Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 36
"La Brésilienne e o Plano dos Vilões”




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“ Paris, 8 de Junho de 1908

Querida Laura,

As saudades que sinto de ti são tão imensas que hoje amanheci chorando, mergulhada em recordações dos breves mas fundamentais momentos que vivemos juntas. Você sabe, pelo que fui narrando nas cartas que trocamos ao longo destes mais de dois anos, que sou muito feliz aqui. Meu trabalho como dançarina é reconhecido e bem aceite mas, nada do que possuo substitui o amor pelo meu pai, pela tia Jurema e por você. Meu afilhado, Francisco, que conheço somente pelas fotografias, nem deve saber direito quem sou e também isso me entristece bastante.

É por tudo isto, e também porque me sinto um pouco agastada com a vida que levo em Paris, que tomei uma decisão. Vou voltar ao Brasil, vou regressar à minha amada terra. É isso mesmo que leu minha amiga, estou neste momento segurando a passagem de navio que comprei esta manhã. Não sei por quanto tempo ficarei ou, sequer se voltarei para a França algum dia mas, adianto que chegarei aí cheia de novidades. Uma delas é que comprei a casa no Cosme Velho que pertencia à Madame Besançon e, como tal, tenho um favor a pedir-te. Junto com essa carta, segue uma pequena caixa com a chave de minha nova residência e, se não for te atrapalhar, será que você pode mandar lá alguém p´ra fazer uma limpeza? Ficarei eternamente agradecida.

Por agora me despeço, certa de que quando você receber esta carta faltarão apenas alguns dias para nos vermos. Dê um beijo meu em meu pai e outro na tia Jurema se puder mas, não lhes conte que estou voltando. Será uma surpresa.

Um grande abraço p´ra você, Edgar e as crianças. Nos vemos em breve,

Isabel”

Sentada na beira da cama, pronta para dar início a mais uma agitada manhã de trabalho, Laura recobra da emoção que as palavras de Isabel lhe causaram. Mesmo ciente da sua chegada eminente, o sentimentalismo presente naquela carta e até a novidade sobre a casa no Cosme Velho, encheram-na de uma estranha alegria melancólica. Somente o som das lágrimas batendo pesadamente na folha de papel a despertam daquele estado um tanto ou quanto adormecido e, erguendo os olhos, dá-se conta da presença de Edgar ao seu lado trazendo nas mãos um pequeno ramo de alecrim.

Laura: Edgar! – exclama limpando o rosto humedecido com as mãos. – A Isabel vai voltar. Recebi um telegrama dela no início da semana dizendo que desembarcará em alguns dias e agora com essa carta,… não tenho mais dúvidas – conta visivelmente comovida e feliz.

Edgar: Então a notícia é boa – diz meigo acarinhando-lhe a face. – Quando entrei e te vi chorando pensei que fosse algo grave. Até o alecrim pareceu murchar diante de tantas lágrimas soluçadas – brinca analisando as delicadas flores.

Laura: Mas não há razões para tal visto que derramei lágrimas de saudade e alegria – afirma determinada pegando o vaso das mãos do marido. – Vou colocá-lo aqui – indica pousando a jarra na mesinha ao lado da cama – e não tardará a iluminar-se pelos raios de sol. E agora Dr. Vieira, é melhor nos despacharmos antes que ambos cheguemos atrasados. Hoje terei um dia longo – fala inclinando-se sobre ele para beijá-lo.

Edgar: Ah mas já? Estava certo de que ainda havia tempo para mais alguns beijos – reclama malicioso puxando-a mais para si.

Laura: Logo mais cuidaremos disso – promete entre os carinhos entrecortados. – Agora vou-me que se faz tarde – garante esquivando-se – e ainda preciso falar com a Matilde. A Isabel comprou a casa da antiga patroa no Cosme Velho e há que providenciar uma profunda arrumação antes da sua chegada.

Edgar: A Isabel comprou uma casa? – interroga surpreso. – Mas então os boatos que nos chegam sobre a fama e o sucesso de la Brésilienne são fundamentados. Folgo em saber disso – celebra seguindo a esposa até ao piso inferior.

