Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 39
"A Farsa - Segundo Ato"




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O anúncio do propositado noivado foi pensado pelos dois com a mesma relevância com que se trata de um assunto de Estado. Por mais de dois anos, Fernando e Catarina vinham preparando sua vingança e, depois de uma longa e paciente espera, o dia chegara enfim.

Petrificados em volta da mesa da sala de refeições, imóveis como que gelados pela brisa do cair da noite, Laura e Edgar observam incrédulos o desenrolar da cena. Todos os presentes permanecem num silêncio assustado, próprio de quem se vê, de um momento para o outro, enredado numa quezília que não compreende. Acometida por uma abrupta raiva, Laura sente as pernas enfraquecerem, suas mãos tremem debilitando seus braços que seguram Melissa e, não fosse pelos reflexos de Sandra, a queda da pequena seria inevitável. A salvo no colo da professora, a menina não desvia o olhar da mulher que entra na sala anunciada por Fernando e, quando seu corpo para ao pé do jovem, os olhos das duas cruzam-se, como se o sangue gritasse mais alto. No entanto, Catarina não desfaz a pose e segue sorrindo, acalentada pela mortificação de todos. A coragem de Edgar, escapa-lhe por entre a fúria, tal Fénix no augúrio da morte, disperso entre a presença de Catarina em sua casa e o cinismo aguado do irmão.

No lado direito do quadro, dois lugares à frente de Laura, posa em camuflado devaneio o corpo frio de D. Constância que, a par da filha e do genro, se consome interiormente de ódio e, principalmente de ingenuidade por só agora entender que Fernando é o cúmplice da cantora. De repente, tudo faz sentido e, num único olhar muito mais convincente do que as palavras, a baronesa traduz a Bonifácio o que aquele noivado realmente significa. A ira do dono da tecelagem é, provavelmente, a mesma que assola seu filho mais velho, sua nora e sua amante mas, tal como eles, nestes segundos iniciais que se passam desde as últimas palavras de Fernando, o medo revela-se maior do que a raiva e a coragem e, como um navio afundado no oceano, sepulta-lhe a alma e quase o mata por dentro.

Quando o derradeiro passo de Catarina se junta aos pés de Fernando, Edgar recobra os momentaneamente errantes sentidos e, ainda com o filho no colo, caminha até ao irmão e interpela-o com voz e pulso firme.

Edgar: Fernando, eu exijo uma explicação. Vamos, fale, o que essa mulher faz aqui? Como vocês…?

Fernando: Tem certeza que quer que eu fale na frente de toda essa gente? – interroga hipócrita segredando bastante próximo do advogado. – Veja bem Edgar há coisas que só à família dizem respeito. Meu noivado é público mas o restante talvez seja prudente manter em sigilo – acrescenta.

Edgar: Se é assim, quero essa mulher fora da minha casa, agora – exige exasperado dirigindo-se a Catarina com o braço erguido indicando a porta.

Catarina: Ah que descortês de sua parte Edgar. Tanto tempo se passou e você ainda insiste em me admoestar – fala sarcástica. – Que péssimo exemplo está dando ao seu filho, meu quase sobrinho na verdade – continua provocadora fazendo menção de tocar o rosto de Francisco.

Antecipando o gesto da cantora, Edgar recua bruscamente e, num ápice, encontra Laura que, tomada pelo pânico de voltar a ver seu filho nas mãos da megera, lança-se sobre eles a tempo de colocar o menino a salvo em seus braços. O tremor porém não abranda e, vendo o estado da amiga, Isabel toma-lhe calada o pequeno e esconde-o em seu abraço. Sentindo o peso do escândalo que se aproxima, a jovem faz sinal ao noivo e ambos se retiram para a cozinha com Francisco, Sandra e Melissa, seguidos por Guerra, Celinha e Albertinho. De todos eles, apenas Guerra sabe o motivo por trás da reação inerte de Laura, Edgar e Constância. Na sala, Dr. Assunção, Margarida e Bonifácio continuam confusos e, à retirada dos demais, Catarina aproveita o momento e apresenta-se.

Catarina: Me perdoem a indelicadeza, fui entrando sem nem me apresentar. Senhores, senhora – diz fitando o senador, o industrial e sua esposa – meu nome é Catarina Ribeiro. Creio que já devem ter ouvido falar de mim, sou cantora lírica e a mãe de Melissa – dispara sonsa rindo timidamente.

Um sonoro suspiro de espanto ecoa pela sala e trespassa certeiro os semblantes pasmados dos três que, depois de tanto tempo, ainda se mantinham na ignorância relativamente à verdadeira identidade da mãe da menina. Edgar e Laura não querem acreditar na displicência da cantora mas é Constância que do alto do seu imperialismo irreverente enfrenta Catarina.

