre a calçada de onde haviam sido resgatados minutos antes, somente à espera do primeiro leitor. Ao longo dos muitos anos de casamento, Margarida aprendera que ao marido pertencem as honras de folhear as notícias dado que, sendo ela mulher e dona de casa, em nada lhe favoreceria o conhecimento da atualidade.

No entanto, e ainda que nunca tivesse ousado contrariar tais ordens e argumentos, a boa senhora não passava um dia sequer sem se compenetrar na leitura dos matutinos, contraditoriamente ao que sucedia com a maioria de iguais damas que apenas se dedicavam aos magazines de fofocas. Hoje especialmente, por ventura da enxaqueca ou pelo simples anseio de um pacífico protesto, quebra a regra e sem segundas considerações, toma os jornais em mãos e com eles dirige-se ao sofá. Folheia o “Correio da República” analisando calmamente as linhas críticas tecidas às dúbias medidas governamentais, à exclusão continuada de negros e pobres, à falência de mais uma empresa e, por fim, à estreia de uma nova companhia de teatro no Municipal. “Nada de novo” – pensa amofinada enquanto redobra as longas folhas. De súbito, para um segundo, fechando violentamente as pálpebras e amparando a fronte com a mão esquerda num esforço de amainar a pontada agonizante que a assola. Achando-se refeita, volve lentamente os olhos para o lado trocando os jornais e mal “O Bonde” encontra caminho através dos dedos, a réstia de cor dilui-se no seu semblante assemelhando-a ao mais puro e branco linho. A manchete negra sobressai qual nódoa incrustada e o tremor implacável das mãos e o olhar embaciado dificultam a leitura. Em letras legíveis a considerável distância, o insalubre diário noticia a tragédia do dia transato: a morte de Catarina e a consequente prisão de seu noivo e executor, Fernando Vieira, num tom jocoso e dramático que intenta manchar o pomposo nome dos Vieira.

A avalanche pestilenta que de Margarida se apodera parece matá-la aos poucos. Quer levantar-se, gritar por auxílio ou alguém que lhe desminta a razão mas o sal que lhe verte ao longo das maçãs do rosto entorpece-a naquela posição e nem os olhos consegue despregar do jornal quando a voz de Bonifácio rompe o silêncio descendo os degraus.

Bonifácio: Margarida, ajude-me aqui com o nó da gravata que hoje não vejo meios de acertá-lo – ordena aborrecido e alheio às descobertas da esposa. – Margarida, venha aqui que eu não tenho o dia todo – repete exaltado.

Ao notar a falta de gestos no corpo que de costas se demora sentado no sofá, Bonifácio sente um leve formigar de preocupação e aproxima-se de Margarida, observando o pulsar das veias no pescoço da senhora. Insensível, tendo verificado os vivos sinais, volta a evocar pela esposa num tom acirrado.

Bonifácio: Ah, logo vi. Foi ler o que não lhe compete e emocionou-se com algum auto social que esses jornalistazinhos de botequim adoram publicar – comenta roçagando a vista nos jornais. – Acaso morreu alguém para você estar nesse estado lastimável e fingir que não me escuta? – indaga sem se deter nos títulos.

Margarida: Fernando – sussurra chorosa apoiando-se no braço do sofá para erguer-se. – Veja você mesmo Bonifácio – completa indicando-lhe o diário.

É sem surpresas que o industrial se mostra soberbamente alienado do cárcere do filho bastardo. A raiva por ver seu sobrenome estampado na primeira página do jornal associado a um ato criminoso é indubitavelmente maior do que qualquer sentimentalismo paternal que não se atreve a demonstrar e no meio da irritação, escapa-lhe um riso de escárnio.

Margarida: Por Deus Bonifácio! Como pode rir da desgraça do seu filho? – repreende desolada.

Bonifácio: Arre Margarida, porque é engraçado – gargalha nervoso atirando o emaranhado de folhas contra a poltrona à sua esquerda. – Veja bem, a meretriz que seu adorado filho quis tomar por esposa foi-se… como num desses contos romanceados que você tanto aprecia… pereceu às mãos do amante.

Margarida: Precisamos ir até à delegacia… contratar um advogado que defenda Fernando – fala ignorando a pilhéria do marido.