Laura: Também estou muito feliz e, pelo que me pareceu, as novidades não ficam por aí… só que apenas saberemos quando ela chegar – continua animada sem disfarçar a curiosidade.

Edgar: Até lá a melhor detetive da República já terá desvendado esses mistérios – ri debochando da curiosidade aguçada da professora.

Laura: Está me chamando de curiosa? Pois para seu governo, senhor advogado, não estou minimamente interessada em saber do que se trata – disfarça enquanto apanha seus pertences do sofá.

Edgar: Claro que não… Curiosidade é algo que nem existe no seu vocabulário – continua sorridente ajeitando o paletó e a gravata.

Laura: Bobo! Pode rir o quanto quiser, eu não me importo – mente esforçando-se por conter o riso. – Me espere lá fora que eu vou apenas lembrar a Matilde da visita de sua mãe e te encontro lá.

Edgar: Está bem mas vê se não demora – recomenda antes de lhe roubar outro beijo.

Apressada, Laura chama por Matilde que, na sala ao lado, termina de levantar a mesa do desjejum.

Matilde: Pois não D. Laura.

Laura: Matilde eu não vou almoçar em casa hoje. A D. Margarida ficou de passar por aqui durante a manhã para levar Melissa e Francisco para um passeio. Ao final do dia eu e Edgar vamos buscá-los. Assim que terminar os seus afazeres pode tirar o resto do dia, eu mesma providencio o jantar de hoje.

Matilde: Tem certeza D. Laura? Eu posso deixar algo preparado antes de sair.

Laura: Não precisa Matilde. De tanto te observar cozinhando devo ter aprendido alguma coisa – reflete animada. – Vá sem preocupações e, antes que me esqueça, vou precisar de um favor seu. A Isabel está voltando ao Rio de Janeiro e me pediu p´ra fazer uma limpeza na casa que adquiriu. Você se incomoda de me acompanhar até lá amanhã à tarde?

Matilde: Claro que não. Será um prazer poder ajudar.

Laura: Ótimo, fico mais tranquila assim. Obrigada Matilde.

Achando-se já do lado de fora da residência, Laura corre pelos degraus ao ouvir a impaciente buzina do automóvel.

Edgar: Você demorou. Pensei que teria de entrar novamente e te trazer à força – brinca provocando-a.

Laura: Desculpa, estava dando umas indicações à Matilde e pode animar-se… hoje teremos a casa só p´ra nós ao jantar – revela manhosa antevendo mais uma noite agitada.

Edgar: Hum… que curioso fenómeno será esse que repentinamente fez desaparecer o meu aborrecimento com a sua demora? – pergunta insinuando-se à medida que conduz o automóvel para fora da residência.

Laura: À noite descobriremos… juntos… – conclui sorrindo.

À hora do almoço, finda mais uma manhã de aulas, Laura e Sandra passeiam descontraidamente pela Rua do Ouvidor completamente alheias às montras das lojas.

Laura: Então, posso contar com você p´ra me ajudar nas limpezas? Como não sei ao certo em que dia o navio aporta, creio que será melhor começar amanhã mesmo.

Sandra: Claro que sim Laura, ajudo com todo o prazer mas, vou logo avisando que não tenho muito jeito p´ra afazeres domésticos – diz sincera rindo.

Laura: E eu tenho? Por isso mesmo recrutei a Matilde esta manhã… ela será a nossa orientadora. Com esses dois desastres que somos nós duas toda a ajuda é bem vinda – constata oferecendo o braço à amiga antes de atravessarem a rua.

Sandra: Se a minha avó nos ouve… sai um discurso inflamado sobre a obrigação de qualquer moça exibir destreza nas tarefas domésticas. Sabe que até hoje ela atormenta os meus pais, principalmente a minha mãe, por me permitirem lecionar? Já p´ra não falar das coisas que ela me diz por eu ainda ser solteira… estou com medo de chegar em casa um dia destes e ter um qualquer pretendente que ela encontrou na Igreja me esperando.

Nenhuma das duas resiste às gargalhadas e assim vão andando lado a lado distraídas até que Laura trava inesperadamente detendo-se a observar uma jovem extravagante que deixa o Teatro Alheira revelando algum aborrecimento.