Constância: Como você é abusada! Mesmo depois desses anos ainda não aprendeu qual é o seu lugar – retruca calmamente olhando a cantora com desdém. – Este espetáculo já rendeu em demasia, se o que pretendiam era apanhar-nos desprevenidos, parabéns, conseguiram. Agora vá cotovia, vá pousar em outro ninho – aconselha cúmplice do segredo que teme ser ali também divulgado.

Catarina: Sabe que eu adoro quando a senhora me chama de cotovia?! – fala hipócrita devolvendo a calma nas palavras. – Porém, lamento desapontá-la baronesa mas hoje eu só saio daqui quando Fernando achar que é hora. Não estamos no hotel onde a senhora me prestou uma desagradável visita em 1905, eu não estou mais na mesma posição que antes portanto, segure a sua língua e contente-se em assistir – responde altiva segura do trunfo que possui contra Constância.

A resposta aguçada de Catarina emudece Constância que amedrontada segura atempadamente as palavras na boca. Seu segredo é demasiado importante para arriscar-se numa altercação. Contudo, este gesto da baronesa não deixa de causar estranheza a Laura que, conhecendo bem a mãe, quase não crê no recuo que presencia. Farto do acontecido, Assunção toma a mão da esposa e força-a contrariada para a saída abandonando a casa. Esforçando-se por controlar os sentimentos exacerbados, Laura levanta ligeiramente as mãos e desiludida mira o cunhado.

Laura: Como pode…, como pode vocês dois se conhecerem? Fernando, você não tem noção de quem é essa mulher – diz subestimando a má índole do cunhado.

Fernando: Laura, não seja ingénua, eu sei muito bem quem é Catarina, e não tenho motivos nenhuns para pensar mal dela. Pelo contrário, estou perdidamente apaixonado e por isso decidi que farei dela minha esposa – diz soltando um olhar meloso à cantora. – Você está dizendo isso por puro egoísmo, mas não há necessidade, Edgar é passado na vida do meu rouxinol – prossegue. – Ora cunhadinha, eu também tenho direito de ser feliz, deixe o passado lá atrás, seja benevolente e dê-nos a sua bênção – conclui debochado abrindo os braços e preparando-se para abraçar a jovem.

Edgar: Não toque nela – impede afastando violentamente o irmão do alcance de sua esposa.

Catarina: Querido não se apoquente com a frieza dessa receção, – interrompe fazendo-lhe um afago na face – eles estão com ciúmes do nosso amor livre de imposições e vontades familiares – dispara irónica deixando escapar um risinho.

Edgar: Dessa até que nós podemos rir – responde sarcástico. – Amor! Vocês não tem ideia do que é o amor, gente como você Catarina, não sabe amar ninguém além de si mesma – constata sério.

Catarina: Fala o homem que teve coragem de roubar a minha própria filha quando ela ainda era um bebê precisando da mãe – devolve dramática.

Edgar: Você nunca se importou com Melissa, bastou eu oferecer uma quantia choruda e você logo abriu mão dela. Mesmo quando chegou aqui fingindo-se desesperada, consumida de saudades, à primeira oportunidade abandonou a menina, nunca lhe deu carinho nem demonstrou afeto e ainda se acha no direito de se auto intitular de mãe? – acusa nervoso.

Os primeiros sinais de descontrole emocional começam a surgir na face empalidecida de Laura que, sentindo-se invadida, aproxima-se do marido.

Catarina: Mãe sim, eu sou a mãe da Melissa, eu! E não pensem vocês que tomaram o meu lugar porque hoje eu vi nos olhos dela o quão forte é o sangue que lhe corre nas veias, o meu sangue – berra descontrolada batendo no braço desnudado.

Laura: Saia daqui Catarina, saia dessa casa – ordena firme tentando travar o humedecimento dos olhos.

Fernando: Não fale assim com ela, respeite minha noiva – fala firme apontando o dedo à cunhada.

Bonifácio: Basta! – interfere farto já da enfadonha e aquecida discussão. – Você enlouqueceu de vez seu moleque irresponsável. Se pensa que nos atinge trazendo essa mulher à nossa presença, desengane-se. Que você se aqueça na cama dela é problema seu, mas casar, nunca – grita irado. –Nunca irei permitir que você afunde o nome dessa família.

Fernando: Nome que veio do lixo, do nada, dos escombros fedorentos de uma mercearia onde o senhor carregava sacos de batatas – acusa vincando o asco que sente pelo progenitor.

Bonifácio: Eu acabo com essa sua arrogância – ameaça lançando-se disparado sobre o corpo franzino do filho.

Margarida: Não! – grita desesperada puxando o paletó do marido. – Pelo amor de Deus parem com isso – implora lavada em lágrimas.

Edgar: Pai não faça isso, o senhor vai arrepender-se – contesta esforçando-se vigorosamente por conter o impulso do ex-senador.

Bonifácio: Me solte Edgar, há muito que eu devia ter acabado com a ingratidão desse rapazola – afirma descontrolado.

