Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 47
"A Tentativa de Assassinato"




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O teatro Alheira está longe de se equiparar ao luxuoso requinte de um Municipal, quer no espaço, quer na agenda cultural, embora, este último detalhe deixe mais a desejar pela precária e desgastada qualidade da companhia, do que propriamente pelo renome das peças encenadas. O edifício, composto por dois pisos, o térreo e o superior, enquadra-se numa longa e plana construção que habita um dos lados da muito movimentada rua do Ouvidor. Findos os anos dourados do império, e teimosos que eram os deleites burgueses da sociedade brasileira dos inícios do século, que exigia a adaptação aos célebres vícios parisienses, o outrora restaurante, a meias com uma profunda crise, viu-se em finais de 1904 deposto, nascendo das suas paredes e disposição intactas o pequeno teatro. Por exigência do proprietário português, o nome deveria permanecer sob o epíteto inusitado de Alheira; típico enchido transmontano de além-mar, terra mãe do entretanto falecido dono, Sr. José Manuel Viana que muito poucos conheciam.

É, portanto, neste humilde casulo onde Catarina se vem apresentando frequentemente desde a sua chegada ao Brasil em 1905, e consequente retoma da atividade lírica que, ainda que sem o brilho de outros tempos, lhe vai alimentando o ego de estrela. Ao longo dos curtos anos, o público fidelizou-se e, com ele, as apresentações da cantora tornaram-se assíduas. Uma vez por mês, durante uma semana não consecutiva, Catarina sobe ao palco e, na companhia do piano, arrecada os aplausos da plateia. O preparo para a estreia é sempre moroso e exigente, constando na cláusula do contrato que, aquando dos ensaios, ninguém mais além dela e do pianista deve permanecer nas instalações. Posto isto, e pela demanda das imposições, ficara desde logo acordado que Catarina se poderia reger às horas do almoço, estando deste modo assegurada a sua almejada solidão artística.

Deste pormenor deveras importante e das características físicas do edifício, munido de duas portas, uma frontal e uma traseira, fez-se valer D. Constância numa daquelas várias visitas calculadas à denominada rua e, assim, se desenhou com contornos de embriagada malvadez o circo de feras ao redor de Catarina. Como ficara previamente estabelecido, encarregou-se Bonifácio de recrutar o lacaio perfeito para levar a termo o conluio e, não tendo nesta odisseia encontrado o industrial empecilhos de maior, findos os acertos ao plano e ao pagamento, sem a providencial presença da baronesa na sala, definiu-se o dia e a hora para o desenrolar da ação.

Nos relógios batem firmes os ponteiros, anunciando a proximidade do meio dia e meio quando Catarina irrompe pela porta principal do teatro proclamando os habituais impropérios contra o atrapalhado contra-regra que a espera junto à porta que pretende encostar atrás de si após a entrada da cantora. Pelo semblante colérico da desagradável pessoa, adivinha-se que o dia vem sendo árduo pelo que, hoje especialmente, Catarina faz questão de enxotar pessoalmente o rapaz, batendo com tamanha força as duas metades da porta de madeira que por pouco não lhe acerta no pontiagudo nariz. No interior da exígua câmara, composta pelo reduzido e rebaixado palco, visível da breve e modesta plateia, o piano encontra-se estranhamente solitário. Não sendo comum mas fato consumado para este dia, o pianista está atrasado. A passos largos e irritadiços, Catarina dirige-se até ao abandonado instrumento e, mesmo sem acompanhamento, uma vez ao seu lado, inicia o aquecimento vocal, proferindo elevados tons, ora graves, ora agudos. Na antiga cozinha, agora camarim da grande estrela feminina da companhia, jaz imóvel e furtivo o lacaio mal caráter, qual serpente encantada à espera somente do melhor momento para dar a derradeira estocada. A entrada, fê-la clandestinamente pela pouco utilizada porta traseira do teatro que o conduziu automaticamente a um outro camarim mais pequeno ao lado deste. Seguindo as instruções exatas de Bonifácio, anteriormente alertado por Constância, o rapaz torna-se invisível por entre as sombras funerais causadas pelos pesados figurinos e assim aguardou matreiro pela saída de todos.