Bonifácio: Pois nem pense em sair dessa casa – proíbe autoritário encarando a inconsolável senhora. – Não quero minha mulher nas bocas desse povo maledicente por ter entrado numa delegacia. É suficientemente embaraçoso que esse rapazola inconsequente tenha difamado o meu nome em praça pública. Por mim Fernando pode apodrecer na jaula imunda onde o devem ter lançado. Jamais moverei um dedo para favorecê-lo – opõe-se retomando o ódio na voz. – Agora ajude-me com este nó que eu já perdi muito tempo com este assunto e a fábrica não espera.

Diante do absolutismo de Bonifácio, o instinto primário de Margarida é o de cumprir à letra o desígnio deste. Todavia, as palavras de Laura aquando da sua última visita a casa do primogénito ecoam-lhe à ideia e após uma breve pausa para organizar as ações, Margarida recua os membros e, pela primeira vez, contesta uma disposição do marido.

Margarida: A minha dor de cabeça piorou. Com todo o respeito que lhe devo, meu marido, vou-me recolher. Peça ajuda à criada se assim achar por bem.

De olhos postos no tapete, envergonhada e temerosa das sequelas que deste ato poderão advir, porém insuflada de audácia, Margarida percorre o espaço que a separa do andar superior perseguida pelos berros de Bonifácio que em fúria e descrença brada por ela. Sem dar azo ao arrependimento, sobe ligeira os degraus da longa escadaria, escondendo a lividez do rosto mas firme de que à saída do marido, voltará a rebelar-se.

O orvalho que a aragem deposita nas copas das árvores ao redor da residência turva a imagem de seda tecida pelos vidros da janela que Laura perscruta da poltrona aos pés do leito. Absorta, amansa a náusea matutina com um afago no retângulo de pele nua entre o peito e o pescoço e na cama, Edgar move-se anunciando o despertar. Os dedos curiosos palpam a extensão de tecido ao seu lado procurando pelo corpo da moça mas a delonga é deveras assustadora e a confiança no tato desvanece. Abre os olhos e ao acomodar-se nos travesseiros sorri desafogado com a imagem com que se depara.

Edgar: Hei! – exclama clamando por atenção. – Está tudo bem meu amor?

Laura: Aham – responde num leve aceno afirmativo espreguiçando as pálpebras. – Acordei um tanto indisposta mas já me sinto melhor. Nada de anormal tendo em conta o meu estado – acrescenta acariciando o ventre sob a camisola esboçando um sorriso.

Edgar: E o que um marido atencioso como eu pode fazer para melhorar esse mal-estar? – pergunta deslizando dengoso até ela.

Laura: Hum… deixe-me pensar… Creio que para começar um beijo será o bastante – desdobra o corpo de modo a aproximar-se do rapaz que ajoelhado ao pé da poltrona a encara manhoso.

Edgar: Um só? Tem certeza? Olhe que eu estava disposto a colaborar um pouco mais – insinua sedutor aplicando-lhe uma panóplia de beijos do ventre ao pescoço.

Laura: Vejo que o senhor advogado acordou disposto apesar de tudo…

Edgar: Muito… e devo-o a você… depois de quase te perder, tenho certeza… eu não vivo sem ti Laura.

A declaração entre olhares apaixonados culmina num beijo elaborado em tons de bege e as mãos investigam a sensibilidade alheia buscando o mútuo consentimento. Pausadamente dá-se o reencontro dos corpos. As vestes sedosas aquecem o estofo da poltrona enquanto Laura e Edgar aplacam o turbilhão das horas volvidas nos lençóis ainda cálidos, sem pressa, sem interrupções, sem outros devaneios além daqueles que invadem a mente nos momentos de amor.

