Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 41
"O Segredo Partilhado"




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O sol bate forte na janela do quarto aquecendo a cama já feita onde Edgar está sentado terminando de apertar os cordões dos sapatos. Laura saíra pouco mais de uma hora antes para a escola enquanto que, pelos últimos acontecimentos, Edgar decidira não trabalhar. Está preocupado com sua mãe e, na companhia das crianças pretende visitá-la durante a manhã. Alguns minutos depois, e não faltando mais nada para completar o seu preparo para a saída, o advogado toma as pequenas mãos de Francisco e Melissa e conduz o automóvel em direção à residência de seus pais. A menos que tivesse ocorrido algum contratempo, aquando da sua chegada, Bonifácio estaria já ditando as ordens do dia na fábrica portanto, D. Margarida esperava-se sozinha.

A viagem não foi demorada dado que a distância entre os dois domicílios também não era relativamente grande. Bafejados pela brisa amena da manhã, os visitantes acham-se à porta da casa anunciando com cordiais batidas a sua presença. Não tardam a serem atendidos pela criada e, segundos passados, o corpo elegante mas desgastado de D. Margarida rompe pela sala. O colorido vaso de flores que paira serenamente ao fundo da escada, acentua a palidez do rosto da senhora. A esposa do industrial nunca demonstrara grande animosidade mas hoje aparenta uma tristeza particular.  Ao ver os netos porém, seus olhos frágeis se enchem de alegria, traduzida num expressivo sorriso com que os recebe em seu abraço.

Edgar: Bom dia mãe! Desculpe ter vindo sem avisar mas estava tão preocupado com a senhora que resolvi vir assim mesmo – diz sorridente beijando-lhe carinhosamente a fronte.

Margarida: E fez muito bem meu filho, ou melhor, fizeram já que ainda me presenteou com meus dois pequenos amores – responde afagando os netos.

Edgar: Francisco, Melissa, vão até à cozinha. Algo me diz que há por lá aquele doce de abóbora de que tanto gostam – sugere pretendendo ficar a sós com a mãe. – Mas não se sujem caso contrário deixaremos mamãe esperando por nós para o almoço – recomenda ao notar a excitação de ambos com a guloseima.

À semelhança do habitual, ao ouvir o chamado do doce, Melissa sai em disparada rumo à cozinha, seguida de perto pelas pernas mais ágeis de Francisco que não tarda a ultrapassá-la. O sossego volta a imperar na majestosa sala e, ciente da seriedade da conversa, Margarida acompanha Edgar até ao sofá e nele acomodam-se um ao lado do outro. Por breves instantes, o silêncio pesado mantém-se preso num olhar terno e meigo que mãe e filho trocam, como se nele conseguissem conter todos os significados.

Edgar: Mãe, eu sei o quanto a senhora está sofrendo, o quanto deve ter sofrido calada todos esses anos – fala pausadamente enquanto pousa a mão na gélida e pálida de sua mãe que descansa trémula em suas pernas. – Meu pai, ele fez alguma coisa com a senhora depois que saíram de minha casa? Não me minta mãe, a senhora sabe que pode confiar em mim – acrescenta temeroso da resposta que procura nos olhos marejados de Margarida.

Margarida: Seu pai não me tocou Edgar. Bonifácio tem aquele jeito intempestivo e autoritário como todos os homens do seu tempo mas ele nunca me bateu, se é isso que você quer saber – conta desanimada.

Edgar: Por vezes as palavras magoam mais do que bofetadas minha mãe e, dessas, eu sei bem que ele não a poupa – responde levantando-lhe o rosto com um toque suave.

Margarida: Minha maior dor eu já senti Edgar, depois de ver ser irmão saindo dessa casa escorraçado como se fosse um animal doente – afirma por entre as lágrimas que emanam abundantemente em sua face. – Fernando foi embora ontem de manhã depois que os dois se atracaram uma vez mais.

