Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 43
"Conversas Paralelas"




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Bonifácio está incrédulo. Por menos escrupuloso que seja, jamais o ex-senador se imaginara no papel de um assassino. Contudo, hoje, posa diante de si a mais impecável e irrepreensível senhora da sociedade, sogra de seu filho e sua amante, propondo-lhe sem preâmbulos a morte de um ser humano e, ainda que esse ser seja Catarina Ribeiro, a ideia não deixa de lhe causar certo asco e apreensão. De olhos bem abertos, fitando o semblante pouco preocupado de Constância, Bonifácio tenta destravar a voz sufocada pelo susto e, gaguejando ligeiramente, põe fim ao silêncio sepulcral que se abatera sobre o cómodo.

Bonifácio: Como disse D. Constância? Julgo que devo tê-la interpretado de modo equivocado – fala sarcástico movido pelos nervos.

Constância: Sr. Bonifácio, não me faça perder o meu precioso tempo. O senhor escutou muito bem cada palavra que saiu de minha boca. No entanto, e porque sou paciente e compreensiva, não vou forçá-lo a uma decisão impensada – responde calma enquanto reposiciona uma mecha de cabelo. – Reflita bastante, pense no estrago que aquela mulher causou em nossas famílias, na mossa profunda que ainda pode vir a infligir caso se farte de chantagens baratas e, quando tiver uma resposta, me procure. Devo dizer-lhe que também não é uma solução que me apraz, antes pelo contrário, me desperta certo temor mas, problemas difíceis requerem medidas drásticas – conclui apanhando da beira da cama o chapéu e a bolsa.

Bonifácio: Ao que a senhora chama de medida drástica, eu chamo de auge da loucura – ri debochado inflamando o tom. – Contudo, diante dos fatos, sou forçado a concordar que não me ocorre outra saída. Fernando exige que eu lhe passe as minhas ações na fábrica em troca do silêncio dos dois – conta esforçando-se por manter-se alerta em meio ao caos enfurecido e complexo que se apodera dele. – Se fizer o que ele quer, vou perder todo o património que me custou tanto a erguer.

Constância: Além de levantar suspeitas nos demais membros da família – acrescenta. – Como vê meu caro, nossas opções são limitadas mas, longe de mim querer apressá-lo. Quando desejar partilhar a sua decisão, sabe onde me encontrar. Até mais ver.

Com um breve e pouco efusivo aceno, o industrial cumprimenta a saída de Constância e, num movimentos brusco tão ou mais penoso do que o ódio e assombro que o aniquilam, deixa-se cair sobre a poltrona e entrega-se por mais alguns instantes prolongados ao turbilhão de pensamentos que lhe povoam a mente. Sua decisão não pode tardar ou não lhe restará outro desfecho senão entregar a administração da tecelagem nas mãos irresponsáveis de Fernando. Embora receoso do peso irremediável das palavras, no seu íntimo pouco ou nada ortodoxo, Bonifácio está ciente de sua concordância com a sugestão de Constância. Por mais cruel e desumano que seja, a morte de Catarina é inevitável, pelo bem dos Vieira e dos Assunção.

Completamente alheios a este dilema criminoso que se forma como um cerco demolidor à volta deles, Fernando e Catarina repousam fatigados nos braços um do outro, envolvidos pelo cetim dos lençóis que cobrem o leito onde deram azo à luxúria. Fingindo dormitar, suavemente acariciada pelas mãos apaixonadas do rapaz que lhe desgrenha sem saber os longos e encaracolados cabelos negros, Catarina permanece imóvel neste enlevo amoroso só desperta por um carinho mais forte de Fernando que, involuntariamente, lhe puxa em exagerado círculo alguns fios de cabelo.

Catarina: Ai Fernando! – repreende aborrecida soltando-se dos braços do noivo. – Tenha cuidado com minhas mechas, são tão delicadas – prossegue penteando com os dedos o emaranhado de nós de semicírculos que lhe decoram a cabeça.

Fernando: Me perdoe meu amor, estava distraído. Nunca faria algo propositado para te magoar – diz fazendo-lhe uma festa enquanto se senta contra a cabeceira da cama.

