Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 46
"Incidentes na Rua do Ouvidor"




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O final de tão árdua e amotinada semana chega enfim. Com tantos acontecimentos, descobertas, choques e desilusões, todos diriam que se passaram meses e não somente meros dias, mais longos do que as vulgares vinte e quatro horas que, diz a ciência, tem um dia. É hoje sábado, 11 de Julho de 1908 para aqueles que não têm à mão um calendário, e Edgar sai apressado do jornal, depois de na última hora ter ouvido os repetidos lamentos do amigo sobre as caóticas finanças do negócio e o laço que sua ainda namorada, Celinha, vem apertando em seu dedo cada dia mais, tal qual as anilhas se enroscam nas finas patas dos pombos habituados a voarem livremente. Laura não o acompanhara, antes, a moça ficara entregue aos recentes e mútuos apontamentos dignos de nota que em casa de Isabel iam por esta altura recheando a conversa entre as duas, condecorada ainda com a distraída brincadeira de Francisco e Melissa que sob a vista de ambas se entretêm.

Voltando à Ouvidor, Edgar avança a passos largos e firmes pela calçada, ansioso por alcançar o automóvel e partir rumo à residência da bailarina onde sua família o espera para em conjunto retornarem a casa. A placidez do percurso pedonal, até aqui apenas perturbada pelo ruído próprio da rua e daqueles que a percorrem, vê-se no entanto subitamente sobressaltada pela vizinha presença inoportuna de Catarina que, propositadamente ou não, vem andando na mesma via que Edgar, avistando-o de frente para si. O rosto de Catarina não é estranho a ninguém que o veja, nem tão pouco sua hipocrisia é facilmente encoberta por qualquer raio de sol mais incandescente que a atinja pelo que, este encontro infrutífero rapidamente se torna inevitável, assim como é impossível não desenhar na memória o sorriso dissimulado e olhos caídos com que a cantora se dirige ao advogado. Edgar, por sua vez, ainda envia às pernas ordem para travarem ou atravessarem a rua mas fê-lo, quiçá, demasiado tarde já que, num instante, se vê a um único palmo de distância.

Catarina: Edgar! Há quanto tempo, ou talvez nem faça tanto tempo assim, eu é que ando um pouco confusa ultimamente – solta por entre um fraco riso carregado de cinismo e uma estranha educação.

Edgar: Ele há dias assim, em que saímos de casa para um passeio e acabamos tendo uma desagradável surpresa – retribui sarcástico sem rodeios, tentando disfarçar o incómodo.

Catarina: Quanto ressentimento guardas de mim! Entendo, não posso julgar-te por isso porque estou ciente de meus erros e do tanto que te magoei.

Edgar: Olha, mas eu ainda me surpreendo com você Catarina, ou devo dizer com a sua falsidade? Com licença – diz afastando-se para o lado afim de continuar caminho, – e da próxima vez que me avistar, faça o favor de fingir que não me conhece.

Catarina: Espere Edgar! – pede virando-se no mesmo sentido do jovem e apanhando-lhe o braço esquerdo. – Antes de ir, deixa-me dar-te os parabéns pelo retorno ao jornalismo. Sua matéria sobre a corrupção no judiciário ficou ótima. António Ferreira é realmente um jornalista excepcional.

Não fosse Edgar estar de costas meio voltadas para a cantora e, neste exato momento, Catarina ver-lhe-ia a face empalidecer sem sombras ao nível das elegantes louças brancas que decoram as mesas da confeitaria ali ao lado.

Edgar: O que pretende com isso Catarina? Intimidar-me de algum modo? – interroga aflito mal contendo a raiva. – Nem pense em interferir no que quer que seja, se contar a alguém que eu assino como António Ferreira – gagueja nervoso – eu… eu sou capaz de… – continua arreliado.

Catarina: É capaz do quê? Por acaso está-me ameaçando? Ora Edgar, se eu quisesse usar isso p´ra te atingir já o teria feito e nós não estaríamos tendo essa conversa – dispara aborrecida sacudindo os ombros. – Fique tranquilo, garanto que seu segredo morrerá comigo. Você pode não acreditar mas eu nutro um sentimento muito grande por ti, de verdade – declara estampando nos olhos uma meiguice medonha.

