Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 42
"Sentimentos Complexos"




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O salão principal da confeitaria está composto. Entre os lugares ocupados pela mais fina estirpe da sociedade carioca, contam-se poucas mesas vazias, que aguardam com certo anseio confortar mais alguns quantos ricos corpos, e saciar-lhes a fome e a sede sempre graciosamente camuflada, como é de bom tom a damas e cavalheiros que se prezem. Numa dessas mesas, habitam em constante exultação Fernando e Catarina que, à hora do almoço, experimentam o melhor vinho de reserva e uns quantos acepipes dignos do mais distinto restaurante parisiense. É notório que o momento é de comemoração e, como tal, prevendo um gasto considerável, um dos funcionários serve-os de plantão, propositadamente destacado para o efeito. O motivo, esse esconde-se na troca acesa de olhares e no cruzamento descarado de pernas, encoberto pelo longo tecido da toalha branca que aquece a mesa. Qual pássaro acorrentado, Catarina faz um esforço dolente por não extrapolar as emoções e, entre sorrisos e carícias visíveis mais comportadas, recebe com orgulho e peito inflamado, o anel cravado de diamantes que Fernando lhe oferece como prova do prometido noivado e sinal do seu mais profundo amor e devoção. À frente deles, ao alcance de um curto gesto, posam cintilantes as belas taças nas quais o empregado de mesa verte meticulosamente a Möet & Chandon com que se adivinha o brinde. O erguer das taças faz-se sob o olhar de relance que os presentes ao redor sentem dificuldades em disfarçar, encadeados pelo brilho exagerado do anel que reluz no vidro.

Tudo corre de feição ao casal enamorado e, de braços entrelaçados num romance sem lei nem tempo, levam o doce champagne à textura dos lábios numa prova que se julga demoradamente aprazível mas que se revela breve quando os olhos secos de Catarina avistam à entrada Laura, Edgar, Francisco e, claro, sua filha Melissa.

Não se pode dizer ao certo quem viu quem primeiro nem tão pouco negar a repetida fascinação que Melissa demonstra ao dar-se conta da presença daquela mulher que dias antes, por razões a ela desconhecidas, arruinara a festa de seu irmão. Para Laura e Edgar, as sensações são quase as mesmas também, embora não tão exacerbadas por desta vez o fortuito encontro se dar num local público. As pernas de Laura não tremem nem parecem enfraquecer diante dos dois, pelo contrário, algo a faz sentir-se mais firme e decidida ainda que sua vontade primária seja a de abandonar a confeitaria sem reservas. O medo e a raiva que acometeram Edgar dias antes, viam-se agora estranhamente substituídos por uma pena absurda de seu irmão mais novo, o bastardo como, segundo sua mãe, seu pai passara a apelidá-lo desde o confronto. No seu íntimo complacente, o jovem advogado tem até vontade de perdoar a canalhice vingativa de Fernando e, interiormente, pode-se mesmo ouvir a sua consciência reconhecer que, fossem outros tempos e Catarina alheia ao seu passado de mágoas, dificilmente não o receberia em seus braços.

Ressuscitados deste coma acordado em que se encontram, ainda em pé mas já ao lado da mesa para a qual foram, sem sentidos, conduzidos, Laura e Edgar desviam o olhar preso no dos dois ocupantes da mesa ao fundo e acomodam-se com as crianças, tentando abstrair-se com elas. Só então se apercebem que, sentada ao lado do pai, de frente para Francisco e com a mesa de Fernando e Catarina em vista, Melissa não corresponde aos estímulos do irmão que a chama perto do desespero. Como uma estátua de gelo, petrificada pelo encantamento dos olhos da cantora que igualmente a fitam intrigados pela súbita vontade de a tocar, a menina prossegue atada à presença de Catarina, para angústia de Edgar e Laura. Com o pedido feito, pensam pagar sem consumirem e correr dali para fora mas, perseguidos pela pouca sorte ou simplesmente traídos pela dificuldade em camuflarem os sentimentos, é com temor, aborrecimento e frustração que vêem o casal de noivos apressar disfarçadamente o passo em direção à mesa onde se encontram.

Fernando: Ora, ora, veja só meu amor quem veio prestigiar a consumação do nosso noivado – dispara descarado em tom de escárnio, com uma das mãos apoiada na bengala e a outra no bolso onde guarda o relógio acorrentado.

Edgar: Fernando, não é hora nem local para ironias e troca de farpas. Ao menos respeite as crianças e retirem-se, por favor – devolve educado mantendo o discernimento que a ocasião pede.