Agora, nada o impede de providenciar a encomenda e, analisando os despojos ao seu redor, facilmente conclui que não faltam combustíveis para a propagação do plano. De velas e jarro de petróleo em punho, avança sem cor pelo estreito corredor que liga a divisão às costas do palco e, escondido pela longa e pesada cortina, verte sobre ela o líquido espesso, repetindo o gesto ao longo do trajeto que lhe é permitido sem que seja notado. Depois, para certificar-se do sucesso da empreitada, desenlaça cuidadosamente a corda que afasta as duas extremidades do pano frontal ao palco, na ponta da qual atara, segundos antes da entrada de Catarina, um robusto saco de areia e que neste momento desce a todo o vapor, tendo por mira a nuca da desatenta cantora. Concluída a tarefa, com Catarina desmaiada pelo impacto e volvidos cerca de quarenta e cinco minutos desde o início do ensaio sem pianista, as velas chegam-se ao petróleo e uma pequena chama repetidamente acesa por outros pontos do local inicia-se vagarosamente. Tal como havia comparecido, da mesma forma imperceptível o dito lacaio abandona o recinto, deixando Catarina entregue ao calor da fogueira que, à sua volta, se forma como o enredo de uma magnânima ópera.

Instantes depois, estando a mão do criminoso já pousada sobre o balcão de um botequim ao fundo da rua, a fumaça dá os primeiros sinais à luz do dia, alertando os vizinhos pedestres que, em abreviado número e constante distração finalmente se dão conta das chamas que deflagram no interior do teatro. Daqui ao emitir dos primeiros estalidos da madeira que ameaça ceder vai um pulo e, não tarda, a até então quase deserta rua enche-se de gente, maioritariamente curiosos que, em exclamações de horror e pavoroso assombro, assistem impotentes ao desastre do Alheira. Eis, porém, quando por entre a multidão em polvorosa e constatações várias surgem o diretor e o contra-guerra da companhia, bradando aos prantos a certeza da presença de alguém no meio do fogaréu. As temidas palavras repetidas exaustivamente pelos dois despertam algumas pessoas que acodem prontamente com baldes de água e mantas húmidas, num esforço digno de Hércules para travar o prenúncio da tragédia.

Em frente, no seio da confeitaria, Laura impele com a força das pernas a cadeira em que se achava sentada, mas ao erguer os olhos notoriamente desconcertados pelo súbito mal-estar, os gritos dos demais frequentadores atraem-lhe a atenção para as janelas, onde um enlevado crepitar se impõe, a par da confusão de gente em pânico que se vai aglomerando no exterior.

Laura: Tia veja, o teatro está em chamas! – exclama aterrorizada perante o fato.

Celinha: Meu Deus, que horror! Sorte ser a essa hora, por certo não haverá ninguém lá dentro – repara extasiada sem despregar os olhos dos vidros das janelas, iluminados pelas cores do fumo negro cada vez mais intenso.

Melissa: Mamãe estou com medo – interrompe chorosa saltando da cadeira de braços estendidos pedindo socorro.

Laura: Oh meu amor, fica tranquila, tem muita gente ajudando, logo tudo isso vai passar e nós poderemos ir p´ra casa – responde calma tentando tranquilizar o desassossego da menina que lhe envolve o pescoço com a mesma resistência com que um naufrago à deriva se agarra à jangada.

Francisco: Não fica com medo Mel. Eu sou corajoso como o papai, protejo você, mamãe e titia – dispara convicto, observando atentamente o desenrolar da cena que aos seus olhos infantis tem o mesmo sabor vivo das histórias dos livros que lhe contam.

Laura: Hum… estão vendo? Com um cavalheiro tão destemido, quem poderá temer o que quer que seja? – questiona esboçando um sorriso à atitude do pequeno.

Celinha: Ninguém ora! – concorda falsamente divertida distraindo o sobrinho. – Laura, acho melhor irmos embora. Estão todos saindo, parece que a situação é mais grave do que julgamos – retruca mais séria detendo o olhar no tumulto exasperado que os presentes fazem às portas do estabelecimento desejando sair.

Laura: Tem razão tia, vamos. Algo de grave se passa, não é seguro continuarmos aqui – assente preocupada afagando o rosto temeroso de Melissa que se esconde em seu colo. – A senhora se importa de carregar o Francisco? Com essa confusão temo que ele se perca – pede enquanto coloca sobre a mesa o pagamento.

