Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 56
"O Último Voo da Cotovia"


Notas iniciais do capítulo

Meninas mais uma vez muito obrigada pelos comentários e carinho de todas vocês. O capítulo de hoje dedico especialmente à Manu que numa hora de aflição me valeu com a ideia que aqui se desvenda. Portanto, divido os créditos desse capítulo contigo mana.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/346165/chapter/56


“Matei-te! Pois não julgues tu que tal me alegra.

Guarda-me amor onde estiveres,

Leva-me contigo e castiga-me as defesas.

Não me molestes porém por te ter devolvido,

À clara luz negra de incertezas."


As malas abertas sobre a cama gentilmente amarrotada e as portas do armário escancaradas, facilmente poderiam denunciar a passagem de uma forte ventania pelo quarto empestado de vulgaridade onde Catarina construíra, ao longo dos anos, sua alcova desprovida de pejo. Numa azáfama sobranceira e rara, semblante apressado e arredio, a cantora resvala entre um e outro recanto do cómodo, apanhando às avessas seus pertences mais pessoais, os quais vai lançando ao interior das malas sem cuidado ou preceito algum.

É no decorrer desta ação, digna de um trem que atropela estações, que Fernando vem encontrar sua presunçosa noiva. Sem se fazer notar pelo toque na porta que o elevado grau de intimidade lhe dispensa, passeia-se da entrada ao interior, carregando na mão oposta à da bengala, uma mala acastanhada de proporções comedidas e no rosto a estranheza de quem desconhece as razões do que presencia.

Fernando: Catarina, o que houve, para quê tanta pressa e todo este amontoar de vestes? – questiona intrigado e confuso. – As malas de nada nos servem sem as passagens de navio e essas ainda não as comprei já que não acertamos a data para a partida – acrescenta tentando em vão abrandar o ritmo alucinante da jovem.

Catarina: Não, não, não Fernando – gagueja nervosa repetindo a contestação. – Precisamos partir o quanto antes pois mais uma noite aqui deitará tudo a perder.

Fernando: Do que falas rouxinol? – insiste na pergunta que lhe grita aos cinco sentidos.

Catarina: Do óbvio, oras! – exclama sobressaltada com a fraca assimilação do pretendente. – Tudo sucedeu mais cedo do que previ e Melissa já divide o nosso teto – conta sorrindo vitoriosa. – Por isso não podemos pernoitar na capital, ou julgas que por este andar teu adorado irmão e odiada cunhadinha não deram já por falta da menina? Vamos, apresse-se Fernando – reclama entediada com a letargia do rapaz que, imóvel como uma estátua observa a confusão do quarto e avalia o peso do relato. – Devemos conseguir zarpar no último navio que sai hoje do porto.

Fernando: Melissa... pois claro… havia-me esquecido desse detalhe – murmura cínico camuflando o aborrecimento num olhar perdido que lança à janela em frente. – Porque não relegaste na criada tão árdua tarefa meu amor? – indaga alterando o assunto após a curta pausa para organizar as ideias. – Desse jeito te cansarás em demasia para a longa viagem que nos espera – alvitra estendendo um braço manhoso no encalço do corpo frio de Catarina, puxando-a para si num convite oficial de quem anseia por um atraso que lhe ilumine os pensamentos de súbito alterados.

Catarina: Ai Fernando, não me amole, não agora – responde azeda recusando qualquer mimo que o jovem lhe dispensa intencionalmente. – Despache-se! Até parece que não ouviu o que acabei de dizer – volta a protestar visivelmente chateada com a pouca motivação do parceiro. – Há mais uma coisa, a baronesa ficou de mandar entregar a quantia que nos deve até ao final do dia. Temos que pensar como faremos para recolhê-la atempadamente.

Fernando: Quanto a isso não te preocupes amor meu. Encontrei por acaso o lacaio à porta. Está tudo nesta mala que eu já verifiquei – indica colocando o objeto no banco de apoio aos pés do leito, abrindo-o em seguida de forma a comprovar o chorudo conteúdo.

Catarina: Excelente! A eficiência de D. Constância quase merece meus aplausos – zomba, sossegando lentamente o frenesim pelos cantos vazios do cómodo. – E o resto? O nosso último presentinho está acordado?

Fernando: Claro, tal qual decidimos e, dada a sua pressa, ainda bem que acertei tudo hoje. Só lamento não estar aqui para assistir e aplaudir de pé – confessa em tom reflexivo vagando os olhos ao redor da cama que a penumbra revela irreconhecível. – E minha mãe, … – recorda transparecendo verdadeiro afeto e comoção pela mulher que o criara sem preconceitos. – D. Margarida não merecia nada disto mas não me resta outra opção.