Edgar: Mãe, eu sinto muito por tudo isso, ainda mais sabendo que é a senhora quem mais sofre mas, talvez tenha sido melhor assim. Depois do que sucedeu, se eles continuassem a viver debaixo do mesmo teto, a probabilidade de ocorrer uma tragédia seria grande.

Margarida: Eu não sei o que deu no seu irmão. Até entendo a rixa com Bonifácio, não lhe tiro a razão mas o envolvimento com aquela mulher!

Edgar: Fernando quis me atingir e achou que a melhor forma de o fazer era relacionando-se com Catarina.

Margarida: A mãe de sua filha… que ironia meu Deus – profere escondendo o rosto por entre as mãos.

Edgar: Tem uma coisa que eu preciso lhe contar sobre esse assunto. É um segredo que eu e Laura vimos guardando há muito tempo mas, perante tudo isto, é justo que a senhora fique sabendo – diz erguendo-se lentamente do sofá e dando alguns passos entre este e a poltrona.

Margarida: Um segredo? Edgar, seja o que for, fique tranquilo meu filho. Jamais sairá de minha boca – garante fitando o jovem com certa apreensão.

Edgar: Eu confio na senhora, por isso vou contar-lhe. Melissa… não é minha filha – desabafa sem demoras. – Tudo não passou de uma mentira vil de Catarina p´ra tentar viver às minhas custas e, quem sabe, acabar com o meu casamento.

Margarida: Filho, eu nem sei o que te dizer – fala incrédula indo ao encontro dele.

Edgar: Não precisa dizer nada minha mãe. Apenas quero que me conte a sua história, a história da vida que viveu em silêncio carregando a traição de meu pai. De certo modo, eu também cometi esse mesmo erro com Laura – prossegue entristecido.

Margarida: Ainda que Laura esteja tão longe de ser um mero objeto de adorno como eu – constata. – Venha, sente-se aqui que eu vou recordar como tudo aconteceu – indaga conduzindo-o pela mão de volta ao sofá. 

A conversa prolongou-se por um par de horas e, já perto do meio-dia, do outro lado da cidade, Sandra e Laura vem descendo vagarosamente as amplas escadas de pedra que ligam as salas de aula e o claustro do mosteiro que abriga o colégio religioso. Apoiando firmemente as pastas e os dois livros contra o peito, Laura caminha pensativa e muda como quem sonha acordada. Notando a distração enlevada da amiga, Sandra corta o passo e leva sua mão ao braço de Laura tentando chamá-la à atenção.

Sandra: Laura! Me perdoa a intromissão mas meu coração está apertado por te ver desse jeito.

Laura: Eu é que tenho que me desculpar Sandra. É que são tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo – retruca em meio de um suspiro pesaroso. – Vamos andando até ao portão, no caminho não devemos cruzar-nos com mais ninguém, eu te conto o que tanto me aflige.

Sandra: Laura, não precisa me contar nada que eu não deva ou possa saber. Tudo o que eu quero é te ajudar a sentir-se melhor – afirma retomando a marcha ao lado dela.

Laura: E tem coisa melhor do que partilhar as aflições com nossos amigos verdadeiros? – questiona esboçando um sorriso. – Você só tem que me prometer que nunca vai contar a ninguém. Sandra, é muito importante – pede fechando o semblante.

Sandra: Meu Deus Laura é tão grave assim? Tem alguma coisa a ver com a confusão da festa? – interroga um tanto impaciente.

Laura: Sim, particularmente diz respeito à Melissa – começa ao avistar o solitário portão que guarda a entrada do colégio. – A Melissa não é filha do Edgar – revela em voz baixa encostando-se à sombra das grades abertas.