Edgar: Eu nem sei porque ainda me detenho aqui ouvindo barbaridades. Catarina, você acha mesmo que eu acredito numa única palavra que saia de sua boca?

Catarina: Se acreditas ou não, não importa mais, sei que perdi minha oportunidade há muito tempo e além disso, refiz minha vida, seu irmão me faz muito feliz – prossegue. – Já se passaram alguns anos mas, ainda assim, como prova de minha boa fé, confesso que recebi todas as cartas que me mandaste para Portugal depois que te permiti trazer Melissa. Ah, Melissa… – repete saudosa – minha filhinha. A propósito, como ela está?

Edgar: Falsa, sonsa, você é um demónio Catarina! E ainda ousa tocar no nome da minha filha como se nada fosse – replica enojado. – Você abandonou a menina, em todos esses anos nunca procurou saber dela e agora me vem com este discurso cheio de penas?

Catarina: Mas foi por causa dela que eu ocultei as cartas e voltei p´ra cá. E eu não a abandonei, eu confiei que você seria um bom pai p´ra ela, que nada lhe faltaria, mesmo depois de você saber que Melissa não é…

Edgar: Cale-se! – ordena desesperado esforçando-se por manter o baixo tom de voz. – Melissa é minha filha e de Laura ouviu bem? Não se aproxime mais de nós, esqueça que existimos e vá viver a sua vida com Fernando, já que meu insensato irmão te faz feliz – conclui ajeitando violentamente o paletó que parece querer fugir-lhe do corpo.

A retirada providencial e célere de Edgar interrompe o término da fala de Catarina que lhe morre nos lábios sem ser proferida. Dos olhos quase sempre secos rolam-lhe duas lágrimas cruas, expoente do sentimento que ela clamara verdadeiro mas que bem se pode supor ser dissimulado. Diz quem vende fruta que num cesto repleto de maçãs sãs, sempre se encontra uma podre e neste cesto, basta recordar que a podridão não vem de agora e tende a agudizar-se com o tempo. As mangas do vestido que cobrem os braços da cantora até aos cotovelos, guardam muito mais do que pele, nelas também se encobrem camufladas as cartas de um perigoso jogo que a pique vai atingindo o eclipse. Num gesto simples e aprimorado, a cantora recolhe com dois dedos da mão direita as contáveis lágrimas e, mal Edgar vira a esquina da rua saindo-lhe do campo de visão, Catarina retoma o prumo e o caminho e avança calmamente no passeio sem delongas no abatimento.

No automóvel, Edgar sente dificuldade em iniciar a marcha. As aflições dos dias transatos que julgava amainadas ressurgem novamente por entre as cinzas visivelmente acesas, tomando-o de assalto de um modo tão arrebatador que quase lhe sugam o ar dos pulmões. Enfim, porém, depois de algumas quantas inspirações, a força regressa e as rodas do automóvel deslizam pela calçada tortuosa andando em círculos e linhas retas até chegarem ao Cosme Velho onde, à porta da casa que Isabel partilha com o noivo numa relação criticada por toda a velha guarda da sociedade do seu tempo, Laura aguarda o marido com as crianças. Vendo-o aproximar-se devagar por entre a capota negra do automóvel, Laura despede-se mais uma vez do casal e desce os restantes degraus da escadaria de pedra, segurando em cada mão a outra das crianças. Com um breve mas atencioso aceno, Edgar cumprimenta ao longe os amigos e, deste modo, partem todos em direção à comodidade do lar.

O trajeto não foi moroso mas primou pelo sossego. Estafados após mais uma tarde de farra intensa, Francisco e Melissa seguem praticamente moribundos no banco traseiro, de olhos meios fechados e bocas em constante bocejo. Não há palco para o contraste já que, Edgar prossegue igualmente mudo, soltando somente raras interjeições com as quais aparenta participar na conversa que Laura desenvolve sozinha. A entrada em casa faz-se rápida e direta aos quartos das crianças que, de banho tomado, se entregam definitivamente à desejosa sesta.

Laura: Edgar, aconteceu alguma coisa? Não precisa disfarçar, ou você julga que eu não vi que passou todo o caminho praticamente me ignorando!? – pergunta manhosa afagando-lhe os ombros junto à porta do quarto de Francisco.

Edgar: Desculpa, eu não queria te aborrecer. Não aconteceu nada, só me sinto cansado mas deve ser do calor – diz evitando encará-la ao alcançar o corredor.

