Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 45
"Naquele Trilho Secreto"




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As crianças brincam na sala, tranquilamente sentadas na carpete ao redor da mesa de centro, quando são surpreendidas pelas frias mãos do pai que, nas costas deles, lhes venda misteriosamente os olhos. Num ápice, os dois pulam alegremente, descobrindo a vista do breu provocado pelas grandes mãos do advogado e lançam-se em simultâneo sobre o corpo de Edgar que, com a força impelida contra si, cambaleia ligeiramente indo acabar estranhamente sentado no sofá com Francisco e Melissa prostrados sobre si. Subtilmente pousado na poltrona do lado esquerdo do sofá, jaz contente o ramo de alecrim, observando a farra entre pai e filhos como quem aguarda ser lembrado.

A algazarra rapidamente se espalha pela casa, ecoando feliz pelas paredes até atingir o escritório onde Laura termina de preparar as aulas do dia seguinte. Ainda lívida e com o semblante abatido pelo desconsolo que desde aquela manhã se abatera sobre ela, um sorriso, contudo, se desenha involuntariamente nos seus lábios ao ouvir a sedutora voz do marido e, assim, a jovem abandona os afazeres concluídos rumando prontamente à sala.

Laura: Posso saber por que razão fui excluída desta festa? – questiona de braços cruzados, fingindo aborrecimento ao avistá-los do corte entre as duas salas.

Edgar: Eh! Mamãe ficou com ciúmes, temos que resolver esta quezília crianças – repara fitando-a de soslaio entre cócegas imensuráveis com que brinda os pequenos.

Francisco é o primeiro a deixar-se cair do sofá, correndo em direção à mãe que o recebe no colo de braços abertos e a quem o menino enche de mimos e afagos tentando apaziguar-lhe o dia difícil e os supostos ciúmes. Notando a dolência matinal ainda expressa no rosto de sua esposa, Edgar ergue Melissa e com ela levanta-se do sofá, apanhando pelo caminho o ramo de alecrim. É envergando este último na mão direita e segurando firme sua filha no braço esquerdo que o jovem se aproxima meigo e sorrateiro da professora que ao primeiro vislumbre do agrado reclina a cabeça contra a de Francisco e abre, num rasgo de contentamento, um sorriso enternecido.

Edgar: Para a mulher, esposa, mãe e professora mais maravilhosa do mundo – diz estendendo-lhe o ramalhete e olhando-a tão profundamente que chega a sentir-lhe a alma a latejar.

Laura: Obrigado meu amor. Só você Edgar, é sempre você… – afirma comovida recebendo o alecrim com a mesma honra com que se recebe uma jóia do mais valioso quilate.

No mesmo instante e deveras devota às florzinhas caprichosas, Laura leva-as até à face e sente-lhes o aroma por breves segundos eternos em que, de olhos fechados, se perde neste enlevo comovido. Treinados no enamoramento dos pais que parecem embutidos de graça numa bolha imaginária, Melissa e Francisco fazem menção de recuperar suas posições no chão e logo saem em disparada para mais uma brincadeira ali ao pé. A meio passo de distância do corpo estático de Laura que segue absorvendo o perfume do alecrim, Edgar acaricia-lhe levemente o rosto enquanto a espreita curioso e um tanto preocupado.

Laura: Posso estar de olhos fechados mas bem sei que me olhas intrigado – fala interrompendo o momento de silêncio.

Edgar: Apenas procuro nos teus olhos o que a boca não me diz – responde calma e pausadamente. – Laura, meu amor, não posso mais ver-te assim. Diz-me o que tanto te aflige – pede com doçura puxando-a para um abraço seguido de um beijo no pescoço.

Laura: Como posso eu ignorar um pedido desta envergadura? Vamos subir um pouco, conversamos lá em cima – concorda finalmente derrotada pela insistência manhosa do marido.

O percurso escada acima até ao quarto não lhes toma muito tempo e depressa se acham apoiados nos braços um do outro brindando à chegada ao cómodo com um ardente e saudoso beijo.

Edgar: Impressionante como este quarto fica lindo quando você está nele – afirma embevecido mantendo-a presa a si pela cintura.