Catarina: O que está feito não tem remédio e se ponderar bem, verá que D. Margarida pode lucrar bastante com o que quer que advenha da nossa surpresa. Agora avie-se Fernando que o nosso tempo urge – conclui seca não prolongando os laivos de sentimentalismo. – Separe suas coisas que eu vou espreitar Melissa e mando a criada arrumar o restante.

Alheia aos turvos devaneios de Fernando, cujo espírito remói as inegáveis contrariedades para com a companhia que lhe fora impingida num momento de fraqueza, Catarina afasta-se com a mesma firmeza no andar com que esvaziara portas e gavetões. No desejo certo de um futuro que secretamente programara a dois, Fernando maquina o passo decisivo à medida que encerra na clausura do couro os valores empoeirados e, em meio às rendas, cetins, perfumes e pós de arroz, despeja informalmente os trajes que lhe moldam o ar cavalheiresco. Esta atividade não lhe consome desta feita muito tempo pelo que, sentindo-se seguro relativamente a presenças indesejadas e firme nas decisões que acabara de tomar, apanha na cómoda meros retalhos de papel abandonado e neles resenha um curto texto. Posto isto, lança-se para a porta averiguando na esquina a aproximação da serviçal.

A dita criada, mulher de meia-idade em quem as pálpebras exauridas pesam a contenda dos duros anos, é pessoa de breves vocábulos. Nela se contém os pilares do bom servir; ser surda, cega e muda além de possuir a destreza necessária no exercício das tarefas que se lhe propõe. É, portanto, sem alarde que atende o chamado sorrateiro de Fernando, aproveitando o momento em que Catarina contempla o sono forçado de Melissa, envolta em névoas dúbias e clarões pensativos num cómodo providencialmente longe do segredar que se faz à luz das sombras do corredor.

Fernando: Ouça bem, tão logo eu saia desta casa com a criança, você deixará em cima da mesa de centro da sala de estar esta mensagem e destrancará a porta da rua. Depois disso, quero que alugue um coche e siga para este endereço – prossegue sem maiores explicações, entregando à mulher os dois pedaços de papel cuidadosamente dobrados e uma modesta quantia em dinheiro que retira do bolso do paletó. – Se fizer tudo como lhe digo, garanto que será bem recompensada – promete, terminando a exposição com recurso à armadilha repetitiva e trivial de que se valem os vilões quando almejam atos de duvidosa filantropia e o silêncio a eles adjacente. – E sobre isto, nem uma palavra a Catarina. Nada pode abalar a surpresa que tenho em mente.

Afundado naquela palidez melancólica que lhe é tão característica, sisudo e absorto na quezília que acabara de comprar sem tempo para cogitar moeda de troca, Fernando abre passagem à criada e entrega-se por momentos ao recosto glacial da parede, deslizando por entre os delgados dedos a bengala, qual artista circense que pondera a próxima ilusão. Minutos depois, quando a obra finalmente se lhe desenha na mente em pormenor, simula a pressa que assola Catarina e, imprimindo agilidade às pernas, rapidamente se acha ao lado dela sem, contudo, se deter na moleza do corpo tenro que descansa aquecido pelas mantas de uma cama ao centro de um quarto onde o pó constata o desuso.

Fernando: Julguei que estávamos com pressa – diz examinando a placidez da noiva que, sentada na beirada do leito, admira Melissa com uma expressão indecifrável.

Catarina: Pensava em como me alegra saber que daqui a algumas horas teremos aberto uma vala tão profunda na vida de Laura e Edgar que tão cedo não se recuperarão – devolve erguendo-se da cama e escapando-se lânguida e mais tranquila para os braços do rapaz.

Fernando: Todos eles vão pagar bem caro por todas as humilhações a que nos sujeitaram. Principalmente o grande industrial Bonifácio Vieira – afirma debochado não escondendo o rancor que nutre pelo progenitor. – Mas voltando ao que interessa, – interrompe recuperando o tom menos ressentido e recalcado enquanto desfere um afago na face da cantora – está na hora de partirmos.

Encarando esta afirmação de Fernando como o mote por que esperava, Catarina desfaz a espécie de abraço que o sentimento avinagrado que os une pedia e debruça-se estendendo as mãos na direção de Melissa. Sua ação porém não logra os devidos intentos, tão veloz e eloquente é o travão que Fernando lhe impõe, tomando-lhe um dos pulsos com a firmeza delicada da mão direita e um sorriso enigmático que não pretende levantar suspeitas.