Laura: Sei, … tudo bem. Se não quer me contar eu não insisto, … por agora – avisa entrando no cómodo em frente.

Edgar: Ah, não faça essa carinha meu amor… você sabe que eu não resisto – reclama débil abraçando-a por trás.

Laura: E quem te disse que eu pretendo que me resistas? – questiona sugestiva volvendo -se de frente.

Edgar: Mas eu pensei que nós ainda não podíamos… você sabe… consumar o nosso amor… – retruca intrigado beijando-lhe carinhosamente alguns pontos do rosto e do pescoço.

Laura: Desta vez foram menos dias, também estranhei mas o que importa é que posso ser toda sua, … à hora que você quiser – informa retirando-lhe as primeiras peças do vestuário ao mesmo tempo em que as duas bocas se aprofundam num voluptuoso beijo.

Edgar: Então vem… que eu estou ardendo de saudades.

O mote certeiro prolongou-lhes a tarde até à exaustão, deleitados em carícias ora intensas, ora serenas mas em nenhum momento, por mais persistência que Laura impregnasse no colóquio, Edgar se descaiu sobre o casual esbarro em Catarina nem tão pouco mencionou a consternação de Guerra em relação a uma ameaça anónima que recebera no jornal no dia seguinte à publicação da denúncia contra o judiciário. Consumido pelo medo, o jovem decide abafar em si as preocupações, poupando assim a esposa a maiores sobressaltos do que aqueles que já a assolam. Vê-la e senti-la ali, repousada em seus braços como uma ninfa na placidez natural que a envolve, transcende-o para uma realidade muito mais nobre do que qualquer dor ou mau prelúdio que o possam rondar.

Em aparente tranquilidade passam-se alguns dias, faltando agora apenas uma semana e meia para a conclusão do mês e, consequentemente, para o prazo que Fernando dera a Bonifácio.

Neste meio tempo não descrito, anterior ao novo dia, D. Constância passeou-se com frequência pela rua do Ouvidor em companhia de sua irmã Carlota, mulher de caráter dúbio, cujos laivos de manipuladora atingem em certas alturas o mesmo patamar de Constância. Carlota satisfazia, portanto, o consórcio indispensável para a empreitada a cargo, até porque, a par da dupla, somente ela era conhecedora do real motivo para tantas visitas àquele recanto da cidade. Desta forma, os olhos de lince da baronesa foram detalhando com esmerado pormenor o entra e sai de Catarina e dos restantes membros da Companhia que frequentam o Alheira, salientando uma determinada hora do dia em que o decréscimo de atividade humana à volta deste descia consideravelmente. Depois da constatação prévia, aperta-se a malha ao redor de Catarina, cujo corpo ferve já em lume brando, às mãos do cúmplice casal.

Breves minutos após o almoço, Laura descansa os olhos prostrada no sofá da sala, enlaçando em cada braço seu, os corpos de Francisco e Melissa que a contra gosto se esforçam por tranquilizar a recente digestão. Na cozinha, Matilde vai lavando a louça e adiantando as tarefas. O silêncio impera na residência, algo não muito comum por aquelas bandas e é ainda no decorrer desta quimera que as batidas na porta se sucedem à velocidade da impaciência de quem espera ser recebido. Abrindo um olho de cada vez, franzindo o cenho em descontentamento, Laura solta um suspiro, liberta os pequenos do forçado ócio e encaminha-se para a porta.

Laura: Tia Celinha! – exclama espantada ao ver a tia. – Que surpresa boa – cumprimenta sorridente dando-lhe passagem para o interior.

Celinha: Laura, minha sobrinha, desculpe aparecer assim mas eu estou que não me aguento de tanta felicidade – dispara assoberbada entrando de supetão, indo de encontro ao vaso de tulipas brancas que dorme na esquina da divisão. – Ai que desastrada que eu sou, derrubei o vaso – protesta agachando-se no chão.

Laura: Não tem importância tia, vou pedir à Matilde que recolha os cacos antes que a senhora ou as crianças se magoem neles – ri oferecendo a mão à senhora.

Celinha: Por falar neles, onde andam meus sobrinhos queridos? – interroga mais sossegada mirando a sala vazia à sua frente.