O suceder dos minutos tem o efeito de um fósforo em contacto com a pólvora e a notícia espalha-se sem reservas no andamento dos ponteiros que estimulam a cidade. À mesa do dejejum, solitária, Constância encara com enfado a xícara do café. Sem Assunção, que há dias havia partido em viagem diplomática, e Albertinho, que encafuado nos lençóis da cama ainda recuperava da farra da noite anterior, a baronesa remói a sensação de abandono que sempre receara evocando a contra gosto a acareação com Laura. Hoje, nem a fiel criada enfeita o ambiente na sua companhia já que o mal-humorado despertar da senhora a afugentara. O trago que leva aos lábios não tem aceitação por parte do paladar e o azedume dos sentimentos que a galgam, qual mar invadindo as dunas, leva Constância a retirar-se da mesa. Deambula alguns instantes junto aos móveis, afogando os olhos nos retratos de família irrepreensível que decoram a sala e a dor da perda, que à luz materna lhe incendeia o coração, traduz-se nas mensuráveis gotas de água que lhe alagam a face. É no decorrer deste périplo matinal e sensível que então esbarra nos mesmos jornais e deste modo ganha ciência da tragédia envolvendo seus rivais. E se em Margarida estas conceções insubordinam e castigam, em Constância tem o doce gosto do mel. Num ápice, estanca o discreto choro, substituindo-o por um semblante iluminado de megera por quem o destino vencera uma batalha.

A alvorada preguiçosa e enlevada de Laura e Edgar prolonga-se até às nove horas, conivente com o sono que ainda cerca as crianças. Espreitando o céu sisudo e húmido lá fora decidem não sair. O dejejum, no entanto, faz-se premente e, obstante de recusa, buscam o conforto alimentar à farta mesa que Matilde provera com requinte. Antes, porém, de nela se acondicionarem, o toque do telefone adia a refeição e a ausência providencial da empregada destina Edgar ao paradigma do socorro. Do outro lado da linha, chove num soluço desesperado a voz de Margarida. Atropelando o próprio discurso, elucida o filho acerca do sucedido ao caçula e sua medonha noiva e, porque por norma aos olhos dos progenitores são fracos os argumentos que recusam o apoio e auxílio entre irmãos, Margarida lança o apelo.

Tal como no dia anterior, quando o resgate de Laura revelava no regresso ao lar a perda eminente de Melissa, Edgar sente aquele exato aborrecimento destemperar-lhe as veias. Ali ao lado, desconhecendo o relato da sogra, Laura aguarda impaciente por uma explicação que decifre o semblante sombrio do marido. Embora à revelia, o cunho justo e compassivo do jovem ressalta e, após um breve silêncio para repor as ideias e o ânimo, Edgar instrui a aflição da senhora.

Edgar: Mãe vá até à delegacia e espere-me à porta. Não entre sem eu chegar, e se alguém a abordar nada declare. Vou tentar chegar primeiro e logo vemos o que se pode fazer.

Laura: O que foi agora Edgar? – questiona intrigada.

O agito descompassado das mãos de Edgar sucede com dificuldade na devolução do aparelho ao poiso de origem e perante o interrogatório da esposa, o advogado explica-lho resumidamente sem sossegar.

Edgar: Fernando… foi preso – conta ainda aturdido. – Minha mãe está desesperada.

Laura: Preso? Porquê? O que aconteceu de tão grave? – repete assustada seguindo os passos errantes do marido à procura do paletó.

Edgar: Não estou certo mas ao que consta foi preso por assassinato… Fernando é responsável pela morte de Catarina.

Laura: O quê? – reage num misto de espanto e descrença.

Edgar: Parece que saiu no jornal, não sei. Laura, me desculpe meu amor mas preciso ir ao encontro de minha mãe – despede-se apressado. – Mais tarde conversamos direito.

Ao bater desavisado da porta, Edgar toma o rumo da delegacia e no serpentear das curvas, não tarda a perceber o burburinho de escárnio que alimenta os transeuntes. Acercando-se do destino, varre os metros à sua frente e logo avista Margarida que cabisbaixa e agoniada o aguarda como planeado. Lá dentro, o delegado Praxedes recebe-os sem pompa ou circunstância, confirmando em breves vocábulos aquilo que o diário apregoara desde o alvorecer.

Das paredes em pedra enegrecidas e sujas, escorrem, desordenadas e pachorrentas, algumas gotículas de água patenteando a erosão. Erguem-se três, flanqueadas à frente por um muro de grades calcificadas que completam desta forma o cubículo prisional. O odor fétido a humidade e decomposição, tão intenso e vigoroso que aos olhos mais sãos se crê ser visível, condimenta a meia-luz imposta pela clausura e no chão, mergulhado nas trevas revoltas da mente, jaz sentado Fernando, ou o cadáver moribundo do que dele restou. O parco feixe de luz morna que invade a cela através de um insignificante postigo intensifica-se à medida que o bater intermitente dos passos no corredor se encurtam e ao levantar o queixo, Fernando avista os dois espectros que o visitam. Em Margarida, o choque com tudo o que vê conflitua com os aromas nauseabundos mas a hipérbole da comoção apodera-se da mulher e, com os dedos circundando as grades, chama pelo filho que o coração adotara ainda na tenra infância.