Fernando: Não se preocupe meu querido irmão. Para ser sincero, por mim teríamos saído à francesa mas, deve convir que, todos iriam estranhar se não nos cumprimentássemos – murmura-lhe por entre um sorriso dissimulado.

Laura: Pois bem, já satisfizemos as aparências, não vejo o que mais haja aqui do vosso interesse – acrescenta inquieta encarando o cunhado.

Catarina: Melissa! – chama causando espanto e pânico nos demais. – Posso te dar um abraço? – questiona parecendo comovida e com uma doçura na voz que não lhe era habitual.

Perante a incredulidade e o exaspero comedido de Laura e Edgar que se sentem emaranhados numa teia que lhes consome a força de contestação, Melissa faz pouco caso dos semblantes assustados e em negação dos pais e salta da cadeira, pronta para trocar um abraço com Catarina. Pode-se dizer que a emoção espalhada na face rosada da cantora advém do dramatismo elástico e fingido que a caracteriza mas, uma observação mais detalhada e livre de preconceitos, verá neste envolvimento das duas uma verdade e sinceridade desconcertantes.

Catarina: Como você é linda, uma verdadeira princesa – elogia elevando-a no colo enquanto lhe faz um mimo no rosto.

Melissa: A senhorita também – diz sorridente devolvendo-lhe o gesto. – Como sabe o meu nome? – inquere atentando às feições da cantora como quem tenta imprimi-las na memória.

Catarina: Porque sou a sua…

Edgar: Chega! – brada enlouquecido erguendo-se de supetão. – Melissa venha, está na hora de voltarmos para casa – completa fazendo por acalmar-se à medida que recupera a menina do colo de Catarina que mal disfarça a raiva pela interrupção.

Catarina: … tia querida, eu ia dizer que sou, ou em breve serei, sua tia – conclui sagaz.

Fernando: Catarina, é melhor irmos embora, não quero piorar a indigestão da minha adorada família – corta seco e hipócrita lançando um último olhar debochado ao irmão e à cunhada.

Catarina: E eu tão pouco pretendo desencadear um escândalo aqui. Nada abala a felicidade que você me proporcionou hoje meu querido – fala reavendo seu cinismo trivial.

Batendo os pés firmemente no chão, como que anunciando a todos a saída de um casal real, Fernando e Catarina retiram-se enfim, deixando Laura e Edgar entregues uma vez mais à dor solitária. Decidida, a jovem toma Francisco nos braços e levanta-se da mesa, pronta para abandonar a confeitaria a par do marido que sufoca Melissa num aconchego temeroso e apertado. Sem mais delongas, tamanha é a sua pressa de rumarem ao sossego de casa, Laura abre a bolsa e retira umas quantas notas que coloca levemente sobre a mesa, fazendo sinal ao empregado que não tarda a recolher o pagamento. Edgar está tão perdido que nem se dá conta que a esposa se responsabilizara pela conta.

Num silêncio aterrador, chegam finalmente a casa, exauridos pela chuva de perguntas entusiasmadas que Melissa lhes lança sobre a misteriosa moça de roxo que tanto lhe apraz e suscita uma curiosidade inexplicável. A tenra idade da menina e seu entendimento ainda limitado, foram úteis na procura de respostas pouco evasivas e, ao romperem pela sala, é com alívio que a vêem seguir Francisco escada acima em direção ao trem e às bonecas que os esperam impacientes para dar início à tarde de brincadeiras.

Laura: Edgar! – exclama num murmúrio que se adivinha choroso.

Edgar: Não diga nada Laura, não diga nada. Já me custa em demasia o peso dos pensamentos, não me julgo capaz de ouvir mais nada a este respeito – afirma tomado pela mesma emoção e assombro. – Me abrace apenas meu amor, pois só nos seus braços eu me sinto inteiro – declara recebendo-a sem demoras.

Laura: Evitar falar disso não vai resolver o problema. Você viu como elas se olharam? Se eu não soubesse quem é Catarina, teria acreditado que ela nutre algum sentimento pela Melissa – diz encostando o rosto ao peito do marido.

Edgar: A mãe dela é você Laura, nada vai mudar isso – contesta afagando-lhe os cabelos.

Laura: Não, não sou e nós dois sabemos que um dia Melissa saberá a verdade, mais que não seja, quando começar a questionar-se o porquê de não ter o meu nome – discorda afastando-se dele.

Edgar: Não quero discutir, por favor Laura, vamos esquecer esse assunto por hoje – retruca apoquentado, consciente da irritação de sua esposa.

Laura: Pelos vistos, voltamos a viver numa quimera e mais uma vez, você insiste em não ver o tamanho do problema que caiu em nossas mãos. Vou tomar um banho – informa aborrecida. – Quem sabe a água me lava a alma e os pensamentos – termina subindo já as escadas dando as costas ao advogado que lança os olhos ao chão.

