Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 40
"A Farsa - Terceiro Ato"


Notas iniciais do capítulo

Meninas, mais uma vez o meu muito obrigada pelo apoio e incentivo, por acompanharem minha história e pelos comentários tão agradáveis que vão deixando. No final deste capítulo deixo alguns versos de uma música que adoro e que, penso, condiz com o momento por que passam Laura e Edgar.



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O refúgio quente e aconchegante do abraço que trocam não é realmente longo. Na prática, não terão passado cinco minutos perdidos neste enlevo doloroso, interrompidos pela entrada de Matilde e Sandra que vem trazendo as crianças. Com os corpinhos mirrados pela incongruência do desconhecido, Melissa e Francisco contorcem-se nos colos preteridos da professora e da empregada, afoitos por tocarem novamente os braços dos pais. Enterrados um no outro, com os rostos tão próximos que as lágrimas se confundem umas nas outras formando um pequeno rio que lhes escorre pelos pescoços, Laura e Edgar não se apercebem de imediato que não estão mais sozinhos. Empedernidos ao fundo da escada, Edgar está de frente para a sala de refeições de modo que, é ele quem, num repentino pestanejar, dá pela proximidade dos simpáticos intrusos. Num gesto necessário mas indesejado, o advogado folga os braços que acolhem a esposa e sussurra-lhe delicadamente ao ouvido para que atentem à presença dos pequenos. Ao despregar-se do peito do marido, Laura põe a descoberto a mancha na gola do paletó impressa pelo seu abundante choro. Seu rosto um pouco inchado, olhos dilatados pelas lágrimas copiosas que dão os primeiros sinais de abrandamento, e os alguns fios de cabelo humedecidos pelo suor frio, dão à jovem um aspeto deplorável, assemelhando-a a um enjeitado que pede socorro em silêncio. Ainda assim, é neste estado que Laura atende o pedido incessante do filho e o recebe de braços abertos e sorriso esforçado. Edgar pouco melhor está. As roupas amassadas pela luta inglória contra o corpo destemperado de Bonifácio, os cabelos desgrenhados e a face molhada não lhe disfarçam a quimera que se passou, mas também ele dá abrigo a Melissa.

Matilde: Me perdoem mas não conseguimos segurá-los por mais tempo na cozinha – fala tímida ao lado de Sandra.

Sandra: Laura, eu preciso ir, me desculpem por ainda estar aqui mas eles estavam tão confusos e agitados que achei por bem ajudar a Matilde – diz aterrada ponderando meticulosamente as palavras.

Laura: Nós é que temos que agradecer a vocês duas por estarem aqui, se não fosse por vocês não sei o que teria sido dos pequenos – agradece abatida forçando os lábios secos a sorrir.

Edgar: Obrigado às duas e desculpem por toda essa confusão – completa.

Matilde: Eu dispensei as outras criadas e todos se foram faz algum tempo. Se me derem licença, vou arrumar a mesa.

Laura: Não Matilde. Deixe tudo como está e vá descansar. Amanhã não precisa trabalhar, o domingo continua sendo seu dia de folga e nós mesmos damos um jeito – informa compreensiva.

Matilde: Então se não precisam mais dos meus serviços, peço licença para me recolher.

Edgar: Toda Matilde, bom descanso – deseja anunciando a saída da empregada.

Sandra: Eu também vou indo. Está ficando tarde, não quero preocupar os meus pais – diz afável colocando o chapéu na cabeça.

Edgar: Faço questão de levá-la – fala decidido devolvendo Melissa ao chão.

Sandra: Não é necessário, não é tão tarde assim, eu apanho o bonde que passa adiante.

Laura: Sandra, por favor aceite. É o mínimo que podemos fazer – insiste com a cabeça apoiada nas pequenas mãos de Francisco que, enternecido, apanha uma a uma as gotas lacrimais que decoram a face da mãe.

Ao aceno afirmativo da moça, Edgar distribui leves beijos pela esposa e pelos filhos e sai, arrastando-se pesadamente atrás de Sandra. Achando-se só com os pequenos, assombrada pelas lembranças frescas que ainda pairam como espectros ao redor da sala, Laura toma a mão distraída de Melissa na sua e sobe os austeros degraus da escada sem olhar para trás. O mesmo temor que continua firme batendo em seu peito acelerado, impedem-na de encaminhar cada uma das crianças ao seu respetivo quarto. Contrariamente a este hábito diário, a professora recolhe os pijamas de ambos, banha-os rapidamente e convida-os a deitarem-se com ela na confortável cama do casal. Assim, quando Edgar retorna e entra mudo no cómodo, depara-se com uma cena tão encantadora que, pensa, só o mais sensível e eloquente dos artistas seria capaz de pintar. No seu lado da cama, o esquerdo, Laura embala o sono dos filhos que dormem profunda e tranquilamente quase colados um no outro, agasalhados junto ao corpo da mãe. Vendo o marido que os olha comovido ao lado da cómoda, de frente para a cama, Laura levanta-se cuidadosamente e procura por ele varrendo as sombras que decoram a noite colorida nos vidros da janela.