Fernando: Deixe estar meu rouxinol. Eu levo Melissa. O melhor é você seguir na frente com o grosso das bagagens. Isso facilitará o embarque e assim você poderá fazer a compra das passagens enquanto eu me encarrego de subornar os meios necessários para colocar Melissa a bordo do navio – principia com cautela e segurança na voz, num claro esforço de conciliar as ações com os respetivos dividendos.

Catarina: Tinha-me esquecido desse detalhe! Os documentos de Melissa estão na posse de Edgar – lembra sem por um momento sequer desconfiar das fabulações por detrás da solução providencial do jovem.

Fernando: Pois então, o mais sensato é fazermos como te digo – arremata cordial movendo os lábios ao ponto de desenhar um tímido sorriso. – Tenho um conhecido na alfândega que me deve alguns favores. É chegada a hora de me valer deles. Com esta quantia deves poder pagar o aluguer do coche e as nossas passagens – fala entregando-lhe um valor considerável. – Eu sigo logo após… e ver-nos-emos no porto!

Catarina: Se achas que é melhor assim tudo bem – concorda. – Espero que ela durma pelo tempo suficiente de nos afastarmos deste país – adita fitando Melissa num piscar de olhos. – Mal posso esperar por voltar a respirar os saudosos ares da Europa. Não te demores! Estarei no porto aguardando – finaliza despedindo-se do noivo delator com um insosso roçar de lábios.

Em poucos minutos, não mais se ouve o bater de Catarina no soalho ecoar pela casa e, ainda que a distância não lhe permita perceber o encaixar do trinco na porta que se fecha atrás dela, Fernando sabe quase com exatidão o momento em que a cantora deixa o ninho. Assim, sem dar espaço a outras meditações de cariz arrependido, o rapaz toma Melissa nos braços e lança-se corredor adentro à procura da criada que, no andar inferior, serpenteia ao redor da escada.

Criada: O coche da senhora acabou de partir – informa ao notar Fernando descer os degraus com a criança que segue dormente, aconchegada à toa em seu colo e com a cabeça repousada no ombro esquerdo.

Fernando: Não se esqueça do que combinamos. Eu saio e você deverá fazer tudo de acordo com o que lhe disse – relembra fincando bem a importância do conluio. – Não me resta muito tempo portanto, seja breve.

Aceção comprovada e tudo então se precipita como exposto. A saída da criada em direção ao destino que Fernando apontara no papel, estabelece o paralelismo entre o trote dos cavalos que animam os três coches e o ranger do motor do automóvel dos Vieira que Edgar conduz aturdido e no máximo da fraca velocidade, depois da feroz altercação que há instantes culminara no rompimento das relações maternas entre sua esposa e sua sogra. Ao seu lado mas com as conjeturas do pensamento apartadas pela dor que aos olhos lhe brotam como botões de rosa desabrochando, Laura parece perdida, inspirando os aromas e a brisa que povoam a atmosfera. Ciente do enleio tumultuado que cerca os pensamentos da jovem e igualmente os seus, Edgar não controla o semblante carregado de preocupações matizadas sempre que, de relance, lhe espia o plácido desassossego. Enfim atingem o alvo da demanda e a avidez com que assomam à porta da habitação que não mais pertence a Catarina é praticamente a mesma com que Fernando retoma a marcha a bordo do coche que, por sua ordem, estacara na frente do Teatro Municipal.

A passagem de testemunho, que é como quem se refere à trasladação do corpo de Melissa para outros braços, dá-se sem fulgores despropositados ou interrogações desnecessárias pois que as explanações fulcrais ao entendimento dos adultos envolvidos haviam sido previamente concluídas. O alvo escolhido pelo caçula de Bonifácio para o reencontro talhado recaíra fugazmente sobre o municipal por se situar mais ou menos a meio do percurso entre o ponto de partida e o de chegada o que, razoavelmente, lhe conferia certa disposição sobre o tempo.

Deste modo, e após se certificar que nenhum risco corria quanto ao cumprimento integral do acordo por parte da criada, a quem confiara Melissa e uma soma compensatória, Fernando ruma para a meta satisfeito com o resultado do intento mas incerto quanto à reação de Catarina que, indiferente a tudo isto, o aguarda no porto impaciente.