Laura: É ainda mais quando estamos os dois… a sós – murmura-lhe junto à boca convidando-o para mais uma troca intensa de carinhos.

Edgar: Concordo! Vem, senta aqui comigo e me conta o que te deixou assim – fala conduzindo-a pela mão até à beirada do leito onde se sentam ambos lado a lado.

Laura: Eu imaginei esta nossa conversa de tantas formas, mas nenhuma delas contemplava o que tenho p´ra te dizer de fato – começa deitando os olhos ao chão. – Ontem à noite quando adormecemos, eu dormi feliz, cheia de esperança e ansiosa p´ra hoje chegar logo porque eu queria muito te dizer que estava grávida – continua perdendo o controle sobre as lágrimas que lhe alagam os olhos.

Durante os curtos instantes em que Laura pausa a dissertação afim de recobrar o fôlego perdido no meio da emoção, Edgar é acometido por uma abrupta felicidade que se lhe estampa no rosto, entreaberto à notícia que tanto deseja ouvir. Não sabe o que dizer, gagueja em vogais emudecidas pelo anseio de ouvir da boca de Laura o que tanto espera mas ao mesmo tempo algo lhe aflora à razão questionando-o repetidamente acerca do estado de sua esposa contrário ao seu. Assim, chocado pela satisfação e ambígua confusão prossegue encarando a jovem, trémulo como os ramos de uma árvore ao sabor do vento, apertando as dela nas suas que mal se seguram umas nas outras até que Laura enfatiza a conclusão inglória.

Laura: Mas, pela manhã enquanto fazia minha toilette, minhas regras desceram e com elas veio uma dor aqui dentro – diz repousando uma das mãos sobre o peito – que eu não sei explicar nem consigo atenuar – termina sem se sentir capaz de olhar Edgar para quem estas palavras têm o mesmo efeito de um vento arrebatador que tudo destrói à sua passagem.

Edgar: Oh meu amor, eu dava o mundo p´ra arrancar do teu peito essa dor – corta após alguns momentos sufocado, pondo-a a salvo num abraço aconchegante.

Laura: Porque é que tem de ser assim Edgar? Eu quero tanto te dar outro filho – soluça exasperada.

Edgar: Shh… não pense mais nisso, é melhor Laura. Não vamos mais nos torturar, só nos faz mal e eu não quero mais ver você sofrendo dessa forma meu amor. Eu também quero muito ter outro filho com você mas se não acontecer, olha p´ra mim – para erguendo-lhe o rosto e fitando-a olhos nos olhos, – lembra o que eu disse quando falamos sobre isso, eu te amo de qualquer jeito.

Laura: Também te amo tanto! – declara com a voz interdita pela crise de choro copioso que aos poucos se vai acalmando.

Edgar: Então, isso nos basta, nosso amor infinito, maior que o tempo, mais forte do que qualquer outra coisa – afirma sussurrando-lhe ao ouvido, esforçando-se por evitar contagiar a esposa com as lágrimas que teimosamente lhe brotam dos olhos.

O degredo lírico prolonga-se por mais alguns minutos, alternado entre apertos e abraços vigorosos, palavras contadas e afagos inúmeros, embalados pela melancolia mútua que ambos se esforçam por pacificar com base no apoio e na partilha. Quando os primeiros vislumbres da noite inundam o cómodo sob a forma de penumbra, Laura deleita-se no peito do marido, plácida e esplêndida em seu infortúnio, acariciando-lhe os ombros fortes que a protegem recostados contra os travesseiros.

Edgar: Está tão bom aqui que até me custa dizer isto mas, creio que é melhor descermos. Se nos delongarmos um pouco mais que seja, não tarda e teremos os dois pequenos entrando de rompante pela porta – replica beijando-lhe a testa.

Laura: Posso não ir? Hoje não me recomendo! – exclama lânguida forçando suavemente o abraço dos dois corpos vestidos.