Laura: Eh, estavam aqui agora mesmo, mortos de vontade de sair correndo p´ra brincar mas eu os obriguei a serenar os ânimos… foi só eu levantar-me e eles aproveitaram – atesta ao dar-se conta da fuga dos pequenos. – Provavelmente subiram, senão já estariam aqui saltitando ao redor da tia Celinha – conclui abraçando a tia. – A senhora aceita um chá, um café…? Enquanto isso eu vou chamá-los.

Celinha: Não minha querida, estou ótima assim. Deixe-me contar-te o que me trouxe aqui que se eu passar mais um minuto que seja segurando as palavras, é capaz delas me saírem pelas orelhas – debocha gargalhando com um sorriso aberto nos lábios.

Laura: Hum, diga, estou curiosa.

Celinha: Estou noiva Laurinha, finalmente o Carlos me pediu em casamento – conta subindo o tom de voz assolado pelo entusiasmo.

Laura: Tia! Que notícia boa – profere levando as mãos ao rosto, visivelmente surpresa e feliz. – Vem aqui, me dá um abraço. Estou tão feliz pela senhora, eu sei o quanto sonhou com este momento.

Celinha: Por tantas vezes desanimei, certa de que nunca iria realizar o sonho de me casar – confessa com os olhos marejados de lágrimas ainda perdida no abraço de Laura.

Laura: Ah, mas isso merece uma comemoração à altura. É que além de ser a realização do seu sonho, não esqueça que a senhora é a responsável por fisgar um, até agora, irremediável solteirão – diz encarando-a igualmente emocionada.

Celinha: Vamos até à Colonial tomar um sorvete! Nem cogite recusar, chame os pequenos e vamos logo que só um sorvete de limão será capaz de me acalmar… ou talvez o de chocolate seja mais eficaz – reflete divertida.

Laura: O seu pedido hoje é uma ordem futura Sra. Célia Guerra! – aceita prontamente. – A senhora me espera um segundo? Prometo que assim que eu mencionar sorvete eles descem sem delongas – assegura subindo ligeira as escadas.

Estas últimas palavras de Laura sucedem letra a letra assim e, quando instantes depois o coche apeia na rua do Ouvidor, as duas rumam à confeitaria com as crianças abrindo caminho pelos passeios quase desertos. Àquela hora, a maioria dos comerciantes e pedestres deleitam-se ainda no almoço, lotando os bares das redondezas. A confeitaria Colonial não fica indiferente a esta realidade e, a par dos botequins, está repleta de gente, não obstante a clara diferença no estrato social dos que a frequentam.

Numa dessas mesas, Francisco lambuza-se com o sorvete de chocolate que Celinha lhe recomenda, depois de recusar o próprio pedido por mais de uma vez, tamanho é o nervoso eufórico que lhe confunde a já de si desordenada mente. Ao lado do pequeno que sorri divertido com as graças da tia, Melissa também se delicia com o aroma do morango que tempera o seu sorvete, porém com mais paciência e delicadeza como é exigido a qualquer dama por mais jovem que seja. Na quarta ponta da mesma mesa redonda, Laura pausa repentinamente o ouvido ao relato de Celinha. Acometida por um mal-estar que chega sorrateiro como as estrelas quando cai a noite, a professora leva instantaneamente a mão direita à boca, estabelecendo a comparação entre os distintos tons de pele. Seu semblante até então rosado, vai-se tornando cada vez mais descolorado e nem o frio da mão nos lábios lhe segura a vontade maior de correr dali.

Celinha: Laura querida, está se sentindo bem? – questiona ao notar a indisposição da sobrinha que mal tocara no sorvete a ponto de derreter.

Laura: Sim, foi só um enjoo súbito. Devo ter exagerado no almoço – responde esboçando um frágil sorriso enquanto retira o guardanapo de pano do colo. – Vou ao toilette recompor-me, com licença.

Dito isto, as pernas de Laura impulsionam a cadeira a recuar, emitindo um tímido rangido no fino chão, imperceptível aos demais ouvidos desatentos. Mal a professora desdobra o corpo recuperando a pose hirta do corpo esguio, o ranger das pernas da cadeira em fricção com o chão é substituído por massivos e retumbantes gritos de pânico, estes sim perceptíveis a todos os ouvidos num raio amplo de distância. Do incêndio que deflagra em frente à confeitaria, no teatro Alheira, pouco que sabe por hora.


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