Edgar: Pensei que te encontraria dormindo – diz segurando-lhe a primeira mão que o alcança na penumbra.

Laura: Eu estava te esperando – responde acariciando-lhe o rosto com ambas as mãos. – Edgar! Eu tenho tanto medo do que possa acontecer com a Melissa – desabafa tentando libertar-se do prenúncio de Catarina em relação aos laços sanguíneos da menina.

Edgar: Ei, não fique assim. Ela não vai fazer nada, eu não vou permitir que ela volte a aproximar-se da Melissa – garante. – Ela é nossa filha Laura, nossa. Somos nós que cuidamos, que amamos e educamos. O que vale o sangue perante o peso da criação? Nada meu amor, nada, porque se assim fosse, meu pai amaria meu irmão tanto quanto ele afirma que me ama – conclui mortificado deixando escapar uma dolente lágrima.

Laura: Eu te amo tanto – declara com os olhos marejados, as mãos trémulas e a voz novamente embargada pelo assalto psicológico de que ambos foram alvo naquela tarde que findara finalmente.

Edgar: Eu também te amo Laura, mais do que mil palavras possam dizer – devolve emoldurando o rosto da jovem em suas mãos enquanto a consome num olhar arrebatador.

Laura: Não quero palavras, quero você meu amor, agora… em mim… comigo – prossegue decidida convidando-o.

Edgar: Onde? Aqui tem as crianças.

Laura: Onde for, como for, não importa. Só preciso te sentir, com urgência… Edgar, me ame com a mesma força com que defende os homens inocentes na frente do juiz. Só você pode aplacar o assombro que ainda me assola.

As palavras cessam no beijo tórrido que Edgar imprime na boca sedenta de Laura. Já nada lhes é particularmente novo em quatro anos de união pelo que, o convite impulsivo da jovem não compromete a moral da relação. O doce desejo dirige-os ao quarto de banho onde chegam praticamente despidos depois de irem abandonando as peças num tapete irreverente que passa a ligar os dois cómodos. O armário de madeira que comporta os aromáticos sais e perfumes de banho, a par de um castiçal de velas apagadas e meias gastas, depressa se transforma no mais enigmático leito e é nele que se amam impetuosamente num encaixe perfeito de dois corpos que parecem ter sido feitos um para o outro. Entre expressões de prazer repetidos ao expoente do amor que sentem, soltam-se também as últimas lágrimas do dia num misto de emoções que finalmente os alivia.

O domingo chegou carregado e amotinado, tal como as folhas das árvores do Outono bafejadas pelo vento frio. Na sala ricamente apetrechada da residência de Bonifácio e Margarida, impera a mesa posta para o dejejum dos patrões, guardada fielmente por uma criada branca. São nove da manhã e os passos nas escadas teimam em não surgir. De súbito, alguém assoma à porta despertando a criada que corre para receber a suposta visita matinal. Contudo, não demora muito para que Fernando irrompa sisudo pela casa acompanhado pela habitual bengala e um ar pálido e antipático. O cumprimento de praxe é esquecido sem preocupações e o rapaz logo se encaminha para a escada pisando entediado os degraus.

Minutos depois, está Fernando entregue à paz do seu quarto, vasculhando freneticamente as gavetas da cómoda de onde vai retirando algumas peças de vestuário, quando é interrompido pela entrada abrupta de Bonifácio que, deveras desnorteado, se lança sobre ele asfixiando-o lentamente com ambas as mãos em volta do delgado pescoço do filho. Pela janela entreaberta, entra a brisa da manhã que esvoaça as cortinas de linho, numa dança compassada pelo espernear desesperado de Fernando que luta no limite de suas forças para desenvencilhar-se do ataque do progenitor. O grito aterrorizado de Margarida que assoma repentinamente à porta do quarto, pausa a violência premeditada e, antes que ambos se atraquem de novo, a mulher planta-se entre eles como que erguendo um muro defensivo.

Bonifácio: Margarida saia, vá fazer seu dejejum. Minha conversa é só com ele – ordena ainda arfando enquanto fuzila Fernando.

Margarida: Não, não vou sair daqui e deixar o meu filho à mercê da sua insanidade – retruca decidida enchendo-se de coragem por entre as lágrimas que retomam seu curso ao longo da face exaurida da senhora.

Fernando: Pode ir mamãe, já sou bem crescidinho p´ra ter medo de bicho papão – diz irónico dando um beijo na mão da mãe de forma a tranquilizá-la.

Perante a imposição do marido e a passividade do filho, Margarida retira-se indecisa e dirige-se ao piso inferior onde, com o coração nas mãos, força um gole de café com leite e um pedaço de bolo. No quarto, após se certificar que sua ordem fora cumprida, Bonifácio tranca a porta atrás de si e encara o filho.

Bonifácio: Espero que tenha voltado p´ra me dizer que desistiu de desposar a meretriz – dispara debochado.

Fernando: O senhor conhece-me muito mal papai. Ou será caso p´ra dizer que somos tão parecidos que julga que não terei coragem de o desafiar? – responde seguro de si.