A confidência apanha Sandra de surpresa. A jovem achava-se preparada para ouvir muitas coisas, diversas versões até de uma mesma história mas não aquilo. Ela, a par dos outros amigos e familiares, nunca duvidara da paternidade da pequena e agora, de repente, Laura punha a descoberto uma verdade que durante anos absorveu interiormente e que, de certa forma, a tinha auxiliado no processo de crescimento maternal para com a menina. Contudo, a reentrada abrupta e forçada de Catarina pela mão de Fernando na sua vida e na de Edgar que, qual pais sem fronteiras, se tornara uma só e única, alterava o rumo dos acontecimentos. Com os batimentos ligeiramente descompassados pela compreensão feminina que lhe grita nas veias, Sandra ampara os seus pertences no braço esquerdo e, de frente para Laura que observa as pedras da calçada tentando imprimir nelas as lágrimas que lhe brotam dos olhos, toma-lhe uma das mãos na sua direita. Só o chilrear dos pássaros cruzando os galhos nas vizinhas árvores corta a calma aparente que se impõe e só eles testemunham o abraço comovido que as duas amigas trocam ali mesmo. Com a respiração entrecortada pelo ténue e controlado choro, Laura deixa-se levar nos braços da amiga por alguns momentos e, somente quando se sente recuperada, a devolve ao afastamento dos corpos.

Laura: Você não imagina as vezes que eu tive vontade de te contar, de gritar a todos que eu não aceitei calada a filha que meu marido teve com outra mulher – diz em tom de desabafo. – Mas eu não podia, pela Melissa, por nós. Aos poucos eu fui conseguindo olhar p´ra ela e vê-la apenas como uma criança que precisa de amor e carinho. Eu me refugiei nisso p´ra tentar esquecer o quanto eu sofri por causa da mentira daquela mulher. Sei que pode parecer egoísta mas, muitas vezes eu penso que, se o Edgar fosse mesmo o pai dela ou se nunca tivéssemos descoberto a verdade, talvez eu não fosse capaz de criá-la e aceitar ser chamada de mãe – completa esforçando-se por conter o nervoso que a assola.

Sandra: Você é a pessoa mais generosa que eu conheço Laura e eu entendo bem o que você está sentindo. Seus sentimentos são legítimos e sua atitude louvável porque, apesar e tudo, você cuidou dessa menina com o amor de mãe que ela nunca teria. No outro dia, não pude deixar de ouvir a discussão na sala de sua casa – confessa consternada. – Aquela moça que Fernando apresentou como noiva é a mãe da Melissa não é?

Laura: Agora você compreende o meu medo! Com aquela mulher nos rondando, temo que ela faça alguma coisa com a Melissa, que lhe conte que não somos os pais dela. Ela é tão pequena ainda, não vai entender e pode revoltar-se… – conclui a ponto de se deixar levar pelo desespero.

Sandra: Não pense nisso, uma coisa de cada vez. Se em tanto tempo não procurou por ela, não há motivos para o fazer agora. Não vai acontecer nada, você verá – tranquiliza envolvendo-a de novo num abraço.

Laura: E como se não bastasse tudo isto eu ainda estou atrasada – interrompe apanhando as lágrimas à pressa.

Sandra: Atrasada p´ra quê Laura? Você não disse que o Edgar vinha te buscar? – pergunta consecutivamente sem entender.

Laura: Você não percebeu. Minhas regras estão atrasadas Sandra – completa sem saber bem como se manifestar.

O ranger do motor do automóvel que para poucos metros à frente, junto ao passeio, não lhes dá tempo de se expressarem mais. No interior, Edgar e as crianças acenam felizes ao verem as duas que, disfarçando a emoção nos rostos, se encaminham até eles entrando no carro. Após deixarem Sandra em casa, Laura, Edgar e os pequenos seguem para a Rua do Ouvidor onde pretendem almoçar na Confeitaria Colonial. Ao entrarem no local o choque se estampa em seus rostos inertes quando avisam, numa mesa ao fundo do salão, o brinde de Fernando e Catarina. O almoço não será como esperavam mas é tarde demais para voltarem as costas ao empregado que deleitado lhes indica uma mesa próxima. 


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