Catarina: Eu sei, eu sei. Desculpe-me pela reação abrupta – reconhece esboçando um meio sorriso. – Você me parece distante, se há algo que te aflige, sou toda ouvidos meu amor – fala voltando a prostrar-se sobre o peito franzino e alvo do jovem.

Fernando: Várias preocupações me rondam mas, neste exato momento, somente uma delas me tira o sossego do teu corpo – dispara sisudo sem despregar os olhos hirtos do espelho que o reflete do outro lado do quarto.

Catarina: Pois fale meu querido. Como sua noiva é meu dever libertar-te das penas que te assolam – replica inquieta tomando assento no meio da cama.

Fernando: Se é assim, explique-me o que foi aquele seu impulso na Colonial. Adianto-lhe Catarina, que para me convencer que se tratou de um mero golpe para atingir Edgar e Laura, terá de se superar. Eu melhor do que ninguém conheço seu cinismo e nada me diz que aquilo foi pura encenação – retruca azedo desviando o olhar na direção da cantora.

Catarina: Ora Fernando, com franqueza, que idiotice de sua parte ficar aborrecido por causa daquilo! É óbvio que eu fiz isso para provocar o casalinho e consegui, ou você não viu o medo estampado na cara deles? – devolve aflita erguendo-se de costas voltadas para ele.

Fernando: Você realmente me toma por tolo! Catarina eu não sou o meu irmão, a ingenuidade que ele herdou de nossa mãe não se ateve a mim por razões agora conhecidas portanto, diga-me a verdade – exige levantando-se atrás dela e seguindo-a até à cómoda. – Eu sei bem que algo mais despertou em você quando viu a menina.

Catarina: Minha filha Fernando… minha filha – afirma séria imprimindo alguma velocidade à escova com a qual penteia os cabelos. – Não se preocupe, apenas me deixei levar momentaneamente por um devaneio… nada que possa por a perder o nosso plano – adianta recuperando a firmeza na voz.

Fernando: Folgo em ouvir essas doces palavras meu rouxinol. É fundamental que estejamos em sintonia e você sabe que uma criança em nossa vida, numa altura crucial como esta, só nos prejudicaria – acrescenta como que refreando-a suavemente à medida que lhe massaja veemente os ombros contorcidos.

Catarina emudece, qual criança silenciada pela ordem imposta por um adulto mas, por maior que seja seu esforço, nas raízes do seu pensamento descompassado, vigoram ainda vivas as lembranças bem vincadas do corpo magro de Melissa em seu colo e daquele sorriso infantil e desconhecido, porém sincero e amável, que a menina lhe ofertara sem medos ou rodeios. Controlada pelas palavras e mãos de Fernando que, duvidoso, segue tocando-a como quem tenta ler-lhe a razão, a cantora encara o espelho diante de si e repara então na inevitável realidade; Melissa herdara a sua fisionomia.

Entre as horas passadas durante estes encontros carregados de surpresas difíceis e pouco conciliadoras, cai a noite na capital e, uma a uma, vão-se iluminando as ruas, guiando a passagem dos transeuntes que ainda as percorrem.

À luz enfraquecida das lâmpadas que compõe, a par de algumas velas, a iluminação rasa do escritório, Edgar bate ininterruptamente os dedos nas teclas da máquina de escrever. Vai a meio da terceira página onde se pode ler a concluída matéria sobre a corrupção no judiciário. Algumas semanas de investigação cuidadosa, haviam resultado na descoberta de uma verdadeira rede de favorecimentos no seio da justiça e, em questão de mais um ou dois dias, os nomes dos corruptos e seus instigadores, estariam estampados na primeira página do “Correio da República” pela mão eloquente e faro imperturbável de António Ferreira.

Acomodada numa cadeira do lado oposto da mesma mesa, Laura lê lenta e miudamente cada palavra impressa no papel e, de caneta em punho e tinta ao alcance da mão, vai rasurando os poucos lapsos de digitação, enquanto seu cenho franzido e constantes movimentações corporais na cadeira, sobressaem todo o bulício que a consome. Apercebendo-se do estado irrequieto da esposa, Edgar fita-a de soslaio e, com um sorriso curioso, pausa o trabalho na máquina e aguarda pacientemente que a jovem lhe devolva o segundo de atenção que ele lhe dedica.