Sandra: O que foi Laura, porque paramos? – questiona. – Laura! – insiste perante o emudecimento da amiga. – Laura parece que viu um fantasma, o que houve?

Laura: Ah? – diz absorta em seus pensamentos. – Não foi nada Sandra, desculpa. Apenas julguei ter visto uma pessoa que há muito não cruza o meu caminho – relata seguindo com os olhos os passos ligeiros de Catarina na direção contrária à delas. – Vamos até à Colonial, estou morrendo de fome – convida tentando disfarçar o alvoroço que o vislumbre repentino da cantora lhe provocara.

Sandra: ´Tá, se é assim, vamos. Também estou faminta – concorda notando a alteração no semblante da jovem embora sem saber o motivo.

Do outro lado da rua, um pouco mais adiante e de costas para a Confeitaria Colonial, Catarina avança às pressas rumo a um coche alugado que ali estacionara à sua espera. A raiva que aparentemente a acompanha dificulta-lhe a rapidez que insiste impingir às pernas e, já bastante próxima do coche, sua bota direita resvala na beira do passeio provocando-lhe um desequilíbrio momentâneo. Emitindo um pequeno grito assustado, esbraceja em vão tentando impedir a queda mas não escapa de pisar os dejetos de cavalo amontoados na berma. Em seu semblante naturalmente dissimulado não tardam a surgir os primeiros sinais evidentes da humilhação que aquilo que causa. Enrubescida e furiosa, recupera o equilíbrio e bate desesperadamente o pé no passeio a fim de limpar a bota. Os risos notórios dos transeuntes ferem ainda mais seu ego de estrela e, esforçando-se por ignorá-los, sobe de supetão para o coche pondo-se a caminho de casa.

Após levar todo o caminho resmungando sozinha e com o cocheiro pelo acontecido, culpando a cidade e a falta de civismo da sociedade, Catarina entra finalmente em casa. Apesar de ser hora de almoço, Fernando a aguardava impaciente depois de ter escapado da fábrica para lhe fazer uma curta visita. Rodopiando a bengala que sempre o acompanhava, o filho mais novo de Bonifácio percorre a sala verificando repetidamente o relógio de bolso até que a porta se abre.

Fernando: Meu rouxinol onde se meteu? Estou há mais de meia hora te esperando p´ra almoçar – fala inflamado encarando o semblante cabisbaixo da cantora.

Catarina: Fernando meu amor, ai que bom que está aqui – diz chorosa coxeando ligeiramente em direção a ele.

Fernando: Nossa Catarina, que cheiro é esse? Se eu não te conhecesse diria que acaba de sair da coxia dos cavalos – repara afastando-se subitamente da presença dela.

Catarina: Isso, deboche de mim. Não é suficiente a humilhação que acabo de sofrer em plena Ouvidor p´ra chegar em casa e ter que ouvir isso de você – reclama enfurecida.

Fernando: Me perdoe meu amor mas sou demasiado sensível ao olfato… julgo que até perdi o apetite – afirma tentando olhá-la. – Mas não se apoquente por causa disso, não é nada que um bom banho e uma limpeza às botas não resolva.

Catarina: Que limpeza Fernando? Essa porcaria vai é p´ro lixo – decide sentando-se no sofá e arrancando as botas sujas. – Amanhã trate de me presentear com umas novas e importadas que meus pés estão habituados ao melhor calçado europeu – exige altiva.

Fernando: Jamais me passaria pela cabeça dar-te menos do que as mais belas botas importadas de Paris – garante indo sentar-se ao seu lado. – E pode começar a pensar no modelo do vestido do nosso casamento… creio que tenho finalmente a data ideal p´ra firmarmos nosso noivado publicamente – adianta imprimindo-lhe um beijo seco nos pálidos lábios.

Catarina: Está falando sério? Ai meu amor que boa notícia, não vejo a hora de ser apresentada à sua família como a futura Sra. Vieira – celebra lançando-se sobre ele. – Porém, há um detalhe muito importante a tratar antes de casarmos. O dinheiro Fernando, onde arranjaremos a quantia necessária para darmos a maior festa que o Rio de Janeiro já presenciou? E não me venha com a baronesa que aquela lá anda tão aturdida com a quantia que me paga mensalmente que se lhe exijo mais é capaz de mandar me matar – ri sarcástica.

