Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 55
"Laços Maternos"


Notas iniciais do capítulo

Antes de mais peço desculpa pela demora na atualização. Meu tempo está curto e as ideias que tenho acabam não sendo fáceis de conciliar no papel. Esse capítulo foi especialmente doloroso e revelou-se também o mais longo que já escrevi. De novo perdão mas se o dividisse ficaria sem nexo. Peço também que me perdoem pela incongruência das minhas ideias, sei que não serão agradáveis. Por fim, o meu muito obrigado uma vez mais a todas.



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A incerteza nos sentimentos sempre tem o dom de despoletar no mais racional dos humanos uma ambiguidade marcante. Se a razão brada por calma e paciência para, da melhor forma, desvendar os mistérios que rondam os acontecimentos, o coração encarrega-se meramente de sentir o que, numa situação como a que se propõe a Laura e Edgar, se traduz naquele remoinho pestilento, poderoso ao ponto de abandonar as vítimas em estado de inconsciência. É, deste modo desnorteado e repetitivo, que ambos encaram as explicações nervosas de Matilde não sendo, contudo, capazes de apartar até uma certa amofinação que os assola, tão cansativo e exasperante se mostra este interminável dia.

Já depositada na poltrona mais próxima pelos vacilantes braços de Edgar a quem a constatação da empregada desprovera de força e alento, Laura segue lívida, pasmada e desgrenhada o desenrolar da ação, mimando Francisco que entretanto buscara conforto no colo da progenitora. Em pé e ao seu lado, fiel guardião que vela os tesouros alvo da cobiça alheia, Edgar despe-se do tempo que pouco lhes resta e tateia o discurso interrogativo que lhe invade a boca como uma onda que estala nos rochedos.

Edgar: Matilde, tem certeza do que diz? Procurou por toda a casa, no jardim? Melissa não sairia sozinha jamais, tem que estar algures por aqui.

Matilde: Estou certa Dr., asseguro-lhe que não há no perímetro da residência canto ou esquina em que eu não tenha verificado – atesta ainda soluçando as palavras. – Francisco me procurou na cozinha pedindo um chá para D. Constância… eu nem sabia que a senhora estava aqui e quando cheguei não havia ninguém na sala.

Edgar: Mas então, … claro, como não pensei nisso de imediato?! – exclama arregalando os olhos em fúria numa expressão típica de quem deslinda um enigma nada auspicioso.

Laura: Edgar! Acaso está cogitando o mesmo que eu? Você acha que minha mãe… – indaga querendo não crer no próprio julgamento.

Edgar: E o que mais poderia ser, Laura? Se ela teve coragem de fazer contigo, a própria filha, o que fez, a vilania de levar a nossa menina sair-lhe-ia pouco cara à consciência.

Francisco: A vóvó levou a Mel? – questiona interrompendo as suposições da dupla, erguendo de súbito a face marejada do ombro de Laura onde se afundara a fim de aplacar a angústia que lhe dilacerava o coração.

Laura: Provavelmente para um passeio meu pequeno – responde vivaz contendo qualquer laivo ou aspeto nefasto que da ideia pudesse advir à tenra cabecinha de seu filho. – Vá um instante com a Matilde, passar uma água nesse rosto lindo e não se apoquente que logo sua irmã estará correndo por aí com você – sugere concluindo a prosa enquanto dele se despede com um caloroso beijo na face rosada.

Edgar: Foi ela meu amor, não há outra explicação e para o bem de D. Constância é bom que nada tenha feito com Melissa.

Laura: Se me permito pensar em tudo o que nos sucede por via de minha mãe, julgo que vou enlouquecer – constata levando as mãos ao rosto, tentando abafar a dor que as expressões não escondem. – Vamos manter a calma, de certo ela fez isso para nos assustar, … para me advertir uma vez mais já que a clausura a que me sujeitou não surtiu efeito. Edgar ajude-me a levantar. Preciso de um banho antes de sairmos em busca de Melissa. Já perdemos demasiado tempo – solicita decidida a enfrentar a realidade em meio à exaustão causada pelo caos das infindáveis horas.

Edgar: Não Laura, eu vou, você fica. Está fraca, depois do banho vai comer alguma coisa e repousar – contesta meigo desvendando com afinco o lado protetor que tão fortemente o caracteriza.