Fernando: Vieram rir ou crucificar-me por ter jogado duplamente o bom nome da família na lama? – solta azedo recusando-se a receber as visitas.

Margarida: Filho! … Venha até mim, deixe-me vê-lo – implora enternecida. – Você não sabe como me destroça o coração ver-te assim Fernando.

Fernando: Porque ainda me olha desse jeito D. Margarida? – inquere intrigado rastejando lentamente até ao gradeamento.

Margarida: Porque sou sua mãe Fernando… e te amo meu filho – justifica-se apiedada.

Fernando: Persiste em tratar-me como seu filho quando não o sou! Eu não quero mais… não quero entende? – berra em surdina. – Não posso arcar com o amor de mãe que diz ter por mim se hoje mesmo eu cavei a sepultura de toda a sua família… manchei a sua vida – profere divagando sobre o plano que tecera com Catarina e o qual desconhece não ter sido levado a termo.

Edgar: Fernando pare com isso! – interrompe assustado com os delírios do rapaz. – Não vê que mamãe já sofre em demasia?

Fernando: Cale-se Edgar, cale-se! – esbraceja alucinado e enraivecido.

Margarida: Não fale assim meu filho. Você errou sim mas eu não vou abandonar-te Fernando.

Fernando: Pois deveria. Vá embora mamãe, vá. Divorcie-se do crápula que tem por marido e vá ser feliz. Eu fiz pela senhora… paguei para divulgarem o caso pensando no seu bem, no seu futuro. A senhora não merece o desrespeito com que Bonifácio Vieira lhe paga anos de desvelo. Não leu no jornal? Está lá, está tudo lá… as provas da traição – afirma peremptório causando um temeroso assombro em Edgar que finalmente compreende as entrelinhas do colóquio do irmão.

Margarida: O que diz Fernando? O que há com você meu filho… que te fizeram? – questiona-se inocentemente irrompendo num pranto.

Edgar: Fernando, não faça isso… nós estamos aqui pelo que te aconteceu. O que quer que seja que planeou não saiu como julga – insinua desconfiado da obra maior que o rapaz possivelmente fabulara para pôr a descoberto o segredo libertino do progenitor e Constância.

Fernando: Como não se eu paguei a preço de ouro? – exaspera-se cerrando violentamente os punhos nas grades da cela.

Margarida: Parem, parem vocês dois que eu não entendo do que falam… não aguento mais – suplica atordoada beirando o cume do desespero.

Atentando à prece da mãe que, a esta altura, sentindo-se já no limiar das forças titubeia nos gestos, porém não nas palavras, os jovens levam a contendo o ínfimo intervalo essencial para folgarem as respirações. Entreolham-se os três, num frenesim que oscila entre a curiosidade e o pavor e, nisto, o discernir de intuições torna-se tão dúbio que nada se distingue concretamente. É então que, mais uma vez, Fernando logra para si a responsabilidade do resumo desferindo o golpe de compaixão sobre as penas da mãe.

Fernando: Por anos a senhora foi desrespeitada e traída debaixo do seu nariz, ou devo dizer dos nossos, … não é mesmo Edgar? – prossegue cínico fuzilando o advogado que lhe dera mostras da sapiência deste caso. – E se não me crê mamãe, pergunte ao meu caro irmão se acaso minto ao afirmar que, durante longo tempo, o Sr. Bonifácio partilhou com, nada mais, nada menos, do que D. Constância Assunção, a alcova luxuriosa que possui não muito longe daqui.

Estivesse Margarida fadada a desfalecer neste nebuloso dia e a hora seria esta. Ante estes desdobramentos inoportunos, qual espiga de milho ao livre sabor do vento, o corpo da senhora balança rijo e desprovido de resistência rumo à cova ininteligível que lhe cavaram à volta.


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