Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 35
"António Ferreira"


Notas iniciais do capítulo

Por questões de lógica e gosto pessoal, minha base relativamente ao tempo anterior da ação é a história da Fernanda. Nesse capítulo menciono acontecimentos relatados por ela nos capítulos iniciais.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/346165/chapter/35

Um silêncio anormal paira em volta da residência. A sala está vazia. Receoso de que algo ocorrera, Edgar precipita-se para a escada e rapidamente alcança o corredor no piso de cima. Um choro ténue rompe a placidez vindo de um dos quartos. Melissa pensou preocupado lançando-se para a porta. Estava certo. No interior do cómodo, Laura acalenta Melissa que choraminga em seu colo sob o olhar imóvel e enternecido de Francisco. Ao ver o pai, o menino corre até ele e, levando o indicador aos lábios em sinal de silêncio, profere:

Francisco: Papai, a Mel ´tá dói-dói.

Edgar: Oh meu amor – sussurra tomando-o nos braços. – Eu sei que você se preocupa quando a sua irmã está dói-dói mas, já já, ela fica boa – tranquiliza acarinhando-lhe a face.

Laura: Oi – murmura olhando demoradamente o marido. – Ela já tomou o remédio, está só um pouco agitada mas não tardará a adormecer.

Edgar: Se você quiser eu fico com ela – oferece-se sincero.

Laura: Não precisa, ela até já parou de chorar – indica movendo-se ligeiramente de modo a desvendar o rosto quase adormecido de Melissa em seu ombro. – Desce com o Francisco. Vou deitá-la e encontro vocês lá em baixo.

Edgar: Tudo bem mas, se precisar, me chama – recomenda antes de sair acompanhado pelo filho.

Laura não tardou, de fato, a surgir na sala onde Edgar tentava em vão distrair Francisco. Seu apego com a irmã era tão forte que, de todas as vezes que ela tinha uma crise de asma, o menino entristecia-se de tal forma que nada o abstraía de seus receios.

Edgar: Você não vai nem me dar aquele seu sorriso de boas vindas que eu gosto tanto? – questiona manhoso afagando-lhe os cabelos delicadamente repousados sobre o seu peito.

Abatido, Francisco permanece mudo e opta por responder com um simples aceno negativo.

Laura: Francisco! – chama em voz baixa surgindo ao lado deles no sofá. – Não precisa ficar assim meu amorzinho. Sua irmã já melhorou e está apenas dormindo. Amanhã vocês já poderão brincar novamente – conta animada esforçando-se por espevitá-lo. – Agora vem com a mamãe um pouquinho que eu não aguento mais te ver tristinho – pede carinhosa retirando-o do colo de Edgar afim de refugiá-lo em seus braços.

Embevecido com o momento, Edgar ergue-se do sofá e aproxima-se da esposa e do filho beijando ambos com ternura protegendo-os num abraço.

Edgar: Por mais anos que eu viva, nunca vou deixar de me emocionar de todas as vezes que vir vocês dois assim – sussurra-lhe ao ouvido. – Sempre que o vejo calminho me dá uma saudade de quando ele nasceu, tão pequenininho – recorda-se melancólico.

Laura: Eu também sinto assim. Nunca pensei que aquele anjinho que só chorava com fome ou dores fosse crescer tão enérgico e rebelde – confessa esboçando um sorriso.

Edgar: É, e eu sei exatamente a quem ele puxou – constata irónico fitando-a de soslaio.

Francisco: Mamãe! – exclama levantando a cabeça. – Tenho fome – informa enquanto afaga com as pequenas mãos o rosto da mãe.

Laura: Ah, mas isso é ótimo. Se está com fome é porque a tristeza está indo embora – diz satisfeita enchendo-o de beijinhos.

Edgar: Olha só quem adivinhou a sua fome – adianta vendo Matilde que vem da cozinha. – Matilde, importa-se de dar a sopa ao Francisco na cozinha? Preciso falar um instante com a Laura.

Matilde: Com certeza Dr. Edgar. Vamos Francisco? – interroga afável aguardando que o pequeno estenda os braços em sua direção.