Laura: Nem pensar, não vou ficar em casa remoendo a ansiedade enquanto você gladia sozinho por nossa filha. Tratando-se de D. Constância e da racionalidade deturpada que nela se criou, toda a ajuda é bem-vinda. Vou junto e argumentos são escusados – contrapõe erguendo-se da poltrona com cuidado, cambaleando ligeiramente até se sentir amparada pelas mãos firmes do marido.

Edgar: Está vendo, você não tem condições para ir além do conforto do nosso quarto e é para lá que irá agora carregada por mim – afirma elevando-a nos braços e encaminhando-se para a escada. – Vou ajudar-te no banho e depois peço à Matilde que te sirva algo.

Laura: Não Edgar, eu quero estar lá com você. Preciso ter certeza que Melissa está bem.

Edgar: Não insista meu amor. Por favor Laura, você sabe o quanto eu faço questão da sua presença e companhia mas temos que agir com cautela e zelar pela sua saúde e pela do nosso filho que ainda é tão pequeno e aí dentro já passou por um grande sobressalto – alega preocupado. – E Francisco também, ele precisa de nós.

Laura: Está bem, desta vez você venceu senhor meu marido mas, por mais vontade que tenha em ser auxiliada por você no banho, é melhor fazê-lo sozinha. Não quero que Melissa passe mais uma hora na desagradável companhia de minha mãe… – pausa repentinamente depositando a cabeça entre o ombro e o pescoço do jovem – como soa estranho chamá-la de “minha mãe” agora que conheço as coisas de que nunca a achei capaz – prossegue consternada pela confissão.

Edgar: Assim que eu voltar com Melissa e você se sentir melhor, vamos ter uma conversa. Até agora não consigo entender o porquê dessa atitude de D. Constância.

Laura: Posso adiantar que tudo se assemelha a um pesadelo e pior será quando o sossego nos permitir assimilar os pormenores do quanto nos aconteceu em tão curto espaço. Aquilo que levou minha mãe a internar-me naquele lugar é muito grave Edgar e diz respeito a toda a nossa família. Mas, por hora, o que mais importa é termos Melissa segura ao nosso lado – acrescenta preocupada cessando as explanações das descobertas hediondas que fizera, certa do efeito trágico que estas acarretarão uma vez expostas.

Edgar: Concordo! Como sempre, você está certa – assente lançando-lhe um sorriso dengoso. – Trazer nossa filha p´ra casa é o mais premente neste momento.

Entre estas conjeturas desgastadas pelo sofrimento de que padecem na alma e no corpo, entram no quarto de banho, desconhecendo a gravidade da abdução. Mesmo cientes da linha esbatida que (não) impõe limites e escrúpulos em Constância, nem um nem outro aceitam a hipótese de que algo mais grave tenha vitimado Melissa dado que, à mente adulta constantemente se dão por certos os benefícios de defesa e socorro garantidos às crianças desde o berço. Por mais vil que um ser humano possa ser, a ideia de admoestar a fragilidade e pureza da infância, é algo que se teima em recusar, mesmo quando a bússola aponta na direção oposta.

Enquanto as setas da incerteza bamboleiam sem rumo claro, os ponteiros do relógio aceleram o ritmo no compasso da água que vai enxaguando as marcas visíveis nos membros de Laura. O banho orientado pela doçura meiga e cálida das mãos de Edgar que, aos poucos e sem transparecer a pressa evidente, percorrem o corpo desnudado da esposa, termina em olhares de contemplação mútua e sorrisos dolentes e caprichosos que não se deixam prolongar devido à urgência no resgate da pequena. Vendo a inquietação de Laura, mergulhada em meio à toalha que lhe seca a pele, e também ele compartilhando o sentimento, Edgar aperta-a contra si num gesto que chega manso como a brisa e que se revela o combustível necessário à continuação da odisseia prevista como árdua e inglória. O beijo que trocam cerrando os lábios na redoma que a cada dia os une mais, não se delonga além do necessário para transmitirem coragem um ao outro e, deste modo, Edgar parte, deixando Laura entregue à placidez do quarto que o sol mantêm aquecido.