Celinha: Claro que não, será um prazer – fala sorridente tomando Francisco nos braços. – Pronto mocinho, hoje é um dia tão especial que até ao colo da tia Celinha você tem direito – brinca num derradeiro esforço por o distrair dos demais acontecimentos.

Francisco: Ah, mas já? Eu nem terminei o meu sorvete! – reclama fazendo manha.

Laura: Eu sei meu amor mas agora precisamos ir. Outro dia eu prometo que trago vocês aqui e tomamos outro sorvete – assegura fitando-o com desmesurada ternura.

Com a pressa própria de quem deseja escapar de um desastre, Laura e Celinha encaminham-se para a porta lateral direita da confeitaria e juntam-se à fila minimamente ordenada que se precipita para a saída. Em alguns momentos que elas sentem demorados, acham-se do lado de fora, no meio de uma amálgama de gente desesperada que não se entende. Ao longe, ouvem-se já as sirenes desgovernadas das primárias ambulâncias alertadas para prestarem socorro àqueles a quem o alvoroço não poupou de um leve desmaio ou um ligeiro atropelo. A fumaça, intensificada pela brisa que se faz sentir, rapidamente se espalha pelos cantos, dificultando a respiração de quem assiste a tudo. Protegida nos braços de Laura, com um pequeno lenço tapando-lhe tenuemente o nariz e a boca, Melissa absorve com claro embaraço o pouco ar que lhe resta e, num ápice melodramático, o peito da menina contrai-se violentamente, acelerado pelas golfadas escassas que tenta trabalhar. Notando o agudizar do estado da pequena, Laura tenta controlar o nervosismo e, seguida de perto pela tia que aperta junto a si um subitamente assustado Francisco, esforça-se por romper pela multidão.

Laura: Calma meu amorzinho, respira, por favor respira. Eu vou tirar você daqui – murmura-lhe inquieta.

A pronta resposta de Melissa faz-se sob a forma de um acometido choro descompassado pela crise de asma que a assola. Uma avalanche de lágrimas rolam-lhe pela face pálida, gelando-lhe os olhos doces ao ponto de quase a deixarem sem sentidos. No meio do aparato, abafado pelo bradar e esbracejar de muitos que tentam aplacar as chamas e afastar quem nada faz senão atrapalhar, percebem-se os berros de clamor em louvação e consternação por algum corajoso que, sem reservas, entra veloz pelas labaredas, decidido a salvar a vida da jovem encurralada na desgraça. Breves mas preciosos passos mais adiante, Laura e Celinha atingem enfim a última fileira de gente e, ao primeiro sinal de espaço aberto, a professora para e, desgrenhada e suada, fita a tia em visível angústia.

Laura: Tia pegue o remédio na minha bolsa, por favor. Eu não consigo alcançá-lo – pede trémula estendendo com dificuldade a pequena bolsa.

Celinha: Aqui querida, tome – diz estendendo-lhe o frasco também ela tomada pelo tremor.

Francisco: Mel… – chama alterado com os olhos marejados ao reconhecer o estado da irmã. – Mamãe vamos embora – solicita agitado no colo da tia.

Celinha: Está tudo bem querido, não fique assim, Melissa vai tomar o remédio e vai ficar boa, você vai ver. E assim que ela se sentir melhor nós vamos embora – garante igualmente desalinhada.

Laura: Nem um copo de água temos à mão – repara forçando algumas gotas do frasco pela boca da pequena. – Isso meu amor, tome tudo – orienta carinhosa afagando-lhe os cabelos humedecidos.

No preciso momento em que Melissa toma, praticamente desfalecida, o derradeiro trago da solução, uma voz clama incessantemente por Laura. A pouca distância da esquina onde os quatro se encontram neste desatinado ensejo, Edgar corre desnorteado em direção a elas, imprimindo às pernas mais velocidade do que a que julgava possuir. Atrás dele, frenético mas menos rápido, vem Guerra que ao avistar Celinha faz menção de se apressar.

Edgar: Laura! – brada desesperado já bastante próximo.

Laura: Edgar! – exclama aliviada ao reconhecer o marido.

Celinha: Ai, graças a Deus! Não estamos mais sozinhas – despeja em claro descanso. – Carlos, aqui meu amor – berra acenando efusivamente ao ver o noivo.

Francisco: É o papai! – solta feliz à medida que as lágrimas lhe tomam conta da face.