O punho que Edgar cerra violentamente contra a madeira da porta anunciando-se tem um efeito que nem ele nem Laura esperavam mas que de coincidente nada possui. De lés a lés abre-se a mesma, num convite informal a quem a ela se apresenta num estado de nervos muito comum a quem sente os pés tatearem um profundo abismo. No entanto, o interior nada revela ao casal a não ser o mobiliário disposto com naturalidade, não obstantes as pesadas e negras nuvens que ganham forma no horizonte.

Edgar: Melissa! – chama bradando a plenos pulmões o nome da pequena, perscrutando as primeiras alas da habitação. – Catarina!

Laura: Não há ninguém aqui Edgar – pressupõe diante do óbvio. – Meu Deus, o que será que essa louca fez com a Melissa? – pensa formulando a frase e elevando as mãos ao nível do rosto inchado pelo cansaço e pelo choro rarefeito.

Edgar: Laura veja – interrompe ao vislumbrar um solitário papel amarelado estrategicamente colocado na mesa de centro sem qualquer enfeite que o pudesse encobrir. – Tem o meu nome nele – comprova aproximando-se intrigado.

Laura: Leia – pede agitada.

Edgar: “Querido irmão, a bastarda que tens por filha espera-te no Teatro Municipal.” – lê em alta voz partilhando a inesperada notícia com a esposa. – Fernando! – exclama furioso.

Laura: Você acha que pode ser mais um engodo? – questiona pondo já em dúvida o próprio discernimento.

Edgar: Não sei mas também não importa. Só vendo para crer. Se eles fizeram algum mal à Melissa… – matuta antecipando uma desgraça que contudo não se atreve a terminar.

Laura: Eu não aguento mais Edgar – desabafa exasperada e enfraquecida. – Porquê tanto rancor, tanta maldade? Se ainda fosse connosco mas não, preferiram alvejar a nossa filha.

Edgar: Como eu queria saber te responder meu amor… mas eu também não entendo – retruca compreensivo afagando-lhe as extremidades da face humedecida. – Vem, vamos buscar a nossa menina.

Neste meio tempo em que Laura e Edgar se preparam para o derradeiro exercício que testa, além de tudo o resto, o cerne da paciência humana, Fernando progride através do caroço do hangar de embarque que serve o porto da capital. O corrupio de gente e malas que se atropelam entre si dificulta-lhe a passagem mas, ouvindo o sopro que escapa pela chaminé do paquete comunicando a partida não muito longe dali, acelera o passo resmungando amiúde os encontrões que lhe acertam e depressa avista o alvo final. A uma curta extensão, de costas voltadas para ele encarando a imensidão do mar pardacento que se alonga para lá do alcance dos olhos, Catarina surge submersa na mortalha roxa e lilás que selecionara para o dia.

Fernando: Meu amor… és ainda mais bela emoldurada neste curioso quadro – replica dengoso tocando-lhe o ombro coberto de rendas, retirando-a da distração.

Catarina: Fernando, que susto – protesta azeda e pretensiosa. – Demoraste tanto que já ponderava o pior. O navio está quase pronto para zarpar. Onde está Melissa? – interroga dando pela falta da criança.

Fernando: Não te preocupes meu rouxinol. Cuidei de tudo com o tal conhecido de quem te falei e ele encarregou-se de contornar o embarque de Melissa – mente assegurando-se das palavras.

Catarina: O que dizes? Acaso me achas tão tola ao ponto de crer numa sandice como essa? – averigua visivelmente cética em relação ao pretexto apresentado pelo rapaz. – Ande Fernando, responda, onde está a Melissa?

Fernando: Já te disse e não sei porque razão duvidas de mim – insiste apelando ao cinismo que tão bem conhece. – Até me ofendes falando assim…

Catarina: Você se esquece que nós dois somos o espelho um do outro, duas faces da mesma moeda e por isso me é tão fácil saber que o que dizes é mentira. Pois eu te digo mais Fernando, sem Melissa eu não saio daqui – garante.

Fernando: Ah Catarina, não desperdicemos tempo com coisas sem importância. Venha logo ou seu plano de fuga adiantada morrerá em terra – debocha impaciente esforçando-se por denotar à vontade e desenvoltura diante das suspeitas ainda não verbalizadas pela cantora.

Catarina: Quando eu contei que Melissa viria connosco a princípio você foi contra – afiança evocando a fresca lembrança à medida que a incógnita se deslinda. – Como eu fui burra de ter confiado cegamente em ti – berra dramática num tom inegavelmente colérico. – Você veio sozinho não é mesmo? Confesse Fernando!