Edgar: Eu vou p´ro escritório. Com tudo isso atrasei a matéria para o jornal – devolve estarrecido sem dar o braço a torcer.

Laura: Se tivesse aceite minha ajuda, talvez tivesse terminado mas como nem para isso sirvo – dispara aguçada a meio da escada.

Edgar: Laura, não é nada disso – responde voltando atrás chateado com a resposta azeda da professora. – Se não quis sua participação na pesquisa foi apenas para te poupar e proteger – justifica-se.

Laura: Me proteger? De quê Edgar? Da tinta da caneta com que me dispus a revisar seu texto? – pergunta enfrentando-o numa inflamação crescente.

Edgar: Ah Laura! Você não entende que eu não posso correr riscos com você? Essa matéria é perigosa, se descobrirem que estou investigando, pode respingar em você e eu nunca me perdoaria por isso – continua.

Laura: Tem razão Edgar, eu realmente não entendo – conclui retomando a marcha pela escada.

Edgar: Como você é teimosa – diz ressentido passando as mãos pelos cabelos, um instante antes de seguir atrás dela. – Laura, vamos conversar, me deixa explicar – insiste.

Laura: Pensei que você não queria conversar.

Edgar: Se não fosse pela sua reação intempestiva, poderíamos resolver isto de outra forma – sugere entrando com ela no quarto.

Laura: Não julgue que me distrai com insinuações. Isso não muda o fato de você continuar a excluir-me da sua atividade como jornalista – fala à medida que começa a despojar-se da indumentária.

Edgar: Se te faz feliz, eu cedo-te a revisão do texto – concorda por fim inebriado pela escassez das vestes que ainda cobrem o corpo esguio da moça.

Laura: E nas próximas matérias não vai negar minha participação mais ativa – pede calmamente achando-se em vantagem.

Edgar: ´Tá, prometo que vou pensar – assente enquanto despe o paletó num ápice sem despregar os olhos de Laura que o fita de camisola.

Laura: Lamento mas isso não é resposta – nega encaminhando-se para a porta. – Quando me contou sobre o António Ferreira e eu disse que te ajudava, foi essa a resposta que me deu e até hoje eu não cheguei nem perto dessa matéria – recorda sisuda.

Edgar: Eu faço tudo o que você quiser, com tanto que você não ouse abrir essa porta agora – diz envolvendo-a pela cintura e beijando-lhe o pescoço e o ombro.

Laura: Mas nós estamos discutindo e os assuntos são sérios – reclama sem controlar os arrepios que aqueles toques suaves e intensos lhe provocam.

Edgar: Neste momento não me ocorre discussão nenhuma, não me lembro mais e não há assunto que me interesse mais do que este – afirma peremptório virando-a de frente para si e encostando-a contra a porta onde dão início aos longos beijos e demais carícias.

Nesta mesma tarde, que se manifesta dual em acontecimentos e emoções para Laura e Edgar que agora se amam com volúpia, D. Constância chega à hora combinada para mais um encontro com Bonifácio no apartamento que, desde a chantagem de Catarina, lhes servia de alcova. Imponente e elegante, porém severamente calculista, a baronesa entra pela porta e logo se depara com Bonifácio que a olha impaciente e bajulador.

Bonifácio: D. Constância, pontual como sempre – diz lascivo beijando-lhe a mão direita que continua poupada pela pelica da luva bege.

Constância: Poupe-me de seus galanteios Bonifácio. Hoje a prosa que me trouxe aqui é outra – informa desdenhando dos desejos do industrial.

Bonifácio: E eu até sou capaz de adivinhar, minha cara, o que envolve sua vinda. Fernando extrapolou todos os limites e, deixe que lhe diga, ainda teve o desplante de me chantagear… aquele bastardo infame – vocifera colérico tomando assento na poltrona em frente à cama.

Constância: Pois quanto ao seu filho não sei que lhe dizer mas no que respeita à cantora – afirma pensativa levitando entre a cómoda e a cama – creio que tenho a solução.

Bonifácio: Então me diga, o que pensa fazer para nos livrarmos deste estorvo?

Constância: De modo algum nossos pecadilhos podem ultrapassar mais paredes portanto, por mais que me custe dizer isto, só vejo uma forma de silenciar a cotovia e, quem sabe ainda, despoletar algum receio em seu filho.

Bonifácio: Deixe-se de rodeios D. Constância! – persiste curioso levantando-se.

Constância: A morte meu caro, a morte de Catarina Ribeiro!


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