Edgar: Pois eu a recomendo e muito Sra. Vieira. Trate de sacudir a preguiça e tudo o mais que a assola e venha, Francisco e Melissa nos esperam para o jantar e você sabe que se atrasarmos a refeição aqueles dois custam a adormecer e aí… aí não sobra tempo para os nossos devidos mimos noturnos – contesta imprimindo-lhe um beijo mais intenso, carregado de convites íntimos postergados para a hora da ceia.

Laura: Está bem senhor meu marido. Vendo por esse lado até que não é de todo mau abandonarmos este enlevo delicioso.

Com a concordância de Laura fazem-se ao caminho e transparecendo um novo ar, mais calmo e condescendente, juntam-se aos pequenos em quem esbarram no meio da escada. Edgar estava certo quando alcovitara sobre a procura dos filhos porque, estranhando a demora dos pais, ambos subiam já prontos para interromperem o desabafo. Pondo cobro à aventura de Francisco e Melissa, dirigem-se os quatro para a sala de refeições e o jantar faz-se sem razões para maiores considerações. Dormem cedo, as crianças, e os adultos, aproveitando a deixa do fim de tarde, reduzem a cacos os entraves biológicos e dão azo à imaginação fértil que nunca os desampara nos momentos de enamoramento perpétuo. Lá fora, no tanto que duram as carícias, prolonga-se a chuva que bate incessantemente nas pedras da calçada, acalentando o sono dos amantes.

A manhã chegou mansa e, com ela, ao clarear do céu enegrecido pela chuva que não cessara, aterra na soleira da porta da residência o esperado exemplar do “Correio da República”. A agonia de Edgar controla-o de tal modo que nem a agilidade de Matilde o impede de correr para a porta assim que seus pés assentam no piso inferior da casa, desfilando ainda de pijama e robe, seguido por Laura que, envergando o penhoar, o espera junto às costas do sofá. No retorno para o interior da sala, o advogado segura numa das mãos o jornal meio dobrado, atentando sem distrações à primeira página, e com a outra penteia os cabelos desalinhados.

Laura: Saiu a matéria? – interroga aflita tentando não roer a unha do dedo mindinho que instintivamente levara à boca.

Edgar: Saiu meu amor, a denúncia está feita e o Guerra publicou meu texto sem trocar uma vírgula – conta sorridente celebrando o augúrio da polémica.

Laura: Ai que bom, estou tão feliz por você. Já te disse o quanto me agrada essa sua nova ocupação? – pergunta sugestiva aninhando-se nele, aproveitando a deixa para espreitar a folha do jornal.

Edgar: Julgo que se não disse, de algum modo demonstrou o que, para um marido tão pouco exigente como eu, se torna suficiente – ri zombando em tom de brincadeira.

Laura: Bom saber, assim evito repetições desnecessárias – debocha virando-lhe as costas.

Edgar: Não, nem pense nisso, eu adoro ser recordado – contraria apanhando-a a meio da fuga com um enlace pela cintura ao qual a jovem não resiste, deixando-se levar pelo beijo.

A celebração pela publicação da matéria de António Ferreira, trilhou caminhos previsíveis pelo corredor do segundo andar até atingir o seu auge no quarto do casal. A audácia de um e outro, aliada ao sono profundo das crianças e ao hábito de Matilde em preparar ensurdecida a mesa para o dejejum que se faria dali a pouco, permitiu-lhes demorarem-se um pouco mais nas horas que antecederam a saída de Laura para o colégio. Essa manhã, Edgar passou-a em casa, praticamente enclausurado no escritório, a braços com o estudo de um processo complexo que recentemente lhe chegara às mãos.

No contraste desta conjetura pacífica, no requinte pobre de sua casa, Catarina relê no jornal o mesmo texto que ao meio da manhã já despoleta as mais variadas conversas por toda a capital. O assombro certo de uns perante a realidade favorecida da justiça, luta em medida desproporcional com o ralhar de muitos mais que se insurgem contra a dita blasfémia propagada pelo jornal. Destes últimos, bem se pode desconfiar que grande parte deve tanto à rede de burla judicial, quanto um patrão ao seu assalariado escravo. Porém, em Catarina transparece um resultado diferente. No seu rosto habitualmente cínico, o riso de quem segura na mão mais um trunfo pronto a ser usado não se inibe. António Ferreira é-lhe tão familiar quanto as memorias frescas que guarda do passado em Portugal.