Qual gato que se passeia pelas ervas escorregadias, assim lhe desliza pelo tronco a camisola de seda. Sentada de frente para o toucador, faz menção de pegar a escova que a fita intrigada mas, ao notar-se refletida no espelho, esplêndida na sua própria desgraça, desce os olhos sobre si e acaricia o ventre ainda pouco ou nada nítido, acalentando a nova vida que entre tanto desânimo e choque cresce aparentemente saudável. A brevidade do segundo que passa sem se deixar abater pelo muito que está por vir, é interrompida pela entrada sorrateira de Francisco que, aproveitando a porta entreaberta, se esgueira fincando o olhar cabisbaixo na mãe, implorando em silêncio pelo consolo de que carece. Ao notá-lo ali deveras frágil e inseguro como raras vezes o vira, Laura enverga o manto materno e, num abraço certeiro, recolhe-o para si, aconchegando-o contra o casulo do peito indo em seguida recostar-se na cabeceira da cama sem, no entanto, desfazer a posição. Dividindo as mãos entre o suporte do mirrado corpinho e os afagos nos fios ligeiramente mais escuros que os de Edgar, Laura embala Francisco, tal qual fazia nos tempos em que a idade o mantinha quieto e recluso no amparo de quem o trouxe ao mundo.

Laura: Vai ficar tudo bem amorzinho, … vai ficar tudo bem – garante embalada pelo enlevo afectuoso e apelando à inocência que persevera em assoberbar-lhe os sentidos aguçados.

No período intermediário em que se dão estes eventos, Melissa assomara à sala, vinda da cozinha carregando nas curtas mãozinhas um prato de biscoitos cobertos de um doce amarelado que depressa se revelam de paladar acerbo quando tudo o que entrevê entre as colunas que dividem as áreas de lazer da residência é o espectro de Catarina transladado num sorriso rasgado e nuns olhos de fera que em aparente tranquilidade aguardam a aproximação da presa.

Melissa: Onde está a vóvó? – indaga receosa da resposta palpando o terreno minado com a prudência que o medo lhe impinge.

Catarina: Venha aqui Melissa. Tenho uma história para te contar – fala pachorrenta, gesticulando o chamado com recurso aos dedos, dobrando levemente o corpo de modo a mirar melhor a menina.

Melissa: Não quero ouvir, quero ir embora – recusa chateada e amedrontada pousando o prato no estofo do sofá. – Vóvó, vovó! – chama bradando sem parar.

Catarina: Shh querida… não faça barulho. Não te ensinaram que não fica nada bem a uma menina linda e educada como você sair gritando por aí? – retruca esforçando-se por pôr cobro ao clamor audível de quem prevê o encerramento de um círculo ao seu redor. – Vem, senta aqui comigo e ouça o que tenho para contar.

Melissa: Não, eu não quero você, quero a vóvó, quero ir p´ra minha casa ver a mamãe – persiste iniciando o pranto que a sensação de abandono lhe provoca e abrindo um passo através do qual intenta caminhar para a porta.

Catarina: Você está assustada, eu entendo – diz indo no encalço dela e pegando-a no colo com as contrariedades que o espernear da pequena lhe impõe. – Melissa, não vou machucar-te querida, eu gosto muito de você… só quero que pare e escute com atenção a minha história. Logo você entenderá o que está acontecendo.

Durante incontáveis instantes, Catarina posiciona Melissa ao seu lado no sofá e desfere-lhe brandas carícias, acalentando-lhe suavemente as mãos que o temor gelara, julgando-se a cena tão singela e cordial que quase se pode crer na sua profunda veracidade. Pouco a pouco, o soluçar choroso da pequena vai esfriando por entre as partículas de confiança que se estabelece entre as duas. Aquele estranho olhar terno de Catarina, não se desvenda ao certo se falacioso ou não, analisara-o Melissa por mais de uma vez e, de todas elas, como agora, algo nele lhe difunde uma intensa curiosidade como se o cinismo dos anos funcionasse na cantora como uma janela que apenas Melissa se mostra apta a desvendar. Atenta ao colóquio, desta feita enfeitiçada pelo canto meigo da cotovia, a pequena emudece as vontades da partida e espera o início de um conto que, no núcleo do rigor que lhe será omitido, está longe de ser encantado.

Catarina: Você sabia que eu sou cantora? – principia, ao que a menina responde acenando negativamente com a cabeça. – Pois bem, eu sou, desde há muitos anos – continua esboçando um sorriso vago na direção de Melissa. – Houve uma época em que eu era uma grande estrela e rapidamente o meu talento me levou até à Europa. Ah, eu era tão feliz, sempre enchendo as grandes salas dos mais prestigiados teatros de Lisboa. Um dia eu conheci um rapaz, bonito e muito rico. Nós namorámos mas depois ele partiu… disse que tinha um compromisso com outra moça. Algum tempo depois eu descobri que estava grávida, que seria mãe. Fiquei apavorada… pensei em… bom, eu tive o bebê, uma menina bem pequenininha – recorda titubeando nas emoções levando involuntariamente as mãos ao rosto da pequena que a fita intrigada.