Fernando: Isso papai querido, mostre a sua verdadeira faceta, bata – instiga reproduzindo consecutivas bofetadas na face direita.

A provocação de Fernando enraivece desmesuradamente Bonifácio que num estalo se solta das mãos de Edgar e Margarida desferindo uma valente e certeira bofetada no rosto do filho mais novo. O impacto não lhe provoca a queda mas leva o rapaz a dobrar-se involuntariamente com ambas as mãos na maçã do rosto que ferve por entre os olhos vermelhos de ódio e humedecidos pela dor física e psicológica que o descaso que sempre recebera do pai lhe causa. Fingindo-se preocupada, Catarina prostra-se sobre Fernando indo em seu socorro e vulgarmente exprime algum ultraje pelo sucedido. Assustada e sentindo-se impotente perante o embate do sogro e do cunhado, Laura desvia ligeiramente o olhar perplexo e abraça gentilmente Margarida, a quem tenta consolar do profundo sofrimento que lhe consome a alma. Tentando manter a calma que há muito abandonara a residência, Edgar mais uma vez alcança o corpo agitado de Bonifácio e aperta-o contra si como que temendo a repetição do violento gesto.

Contudo, a turbulência não se esgotara naquela agressão e, sem dó nem piedade, antes acometido por um desejo insalubre de vingança, o homem endireita o paletó e lança o derradeiro golpe.

Bonifácio: Eu devia ter feito que nem essa vagabunda e ter-te abandonado à própria sorte quando você nasceu. Bastardo – profere enojado. – Bastardo – repete enlevando o tom em aparente desassossego.

Aquela palavra repetida à semelhança da loucura lateja nos ouvidos de todos. Esse era o motivo por trás de anos de ignorância e rejeição gratuitas, Fernando é um filho bastardo. A mágoa de Margarida com o fim do segredo que carregara durante anos, tolhem-lhe todas as réstias de força e a boa senhora dá sinais de desfalecimento, escorregando pelos braços da nora à mesma velocidade com que as lágrimas lhe inundam a face descolorada. Também ele abalado, Edgar desvia sua atenção para o mal estar da mãe e corre em seu auxílio amparando-a durante a queda. No semblante dramático de Catarina esconde-se a frustração da descoberta. Além de ser o filho preterido, Fernando alcançara agora o rótulo de bastardo. Os restos, Catarina sente-se só com os restos de Edgar, o belo, o legítimo, o rico e honrado e não se poupa de fuzilar Laura cuja consternação evita o cruzamento do olhar de ambas. Ainda assim, inflamada pela vantagem do adultério de Bonifácio e Constância, a cantora engole o orgulho e mantêm-se firme ao lado de Fernando que, mal refeito, volta a encarar o industrial.

Fernando: Então é isso, eu não sou seu filho.

Bonifácio: Engano seu, infelizmente meu sangue corre nas suas veias. Margarida não é sua mãe mas sim uma negra imunda com quem eu tive a péssima ideia de me deitar – conta com a voz embargada pelas más recordações. – Sabe porque nunca te vi tão meu filho como Edgar? Não é porque sua mãe era negra, mas porque quando olho p´ra você, eu consigo sentir o cheiro fétido daquela mercearia, a podridão das batatas carcomidas pelos ratos e com ele, me lembro de toda a miséria que era a minha vida – conclui impiedoso.

Fernando: Eu tenho nojo de você, nojo, eu te odeio – grita exasperado acertando um murro na cara do pai.

Somente a rápida intervenção de Edgar impede que a troca de insultos e violência prolifere. Decidido, o advogado convida sem reservas Fernando e Catarina para abandonarem finalmente a casa e, após a saída dos dois, enfrenta o semblante colérico de Bonifácio. Por entre a luz intermitente das lâmpadas que mal rompem o negrume da sala, o silêncio impera por fim, rasgado apenas pelo soluçar mais brando de Margarida que, sentada na poltrona apertando as mãos de Laura, se esforça por conter seus sentimentos. A educação que recebera para ser subserviente e um mero ser sem voz, cerra-lhe nos lábios as palavras que gritam na sua mente. Em pé, mirando o filho cujo olhar retrata bem a desgraça do momento, Bonifácio leva a mão esquerda ao rosto e, num movimento continuado, percorre a face da testa ao queixo enxugando com destempero as gotas de suor que lhe escorrem em fio. Depois, autoritário e apático, ordena à esposa que se levante e saem ambos porta fora sem acrescentarem uma palavra.

Entregues à solidão do desgosto e do medo de tudo o que poderá advir dali, Laura e Edgar olham-se sem reticências e num abraço consumido pela dor, entregam-se nos braços um do outro, apertando-se fortemente como se assim contivessem em si um pouco de sossego. As lágrimas abrem passagem por entre as pequenas extremidades da pele ainda seca e ali perdem-se num instante que lhes parece uma eternidade.


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