Mais um sopro de fumo raia da chaminé do navio emitindo um sonoro gemer e da boca de Fernando nada se ouve. Paradoxalmente, o ódio que neste instante molda os traços de Catarina a nada se assemelha senão a um caótico cataclismo. E, se para os vilões de parco engenho a sorte vacila, o mesmo não se pode afirmar, felizmente, no que a Laura e Edgar concerne. Bastam escassos segundos para que, tendo chegado ao local predestinado no bilhete, encontrem acomodada num banco de jardim próximo a uma das esquinas do teatro, a mulher de meia-idade e o embrulho de gente que lentamente vinha recobrando os sentidos. Se força nos braços tivessem e a natureza dos homens assim o autorizasse, voariam ambos com a pressa que o turbilhão de sentimentos rebate ao vento. Assim, não sendo tal concebível, iniciam a corrida que Edgar vence indubitavelmente, não se tratando, todavia, de competição e, num ápice, Melissa regressa à fortaleza que sangue algum ergue mais alta que o amor genuíno.

Edgar: É ela Laura, é ela – confirma com a menina apertada contra o peito e aliviando o peso da alma num abundante choro.

Laura: Deixe-me vê-la – solicita ansiosa, espreitando o rosto descolorado e apático que pende dos braços de Edgar. – O que fizeram com você meu amorzinho? – questiona-se emocionada, voltando o discurso para a criança cujos olhos se esforçam por entreabrir como que intentando fornecer a resposta.

Edgar: Está dopada mas parece que já se recupera – presume enquanto acomoda Melissa no meigo colo da esposa e enxuga parcialmente as lágrimas que lhe temperam os lábios. – E a senhora – fecha o semblante mirando a criada que em pé balança desgovernada como os ramos das árvores ao som do vento de outono – o que faz com a nossa filha aqui? Fernando, onde ele anda? – interroga enraivecido.

Criada: Não sei senhor – nega tímida e amedrontada lançando os olhos às pedras que lhe suportam o peso do corpo. – Eu só fiz o que me mandaram. Trouxe a menina e esperei que viessem buscá-la. É tudo o que sei.

Laura: Vamos embora Edgar. Mesmo que ela saiba alguma coisa nada mais dirá. Decerto foi muito bem paga – insinua enquanto acaricia as costas e os cabelos desgrenhados de Melissa.

O percurso que os leva até ao automóvel abandonado ao descaso é infinitamente mais leve e demorado do que o inverso. As atenções de ambos pertencem na totalidade a Melissa e nem o faiscar de ideias que naturalmente lhes aflora à mente os desvia deste estado de alma em que as vítimas sobressaem dos escombros da guerra com a mais valiosa riqueza que nela se poderia perder.

No entanto, e porque o destino ainda não prevalecera como delineado para o infindável dia, os mensuráveis instantes que Fernando gasta para reivindicar a si mesmo uma objeção contundente ao interrogatório de Catarina, são os mesmos que ela leva a concluir suas irrefutáveis convicções. Num espasmo que beira o auge do descontrole emocional, a cantora arranca das mãos do noivo o objeto por quem ele nutre tanto desvelo, fazendo menção de com este ferir a carne do algoz.

Catarina: Traidor! Eu acabo contigo Fernando.

Diante dos gritos da moça e do esbracejar tresloucado com que rodopia o forte cabo da bengala na direção de Fernando, o burburinho emudece no cais e todos pasmam para testemunhar a tragédia que não se delonga. O ato em si, todos diriam que proveio da consagrada legítima defesa mas o afinco e violência com que é infligido não deixa dúvidas quanto ao desfecho. A destreza do corpo esguio dá a Fernando a vantagem física necessária para desarmar sem embaraço Catarina e o ódio que sempre acompanha o amor entranha-se-lhe nas mãos, as mesmas com as quais acerta a bengala na fonte da jovem. O fio de sangue que de imediato jorra da cabeça de Catarina e o tombo estrondoso somente amparado pelo chão, constatam o rigor do golpe.

A morte de tão indesejada pessoa chegara de onde menos se poderia esperar e sem o brilho nem a glória que pautaram seus dias em vida. O prelúdio de Constância aquando da despedida cumpre-se assim e o último voo da cotovia cerra as algemas ao redor dos pulsos trémulos de Fernando. A chuva não cai nesta tarde trágica mas as lágrimas ensanguentadas do rapaz fazem jus à dor de quem no fim se revela carrasco de si mesmo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!