Laura acomoda o filho no colo da empregada e juntamente com Edgar observam-na afastar-se. Agora que a casa voltara ao normal, o advogado podia pôr fim à ansiedade que o acometera após o convite de Guerra. Puxando-a pela mão, com convicção e alguma apreensão, indica-lhe o sofá e senta-se lado a lado com ela.

Laura: Hum você me parece tão sério – repara franzindo o cenho devidamente acomodada.

Edgar: É que eu tenho algo p´ra te contar mas, antes, quero que me prometa que não vamos discutir – pede tranquilo pousando a mão sobre a da esposa que percorre uma das suas pernas.

Laura: Eh, vejo que o assunto é deveras sério. Diga, prometo te escutar até ao fim – diz intrigada encarando-o.

Edgar: É sobre os anos que vivi em Portugal – começa um pouco indeciso.

Laura: Ah não. Edgar se o assunto é aquela mulher, eu prefiro não saber – dispara chateada recolhendo a mão que a prendia ao marido.

Edgar: Não vou mentir, envolve a Catarina sim e, por isso não te contei antes mas, é outra coisa muito importante p´ra mim – prossegue. – Laura, eu sei que é difícil mas você prometeu que me escutaria até ao fim. Por favor meu amor, me ouça primeiro – insiste mais determinado em continuar.

Laura: ´Tá, se é importante p´ra você, farei um esforço por me conter – assegura desviando o olhar entorpecido pela raiva.

Edgar: Lembra quando eu vim te visitar aproveitando um recesso nas aulas em Coimbra? Nós discutimos, decidimos terminar nosso compromisso e eu te disse que não pretendia mais voltar ao Brasil porque tinha outros planos em Portugal – relembra arrependido controlando com os olhos o semblante desconsolado da professora.

Laura: Me lembro bem e, depois que descobri o retrato da daquela mulher, julguei que ela tinha sido o seu motivo – fala ressentida.

Edgar: Não Laura. Eu havia terminado tudo com ela antes de embarcar para te ver – diz erguendo-lhe a face de encontro a si. – A razão pela qual eu não queria mais voltar tem outro nome; António Ferreira – dispara tentando perceber as alterações repentinas na expressão da esposa. – Durante os anos que passei em Coimbra, além de estudar Direito, trabalhei como jornalista num jornal da cidade e, António Ferreira, era o meu pseudónimo – conclui sorrindo levemente à medida que as recordações lhe invadem o pensamento.

Laura: Jornalista?! – repete desenhando um tímido sorriso de alívio nos lábios. – Meu amor, isso é maravilhoso. Porque nunca me disse nada? – continua admirada.

Edgar: Ah Laura porque foi escrevendo uma matéria que eu conheci a Catarina.

Laura: Óbvio, claro. Que ingenuidade a minha ao pensar que, pelo menos dessa vez, ela não estivesse envolvida – fala consternada deixando-se tomar novamente pela raiva que a faz levantar-se bruscamente.

Edgar: Eu pensei te contar algumas vezes mas, eu sempre tive medo da sua reação, não queria que brigássemos mais uma vez por causa disso – justifica-se seguindo-a nos movimentos.

Laura: E hoje, do nada, ganhou coragem? Eu te disse que, se o assunto a envolvesse, não queria saber – teima entristecida permitindo que algumas poucas lágrimas lhe inundem os olhos.

Edgar: Se você me deixar terminar, vai entender que o que a envolvia nessa história acabou por aqui. Laura, hoje o Guerra me ofereceu uma matéria sobre corrupção no judiciário para que eu escreva e assine como António Ferreira. Foi isso que me deu coragem p´ra te contar – confidencia empolgado enxugando levemente os olhos humedecidos da esposa.

Laura: Sério? – questiona ainda em dúvida e surpresa mas bastante entusiasmada. – E você aceitou? Meu marido, o brilhante advogado Edgar Vieira, também é um afamado jornalista? – prossegue incrédula sem disfarçar a felicidade que inesperadamente substituíra a raiva anterior.