Melissa: Conta mais, por favor. Ela era bonita?

Catarina: Era, muito… como você – prossegue terrivelmente pacífica. – No entanto, o nascimento dela foi difícil, eu sofri muito e a menina nasceu fraquinha dos pulmões, com asma.

Melissa: Mamãe e papai dizem que eu não posso correr porque depois fico com dói-dói aqui – compara apontando para o próprio peito.

Catarina: Isso mesmo! Impressionante como tão novinha você já é tão esperta – sorri. – Continuando, eu não tinha muito dinheiro porque com a gravidez não podia trabalhar então, eu tive que pedir ajuda ao pai da minha bebê – mente, poupando Melissa ao todo da verdade com o único intuito de denegrir o papel da rival e, simultaneamente, elevar-se à condição de vítima. – As coisas não correram como eu pensei, ele era casado e a esposa estava esperando um filho – lembra apoiando-se nas reminiscências dos acontecimentos em Lisboa, alternando sem objeções o tom de voz, atingindo um ódio perceptível. – Ela o ameaçou e eu fui forçada a entregar a minha menina para que eles a criassem sob pena de nós duas, eu e ela, morrermos de fome – termina choramingando o drama que acabara de corromper.

Melissa: Não chore – pede comovida com a tristeza superficial da boa megera.

Catarina: Hoje eu choro de alegria Melissa porque, depois de tantos anos, finalmente eu tenho a minha filhinha de novo em meus braços – solta afastando um pouco o rosto da criança fitando-a como procurando o entendimento do conto no semblante assustado e confuso de Melissa. – É isso mesmo que você ouviu querida, eu sou a sua verdadeira mãe. Você é a bebê da minha história, fraquinha dos pulmões mas muito, muito linda que nasceu de mim.

Uma amálgama de expressões imprecisas desenha-se no semblante de Melissa. Ainda que a limitada ciência da infância não lhe permita compreender o todo da questão que se afirma nos lábios de Catarina, a negação do elo materno analogicamente apresentado é retumbante. Confusa e melindrada, vê os olhos amendoados encherem-se de água e, num impulso, salta do sofá gritando desesperada o nome da única mãe que conhece: “Laura”. O bradar exasperante da pequena apavora Catarina e a calma que a custo camuflara, esvai-se pelos poros da pele ressequida e cicatrizada. Temendo que os vizinhos despertem da tarde bucólica, berra pela criada que sem atrasos a acode.

Catarina: Suba, depressa. No armário do quarto de banho há um pequeno frasco de éter. Embeba um pouco num pano limpo e traga-mo – ordena revirando a atenção entre a mulher que a olha incrédula ao pé da escada e os movimentos sinuosos de Melissa rumo à porta. – Vamos, faça logo o que lhe disse – insiste acirrada ao notar o estado entorpecido da empregada que prontamente se lança nos degraus.

Junto à porta que dá acesso ao exterior da habitação, Melissa cerra os frágeis punhos, arremessando-os em fracas investidas contra a madeira ao mesmo tempo que implora chorosa pela ansiada libertação.

Melissa: Vóvó, mamãe!... Eu quero ir p´ra casa, eu quero a minha mãe…

Catarina: Pare de chorar Melissa. Eu estou aqui, eu, a sua verdadeira mãe – repete insensível apanhando novamente a pequena do chão e recolhendo-a com esforço em seus braços. – Acalme-se querida, ou os seus pulmões ficarão fraquinhos e eu não terei como cuidar de você – prossegue franzindo o cenho num misto de pânico e desalento enquanto agita Melissa numa derradeira tentativa de serená-la.

Nisto, os passos ágeis da criada correndo escada abaixo fazem-se ouvir e quando as mãos da mesma aproximam perigosamente o pano húmido à face da criança, Catarina volta a respirar de alívio. O protesto extingue-se, os membros perdem a destreza do agito e os pequenos olhos inundados de lágrimas fecham-se, elevando Melissa a um completo estado dormente, no qual, supõe-se, permanecerá por longas horas.

Firmando os pés na calçada de pedra que o sol alto vai mantendo aquecida em volta da residência dos Assunção, Edgar abandona o automóvel e apressa-se para a entrada. Luzia não tarda a abri-la e, sem perder tempo com lisonjeias, o advogado rompe pela sala, pousando a vista em cada esquina à espreita do vislumbre de sua filha.

Edgar: D. Constância! – chama. – Onde ela está? – acrescenta interrogando a criada.