Fernando: Tenho um plano muito melhor do que qualquer chantagem à baronesa. Guarde os tostões que ela lhe paga p´ra manter seus luxos porque muito em breve meu rouxinol, eu serei o dono totalitário da Tecelagem Vieira – anuncia ganancioso erguendo os braços extasiado.

Catarina: Como assim? Me conte, como pretende aumentar os seus míseros 10% na fábrica? Não me diga que pensa em matar seu pai – gargalha descontrolada e ambiciosa.

Fernando: Ora Catarina, por quem me toma? Tenho meus defeitos mas não chego a tanto e contenha a sua curiosidade, no tempo certo você saberá – diz endurecendo o semblante. – Venha, me acompanhe no almoço que eu não posso me demorar muito mais – fala determinado indo sentar-se à mesa previamente posta pela empregada.

Visivelmente mais disposta depois de ouvir as novidades de Fernando, Catarina faz-lhe companhia à mesa mas interiormente já só pensa no dia em que poderá finalmente impor sua presença no convívio de Laura e Edgar. Seus desejos de um passado não muito longínquo poderiam estar adormecidos pela presença de Fernando e o dinheiro de Constância mas nada lhe aplacava a vontade de ferir seus eternos rivais. Além disso, se fosse necessário, podia sempre recorrer ao trunfo que abandonara ao cuidado dos Vieira… sua filha Melissa.

Os dias que se seguiram passaram de sobremaneira velozes em meio aos preparativos para a chegada de Isabel. Com a supervisão de Matilde, Laura e Sandra auxiliam na limpeza da casa e no Domingo, dia 28 de Junho, a professora segue com Edgar bem cedo para o porto tentando aliviar os batimentos descompassados do coração que a ansiedade de rever a amiga lhe provoca. Após algumas horas de uma espera que lhes parece interminável, ouve-se finalmente o som do vapor expelido pela imponente chaminé do navio vindo de Paris.

No cais de desembarque, Laura e Edgar espantam-se perante a presença sumptuosa de Isabel. Aquela moça mulata que habitara o Morro da Providência era agora uma elegante dama da sociedade. Maravilhosamente vestida com a mais fina moda parisiense, Isabel deixa o cavalheiro que a acompanha para trás e corre para receber o abraço de Laura. As saudades são tantas que as palavras teimam em abafar-se por entre as infindáveis lágrimas que lhes inundam as faces. Fatigadas pela força que impelem uma contra a outra, soltam-se por fim e encaram-se por alguns instantes como se tentassem reconhecer-se novamente.

Laura: Isabel! Como você está linda minha amiga… como eu senti a sua falta – afirma com a voz embargada segurando as mãos da jovem.

Isabel: E eu que quando saí daqui julguei que morreria longe de você… e veja só como você está ainda mais bela, se é que tal é possível – completa.

Edgar: Isabel, seja bem-vinda de volta ao Rio de Janeiro – cumprimenta sorridente interrompendo o momento das duas.

Isabel: Obrigada Edgar – retribui gentilmente esboçando um sorriso. – E antes que vocês se perguntem – diz virando-se para um garboso jovem moreno que se posiciona ao seu lado – esse é Jean-Luc de Villefort, meu noivo – apresenta prostrando a cabeça de encontro ao ombro do cavalheiro que sorri afável.

A notícia pega Laura e Edgar de surpresa. Nunca imaginaram que as novidades escritas na carta estivessem relacionadas a alguém, muito menos a um noivo. Isabel contara anteriormente que havia sido pedida em namoro por um jovem francês abastado que inclusive já estivera no Brasil mas o fato de não mais o ter mencionado levara Laura a cogitar a possibilidade do namoro não ter vingado. Afinal estava errada. O namoro não só vingara como, ao que parece, ganhara contornos de compromisso sério. Por trás do porte distinto da mulata restará ainda a mesma Isabel que Laura conhecia?


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