Edgar: Ainda não dei uma resposta, queria conversar com você primeiro. No entanto, confesso que estou com vontade de retomar essa minha atividade clandestina – diz animado procurando uma resposta na esposa.

Laura: Está esperando o quê p´ra mandar agora mesmo um recado ao Guerra informando que o Sr. António Ferreira aceita a proposta? – pergunta eufórica lançando-se sobre ele. – Estou curiosíssima para conhecer os dotes jornalísticos desse cavalheiro tão bem apessoado – insinua-se dengosa procurando-lhe os lábios.

Edgar: Olhe lá Sra. Laura Vieira, não ouse elogiar em demasia esse jornalista ou eu não respondo por mim – ameaça num tom de brincadeira porém enciumado.

Laura: Ah mas eu apenas estava sendo sincera e educada. Aliás, estava pensando que, nas minhas tantas tardes livres, eu posso ser assistente pessoal do António Ferreira. Não tenho a experiência dele mas posso ajudar nas pesquisas e na revisão dos textos – oferece-se manhosa deixando-se conduzir por ele até à sala de refeições.

Edgar: Hum, não sei. Preciso pensar melhor sobre isso. Não quero colocar a minha amada esposa em perigo – adianta com seu jeito protetor descendo a mão pelas costas da jovem.

Laura: Então depois falámos melhor sobre isso porque agora estou mais interessada em saber para onde me leva o Dr. Vieira – concorda momentaneamente rendida ao toque e às carícias do marido.

Edgar: Vou satisfazer um desejo seu – conta por entre os demorados e vigorosos beijos que vão trocando. – Decidi apresentá-la pessoalmente ao jornalista António Ferreira para que não restem dúvidas – anuncia prendendo-lhe o corpo contra a grande mesa de madeira.

Laura: Quanta honra – declara surpreendida e ofegante deslizando suavemente seu corpo pelo de Edgar. – Mas aqui é arriscado. Tem a Matilde e o Francisco – termina percorrendo com as mãos os ombros do marido arrastando com elas o paletó.

Edgar: Então vem – convida sedutor virando-a de costas e envolvendo-a nos braços. – Ali ninguém vai interromper a continuidade do nosso assunto –  afirma encaminhando-a para o escritório ao mesmo tempo que começa a desapertar-lhe os miúdos botões da blusa.

Ao passar a porta que separa as duas divisões, Laura tenta soltar-se para terminar de despir as roupas que os acorrentam mas Edgar a inibe. Afoito, o advogado perde a paciência com os persistentes botõezinhos e, num gesto que era novidade para ambos, impele um único puxão no tecido que logo cede, fazendo com que os botões arrancados se espalhem pelo chão. Surpreendida com a impaciência do marido, Laura cogita por breves segundos repreendê-lo mas, estranhamente, aquela atitude aguçara-lhe ainda mais o desejo que sentia. É, portanto, sem reservas que se deixa conduzir por ele um pouco mais para dentro do cómodo e voltam a amar-se ali mesmo, naquele escritório, somente com as prateleiras e os inúmeros livros por testemunhas.

No dia seguinte, Edgar acorda cedo e, ouvindo os conselhos de Laura, não sai sem antes enviar um curto bilhete endereçado a Guerra:

Aceito sua proposta. Te procuro mais tarde para acertarmos os detalhes. Abraço, António Ferreira.


Depois do almoço, de tão inquieto que estava, o advogado procura o amigo na redação e, em amena cavaqueira, delineiam a estratégia que porá a descoberto os corruptos da justiça. Falam sobre tudo um pouco, inclusive sobre os perigos que tal investigação e denúncia acarretam. Edgar partilha com o jornalista o temor que tem por Laura e pelos filhos mas, o fato de ninguém além deles saber da sua ligação ao jornalismo, tranquilizam-no bastante. À noite, durante e após o jantar, Laura e Edgar celebram novamente o regresso ao ativo de António Ferreira e, quando uma nova manhã rompe, Laura enche-se de esperanças ao receber, enfim, a carta que Isabel lhe mencionara no telegrama dois dias antes.



Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!