Luzia: A senhora saiu Dr. Vieira.

Edgar: Eu vi o automóvel parado aí na frente. Chame-a imediatamente ou eu mesmo a procuro – replica ríspido elevando o tom.

A indecisão de Luzia diante da incerteza das ordens que deve acatar causa-lhe um incómodo notório. Como um bicho atarantado, dá um passo frouxo em frente sem saber ao certo para onde ir e o que fazer mas a sua presença logo se vê ensombrada pelo porte nato de Constância, batendo delicada e placidamente os nobres botins no soalho dos degraus.

Constância: Edgar, agradeço uma explicação convincente para a forma abrupta e nada educada como entrou em minha casa e interrompeu o meu descanso – riposta sem vacilar nas palavras.

Edgar: A senhora sabe muito bem o que me trouxe aqui. Vim buscar a minha filha.

Constância: Se eu não o conhecesse diria que não está no seu perfeito juízo. Acaso está vendo por cá alguém mais além de nós dois e da criadagem? – pergunta debochada estendendo debilmente os braços ao redor.

Edgar: Deixe-se de ironias! Eu sei que foi a senhora. Só não sei como conseguiu ou porque o fez mas não tenho dúvidas que Melissa desapareceu de casa pela sua mão – acusa beirando o descontrole que as gotas de suor exacerbam escorrendo-lhe pela fronte.

Constância: Veja como fala, está em minha casa e hoje é a segunda vez que me desrespeita – adverte sentindo-se ofendida. – Eu não sei da bastardinha e agora saia por favor.

Edgar: D. Constância não me faça perder a paciência e o pouquíssimo respeito que a sua condição ainda me exige. Diga logo, onde está Melissa, o que fez com a minha filha? – questiona uma vez mais.

Constância: Pois muito bem. Se quer mesmo saber, fiz o que há muito deveria ter feito. Entreguei-a a um orfanato – mente tranquila como se nenhum dos seus atos ou o teor do colóquio efetivasse a sordidez.

A mentira! Com esta Constância almeja ganhar tempo, o mesmo que crê vital para Catarina levar a termo a empreitada de fuga. Contudo, a afirmação revela-se de outro modo, oposto e penoso, em Edgar e as consequências avassaladoras, cujas proporções ainda são impossíveis de estimar, sobrevêm no semblante colérico e descrente do jovem. A vontade de balbuciar uns quantos impropérios e, consecutivamente, ferir o algoz que tão vil se apresenta, tolhem-lhe os ímpetos descobrindo antes a negrura da raiva que o duro golpe inflige na alma. Entre ambos, à luz da revelação enganadora, subsiste uma tensão palpável que se adivinha a ponto de eclodir mas, a familiar voz de Laura que, a escassa distância das costas do marido presenciara a derradeira intervenção de Constância sem que nada o fizesse prever, retira-os deste enleio tumultuado e protela a dupla estupefação de Edgar.

Laura: A senhora fez o quê? – averigua num murmúrio entrecortado pelo choro soluçado que se apodera de si.

Constância: Laura, filha, que bom ver-te meu amor! Estava tão aflita sem notícias… – principia envergando a capa de mãe extremosa, esboçando um sorriso afetuoso enquanto faz menção de se achegar à jovem sendo prontamente impedida pelo genro que lhe veda a passagem.

Surpreso com a chegada providencial da esposa a quem deixara em convalescença, Edgar volta o rosto na direção de Laura à espera de uma justificativa ou de um simples beliscão que o retire da quimera que acredita estar a sonhar.

Laura: Eu não aguentei esperar por você e aluguei um coche – explica não se alongando pondo-se imediatamente ao lado do jovem. – E a senhora –, continua séria e atónita fitando a mãe – não entendo como convivemos a vida inteira e só agora vejo que nunca a conheci realmente – lamenta atordoada, levando uma das mãos ao rosto enxugando o marejar que se renova em seus olhos a cada instante.

Constância: Filha, eu fiz pelo seu bem – desculpa-se atarantada, contudo mansa sem arredar a atenção da moça.

Laura: Pelo meu bem? Que espécie de conceções maternas são essas que machucam, que ferem sem misericórdia o alvo de tanto apregoado desvelo? A senhora não quer o meu bem, nem o de ninguém porque é egoísta, mesquinha. Só pensa em si mesma e naquilo que a sociedade hipócrita vai pensar ou dizer – incrimina perdendo momentaneamente o prumo. – Sabe o que mais me choca? É a forma quieta e despreocupada como reage a tudo o que faz, como se não tivesse consciência da gravidade e da monstruosidade das atitudes que perpetra. E como se não bastasse, quando eu não a julgo capaz de maiores vilanias eis que a senhora atinge a minha filha.