Edgar: Hum… vejo que vou continuar a ser ignorado – repara inquisidor perante a concentração acentuada da professora.

Laura: Edgar, meu amor, eu nem sei o que dizer! – exclama com os olhos ainda presos no papel que segura na mão esquerda. – Nunca li uma reportagem tão avassaladora. António Ferreira é um jornalista excepcional – diz visivelmente feliz.

Edgar: Agradeço o elogio mas, como seu marido, devo alertá-la para o fato de nada me agradar esse seu encanto para com outro homem – solta divertido porém irremediavelmente enciumado.

Laura: Mas que marido bobo eu tenho. Para seu governo, Dr. Vieira, à excepção do talento inquestionável deste jornalista com as palavras e a pesquisa, não há um só detalhe que desvie a minha atenção e o amor que lhe tenho. Mesmo você sendo mais ingénuo do que o António Ferreira, algo que, aliás, muito me intriga – afirma provocadora pondo-se de pé ao lado dele que continua sentado.

Edgar: Ah é? Pois muito bem Sra. Vieira, diante dos fatos vejo-me obrigado a concordar que sou realmente um pouco bobo, principalmente quando estou diante de tão inebriante e desconcertante esposa – acrescenta puxando-a num ápice para si, levando-a a sentar-se em suas pernas para de seguida lhe beijar intensamente os lábios.

Laura: Estou certa de que esta é apenas a primeira de muitas matérias. E nas próximas não se esqueça que não vou lê-las somente quando já estiverem prontas. Eu quero tudo com você Edgar, inclusive partilhar esta sua paixão escondida pelo jornalismo – fala reforçando a promessa que o advogado lhe fizera horas antes, emoldurando-lhe o rosto entre ambas as mãos.

Edgar: Não me resta outra alternativa não é mesmo? Laura, falando sério meu amor, te incluo de bom grado, sua ajuda será preciosa mas você tem que me prometer que vai seguir as minhas orientações. Jamais me perdoarei se acontecer alguma coisa com você ou com as crianças por causa desta minha atividade – pede grave afagando-lhe as pernas.

Laura: Prometo – garante alegre enchendo-o de beijos.

Após a troca de carícias, Laura retoma seu posto de revisão e, depois de concluída a correção do texto, Edgar volta a passá-lo novamente pela prensa das teclas da máquina de escrever. Com a certeza de que no dia seguinte, Guerra receberá sua encomenda devidamente composta, o jovem casal ruma à sala da residência e detém-se por breves instantes a observar os filhos que, estranhamente, brincam afastados. Enquanto Melissa veste pacientemente a boneca de porcelana sentada no sofá, Francisco corre de um lado para o outro, ora escondendo-se atrás de algumas esquinas e móveis soltos, ora vociferando em aparente solidão um discurso de fuga. Num esforço quase hercúleo para asfixiar o riso, Edgar aproxima-se sorrateiro do menino e surpreende-o de costas a meio de um conflito; capturar ou não o pirata que tenta roubar-lhe o tesouro! Aninhado ao lado do pequeno, o advogado segura-o pela cintura, de frente para si, e convida-se para a brincadeira.

Edgar: Estou com a sensação de que o meu amo precisa de ajuda na luta obstinada contra o pirata malvado – fala disfarçando a voz serviçal, provocando com isto a gargalhada do filho.

Francisco: Mas o pirata fugiu – revela deveras preocupado.

Edgar: Espreite por cima do meu ombro esquerdo – sussurra-lhe. – Ainda há pouco tive a impressão de avistar o navio com duas piratas malvadas a bordo – indica apontando para o sofá atrás de si onde Laura ajuda Melissa a cuidar da boneca que a pequena crê doente.

Francisco: Papai, os piratas são meninos – contesta decidido murmurando-lhe bem baixinho ao ouvido como se esta afirmação não fizesse parte do jogo.

Edgar: Finge que são os piratas da sua história – sugere.

Diante da concordância de Francisco em incluir Laura e Melissa na brincadeira, os dois partem pé ante pé em direção ao sofá e, com as invisíveis espadas em punho, tomam de assalto o “navio” e facilmente rendem os “piratas” apanhados desprevenidos. A gargalhada que se segue contagia a todos e, assim descontraídos, caminham para o fim de mais um dia tumultuado. 


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