Bonifácio: Não me faça perder as estribeiras seu moleque. Sua mamãe querida não está aqui p´ra lhe socorrer desta vez. Portanto, você tem duas opções, ou acaba com essa palhaçada inebriada que começou com a cantora, ou sai dessa casa deserdado – ameaça esforçando-se por apaziguar o miúdo nervoso que lhe toma conta do corpo e da mente.

Fernando: Papai, como o senhor tem senso de humor – gargalha hipócrita. – Que desapontamento senhor Bonifácio, achei-o mais inteligente do que se revela afinal – desdenha presunçoso perante o semblante colérico do pai. – Caso ainda não tenha reparado, eu sei de tudo a seu respeito, incluindo seu segredo mundano. Será a idade pesando que, de ontem p´ra hoje, o fez esquecer que eu tenho em minha mão as provas do seu adultério com a exemplar sogra do meu irmãozinho querido? – relembra calmo, certo de sua vantagem.

Bonifácio: Essa fotografia tem anos, porventura já nem será legível. Não pense que me ameaça com isso rapazola. Você ainda tem muito chão p´ra palmilhar até chegar ao meu nível – devolve fazendo pouco caso das insinuações de que é alvo.

Fernando: E quem lhe disse que aquela é a única? Ora, não me subestime em demasia papai. O senhor realmente acredita que eu e Catarina passaríamos todo esse tempo agarrados a uma mera fotografia? Eu sei do seu, como posso chamar-lhe, apartamento talvez, onde o senhor recebe semanalmente não só a ilustre D. Constância, mas também uma mulata do Morro da Providência… Berenice. Sim, creio que é esse o nome dela, bem jeitosinha por sinal – conta pacificamente provocando o pai.

Houvesse sobrado uma única réstia de cor no rosto de Bonifácio e a mesma teria desvanecido nesta hora, tamanha é a sua fúria confundida no atropelo da constatação verídica de Fernando. Derrubando metade das palavras assoladas pela raiva, Bonifácio exaspera-se e, num ápice, suas mãos acham-se novamente sufocando o pescoço do rapaz.

Bonifácio: Eu te mato desgraçado, eu te mato – profere em devaneio.

Fernando: Mata coisa nenhuma – grita por fim libertando-se do ataque do industrial cujas mãos tremem enfraquecidas. – Ouça bem porque só vou dizer uma vez. O senhor tem até ao final desse mês para me passar a totalidade das suas ações na fábrica. A par de minha mãe e Edgar, o senhor ficará com 10% para que não diga que não sou generoso. Os remanescentes 50% passarão para o meu nome que, com os 10% que já possuo, me tornarão o sócio maioritário e, como tal, o presidente da tecelagem.

Bonifácio: Você enlouqueceu, eu nunca farei isso – indaga nervoso e incrédulo com a abusada exigência.

Fernando: Ah vai sim, porque se não o fizer, eu torno público o seu corridinho entre as pernas da baronesa e aí papai, não sobrará tecelagem, nem casamento e sua reputação afundará na lama, seguida por toda esta porcaria de família até à geração do seu adorado netinho – conclui arregalando os olhos consumidos por um ódio efervescente. – Até ao final do mês papai… é o prazo que lhe dou.

Enfático e tendo finalizado o seu discurso, Fernando abandona o quarto deixando o progenitor entregue ao choque enfurecido do ultimato. Sentindo-se impotente já que a legitimidade da ameaça não se questiona, Bonifácio entrega-se de vez ao descontrole permeável e segue-o até ao corredor onde lhe trava a passagem com o corpo.

Bonifácio: Fora desgraçado, você não passa nem mais uma noite debaixo do meu teto.

Fernando: Não se preocupe, será um prazer não ter mais que acordar todas as manhãs e ver essa sua cara feia – zomba rindo.

E dito isto, Fernando volta ao cómodo e rapidamente atira uma pesada mala para cima da cama, enchendo-a ao desbarato com algumas roupas e pertences pessoais. A saída fez-se dramática ao som das lágrimas doloridas e abundantes de Margarida para quem a partida do filho tem o peso da alma sepultada.

Nessa noite, Fernando e Catarina não se pouparam aos festejos libidinosos pelo sucesso do plano, regados pelo mais fino vinho tinto. No meio dos lençóis acetinados que normalmente decoram a cama da cantora, o jovem adormece tarde, repousado na amargura estampada no semblante de sua mãe que lhe atormenta os sonhos.


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Notas finais do capítulo

Fica em mim que hoje o tempo dói
Como se arrancassem tudo o que já foi
E até o que virá e até o que eu sonhei
Diz-me que vais guardar e abraçar
Tudo o que eu te dei

Mesmo que a vida mude os nossos sentidos
E o mundo nos leve pra longe de nós
E que um dia o tempo pareça perdido
E tudo se desfaça num gesto só

Eu Vou guardar cada lugar teu
Ancorado em cada lugar meu
E hoje apenas isso me faz acreditar
Que eu vou chegar contigo
Onde só chega quem não tem medo de naufragar

Excerto de "Cada lugar teu - Mafalda Veiga"