Edgar: Laura meu amor, o que foi que aconteceu? Me diz, vocês estão bem? Melissa! O que houve com ela? – interroga repetidamente vacilando na dissertação e lançando-se sobre ambas.

Laura: Um incêndio, o teatro está em chamas, não sabemos como aconteceu. Quando vimos saímos da confeitaria mas no meio da fumaça e da confusão Melissa teve uma crise. Eu dei o remédio mas ela não parece melhorar – conta desatinada fitando a menina desacordada em seus braços.

Edgar: Deve ser do fumo, vamos sair daqui. Esse ambiente só vai piorar o estado dela – fala acariciando o rosto da filha.

Laura: Pegue o Francisco, ele está aturdido. Deixe que eu levo a Melissa – indica acomodando-a entre o ombro e o pescoço.

Guerra: Célia está tudo bem? Você se machucou? – indaga preocupado enchendo a noiva de mimos.

Celinha: Agora está tudo bem, foi só um susto, um grande susto – tranquiliza enlaçando-se no abraço do jornalista, depois de devolver Francisco aos braços de Edgar.

Edgar: E você meu pequeno? – averigua percorrendo com uma das mãos o corpo frágil do menino que se recolhe temeroso por entre o torso do pai. – Não está machucado, arranhado, nada?

Francisco: Não papai. Sou corajoso como o senhor, não tenho medo de nada – responde soluçantemente, pouco ou nada convicto mas firme na decisão de dissimular o medo na admiração que sente pelo progenitor.

Edgar: Vamos p´ra casa então – sugere beijando-lhe a testa.

Guerra: Edgar, você se importa de levar a Célia? Eu vou ficar. Na qualidade de jornalista tenho que apurar o que sucedeu – diz sério fugindo do semblante reprovador de Celinha.

Celinha: Não, nem pense nisso. Ainda agora fiquei noiva e você já quer me deixar viúva? – contesta arreliada.

Guerra: Não se preocupe minha adorada noiva – sossega tomando-lhe ambas as mãos nas suas. – Olhe ali, o foco do incêndio está praticamente dominado e eu somente vou verificar as causas do mesmo e a eventualidade de existirem feridos.

Laura: Creio que havia alguém no interior do teatro na altura em que o incêndio deflagrou. Pelo menos foi o que julguei escutar enquanto tentávamos sair dali – acrescenta detendo-se por breves segundos na coluna de destroços de gente que ainda ocupa o local do incidente.

Guerra: Vá com eles Célia, assim que terminar a recolha de informação encontro-te lá e acompanho-te a casa – insiste dando-lhe um suave beijo na ruga de preocupação que lhe decora a fronte.

Despedidas informais concluídas e sem mais delongas todos à exceção do jornalista avançam rumo à quietude da rua ao lado onde Edgar abandonara o automóvel. Ainda incerta quanto à decisão do amado, Celinha caminha aos tropeções pela calçada atrás de Laura e Edgar, parando sucessivamente a espiar o afastamento de Guerra que, de supetão, desaparece por entre o ruidoso gemer das sirenes da ambulância estacionada perto do edifício e do crepitar amontoado de pessoas, cada vez menos, que ainda persistem em por cobro às renitentes chamas. Ao romper da espessa fileira, Guerra avista em exacerbado devaneio e copioso choro o dono da companhia para quem as perdas são irremediáveis e lança-se no seu encalço. Porém, a meros passos de distância, todos exclamam em uníssono contentamento e incredulidade quando, por entre o fumo denso e sufocante, um jovem negro, bonito mas privado de riquezas, imerge trazendo nos braços o corpo desfalecido e em fiapos de uma mulher que Guerra prontamente reconhece como sendo Catarina Ribeiro. Do alto dos pulmões acometidos pelo escasso oxigénio, o bravo jovem descola os lábios enegrecidos pela fumaça e anuncia:

– Está viva – grita. – Ainda respira!


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Notas finais do capítulo

Meninas, foi com o coração na mão que postei este capítulo, ciente que estou da vontade que a maioria, se não todas, vocês devem estar a sentir de, no mínimo, me agredirem. Peço desculpa pelas crenças que provoquei na morte de Catarina mas eu preciso deste acontecimento para o desenrolar dos próximos acontecimentos e consequente conclusão da história.