Constância: Mas ela não passa de uma bastarda Laura. Você não vê filha, que essa menina foi a causadora de todos os males que nos sucederam? – contesta transparecendo a comoção que o discurso acusador de Laura lhe provoca. – Por isso fiz o que fiz, devolvendo a bastarda à procedência, algo que deveria ter feito há anos atrás quando você aceitou o fruto do pecadilho do seu marido debaixo do mesmo teto.

Laura: Devolveu à procedência? Como assim, o que a senhora quer dizer com isso? – pergunta detendo-se no pormenor que Constância deixara escapar veladamente entre a confusão de pensamentos. – Fale! – exige num grito pungente que estremece o mais apartado laivo de altivez da baronesa.

Edgar: Laura venha, não vale a pena perdermos mais tempo aqui, precisamos procurar Melissa – interrompe aflito, amparando o corpo enfurecido da esposa não vendo futuro no interrogatório.

Laura: Não Edgar, não vê que ela mentiu?! Melissa não está num orfanato. Agora entendo, aquela mulher… estava aqui ontem, foi da boca dela que eu descobri a verdadeira faceta da baronesa e pelo que pude perceber, não é de hoje que a senhora se relaciona com ela. A Melissa, a senhora entregou a nossa filha àquela mulher! – assevera convicta encarando Constância de um modo tão dominador que esta mal disfarça a confirmação patente em seu rosto.

Constância: Não… eu… Laura escute-me filha – gagueja descompassada. – Foi melhor assim, um dia você vai entender que tudo o que eu faço é pela nossa família e você vai agradecer-me.

Apanhado também desprevenido pela rápida conclusão de Laura e a crescente lacuna no caráter de sua sogra que se desvenda sem sobreaviso como se os anos afigurassem uma opaca fenda, Edgar percorre o cabelo humedecido com os dedos, forçando-os nos fios como se a dor de tal gesto lhe arrefecesse os ânimos exaltados que dificilmente controla. Letra alguma lhe escapa, consumidas que estão pela cólera e pelo choque que dele se apodera, cabendo a Laura a conclusão da espinhosa prosa.

Laura: Agradecer por ter causado tanto sofrimento? Eu não a reconheço. Se a senhora soubesse a vergonha e a desilusão que sinto… Não diga mais nada, só de olhá-la eu já tenho a prova da minha suspeita – fala enfastiada. – Eu e Edgar vamos sair por aquela porta em busca de Melissa e saiba, que se a senhora não contar tudo ao meu pai, eu mesma o farei. Não pense que vou compactuar com a sua falsidade, com as suas traições e os crimes que cometeu – informa peremptória preparando-se para abandonar o local.

Constância: Não fale assim filha, eu te amo tanto Laura! Eu sou sua mãe – reclama em evidente desatino.

Laura: Eu não tenho mais mãe… – despeja visivelmente infeliz e estarrecida não agravando, contudo, o tom de voz. – A partir de hoje, eu não sou mais sua filha, não me procure, não ouse interferir novamente na minha vida e, principalmente, nunca mais se aproxime da minha família. O único sentimento que nutro agora pela senhora é pena.

Cada centímetro que percorre rumo à porta é para Laura uma despedida e, apesar de tudo, a sensação de perda que a invade é destrutiva. Acaba de perder a mãe, a sarcástica, preconceituosa e impávida mulher que a educação rígida e carregada de imposições fétidas e desumanas tornara um ser medíocre, dissimulada numa beleza e elegância ímpares. Ainda assim, a vontade definitiva de recuperar a criança que tem por filha urge e para depois adia maiores reflexões. De igual modo, se para a jovem o adeus é amargurado, para Constância é contundente. Sente-se traída, abandonada e incompreendida pela própria filha, pela metade dos dois seres a quem, mesmo com tanta deturpação, dedicara os melhores anos de sua vida e para quem sonhara o mundo . A cena é claramente dúbia, e o coração da megera contorce-se no peito, como se o afastamento da jovem o tornasse pó, cinzas nos escombros de uma alma que se adivinha solitária. Desesperada, caminhando parada no compasso da respiração que lhe começa a falhar, observa impotente a saída de Laura e Edgar, murmurando em meio ao copioso choro, a súplica pelo retorno da moça.


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