À tarde, à hora marcada para a confissão, D. Constância é recebida por Bonifácio no seu gabinete na tecelagem. O confessionário está pronto para tramar a cova de Catarina, alheio a santos e devoções desmesuradas, mas repleto de requintes de malvadez e falas dúbias impregnadas de escárnio e maldizer. As boas vindas à baronesa são sempre as mesmas pelo que, escusadas as reproduções, evita-se o excesso de bajulação e parte-se para a cena seguinte em que ambos traçam o plano de suas vidas. Afinal, não é todos os dias que tão ilustres figuras da sociedade dão início aos preparativos de um assassinato. Fez-se longo o debate sobre o melhor modo de pôr fim à cotovia odiada e, depois de ponderarem os prós e os contras, as facilidades e as dificuldades que os métodos exigiam, chegaram a uma conclusão.

Constância: Consta que a cotovia prepara uma récita para daqui a alguns dias. Será necessário algum apoio e maior cuidado mas assim de repente, não me ocorre ideia melhor que essa – retruca em claro modo pensativo. – Um incêndio no teatro, de certo não levantará suspeitas dignas de grande preocupação e o resultado será fulminante – solta fria e calculista, desprendida de qualquer laivo de arrependimento.

Bonifácio: Sua indiferença me causa arrepios baronesa. Temos que ponderar muito bem tudo isso, nada pode falhar, muito menos podemos deixar pontas soltas que liguem o caso a nós. A ideia é boa, mas é preciso assegurar que o incêndio só deflagrará após a saída em segurança de todos os demais presentes. Além disso, depois da denúncia que saiu hoje contra o judiciário naquele jornaleco de quinta categoria, precisamos a todo o custo zelar pelo sigilo – afirma preocupado referindo-se com altiva repugnância ao “Correio da República”.

Constância: Ora e quem lhe disse que eu penso em levar a cabo tal ação na hora da récita? Não meu caro, terá que ser antes, durante ou depois de um ensaio. Quase ninguém além de Catarina estará no teatro a essa hora, e ainda que os haja, facilmente os poderemos atrair à rua, longe da barafunda que aguarda a cantora. Vou aumentar a frequência dos meus passeios pela Ouvidor nos próximos dias, assim posso estudar eu mesma as andanças à volta do teatro chinfrim.

Bonifácio: E eu me encarrego de arranjar a equipa de intervenção.

Constância: Veja se não exagera na quantidade, será mais proveitoso primar por um ou dois lacaios de confiança e muito bem pagos.

Bonifácio: Não me subestime baronesa, sou perfeitamente capaz de cuidar dos nossos interesses da melhor forma – assegura cheio de si aproximando-se dela que caminha calmamente pelo espaço vazio do escritório.

Constância: Ótimo, poupa-me umas quantas insónias! – exclama irónica precipitando-se para a porta. – Agora vou-me, faz-se tarde e não quero despoletar burburinhos nos corredores de sua fábrica.

Bonifácio: Nunca que tal sucederá, as visitas de minha comadre são sempre providenciais, por motivos meramente familiares e do conhecimento inequívoco de minha adorada esposa – devolve no mesmo tom hipócrita beijando-lhe a mão.

Resolução tomada e aprovada, D. Constância abandona a tecelagem e, ainda que seu passo firme e prepotente dissimule como ninguém, no fundo seu coração bate descompassado e sua alma vacila, aturdida pelo pavor do ato criminoso que se prepara para cometer.


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Notas finais do capítulo

Antes de mais, agradeço mais uma vez a todas que me dão ânimo para escrever, a quem acompanha e a quem comenta. Já devem ter reparado, mas deixo essa nota breve para esclarecer que escrevo em português europeu ligeiramente adaptado. Mesmo com o acordo ortofráfico, ao qual eu ainda estou me habituando, existem algumas diferenças mais ao nível da ortografia do que da construção frásica. Se porventura tiverem alguma dúvida com alguma coisa menos comum que eu escreva, sintam-se à vontade para "reclamar". Obrigada