Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 29
"Acontecimentos"




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Catarina e Fernando conheceram-se por acaso na Rua do Ouvidor em meados do mês de Julho daquele ano de 1905. Nenhum sabia quem era o outro já que Edgar mantivera em segredo o nome da mãe de Melissa. O encontro esporádico deu-se com uma colisão aparatosa ao virarem a mesma esquina em direções opostas. Fernando logo se embeiçou pelo jeito libertino da cantora e a ela, chamou-lhe à atenção o sobrenome do rapaz. O interesse mútuo levou-os à Confeitaria Colonial pouco mais de uma semana depois e lá travaram conhecimento de suas verdadeiras identidades. Não mais se largaram. Desde afinidades no carácter até aos desejos de vingança, tinham vários assuntos em comum e, como tal, não tardaram a partilhar a mesma cama. Alertado por Catarina sobre as visitas que D. Constância fazia com alguma frequência ao senador Bonifácio, Fernando aguçou os instintos e, com uma máquina fotográfica emprestada por um jornalista seu conhecido, documentou as provas do duplo adultério. Estava tudo encaminhado. A chantagem de Catarina rendia uma quantia generosa e, mais do que isso, dera início à vingança de Fernando contra seu odiado pai. Para ambos o objetivo era apenas um, arrastar as famílias Vieira e Assunção ladeira abaixo até que não restasse pedra sobre pedra.

Após o sucesso do primeiro recital de Catarina, os dias sucederam-se sem grandes novidades. Porém, no início do mês de Setembro, algo de novo aconteceu. Laura regressava a casa ao meio da manhã depois de mais uma aula na biblioteca quando viu que Dr. Assunção a aguardava com Francisco no colo.

Laura: Pai, o senhor por aqui? Não esperava ter visitas hoje, aconteceu alguma coisa? – pergunta dirigindo-se a ele e cumprimentando-o com um saudoso beijo na face esquerda.

Assunção: Desde quando preciso de motivos p´ra matar a saudade da minha filha e do meu neto? – devolve sorrindo

Laura: O senhor está certo, me perdoe. Também estava com saudades, apenas não o esperava por aqui no meio da semana – afirma sentando-se com ele no sofá. – E o meu príncipe como se comportou? – questiona acariciando o rosto do menino.

Assunção: Bem! Francisco é um menino muito bem comportado e está cada dia mais parecido com o pai – repara. – E antes que você pergunte, a menina está na cozinha com a Matilde devorando a sopa – conta.

Laura: O que seria de mim sem a Matilde p´ra me ajudar com eles. Mas me conte, como vai o senhor? – pergunta sorridente

Assunção: Vou bem minha filha. Como lhe disse, vim pelas saudades mas também p´ra lhe contar uma novidade – fala alegre.

Laura: Novidade? Pela sua expressão parece ser boa. Me conte – pede ansiosa.

Assunção: Soube hoje que fui indicado para o cargo de Delegado de Saúde Pública do Rio de Janeiro.

Laura: Sério pai? Que coisa boa, o senhor merece – felicita abraçando-o com afecto.

Assunção: Obrigado minha filha. Sua sinceridade me deixa muito feliz, por isso corri p´ra cá assim que soube. Amanhã mesmo dou início às minhas novas funções. Depois do caos durante a revolta da vacina, espero conseguir tornar as pessoas mais receptivas às questões de saúde e higiene.

Laura: Folgo muito em ouvir o senhor dizer isso mas espero que essas pessoas a quem se refere incluam os mais desfavorecidos sem distinção de cor, género ou credo – diz com esperança de melhorias nas condições de vida dos habitantes dos morros, nomeadamente dos negros.

Assunção: Sei bem o que quer dizer. Não posso lhe garantir nada mas farei o possível por chegar ao maior número de pessoas. A tarefa não será fácil mas espero estar à altura – fala sem esconder a preocupação com a nova responsabilidade.

Laura: Estou certa de que o senhor dará o seu melhor. Mas me diga, como foi isso pai? O senhor se candidatou ao cargo? – pergunta inocente desconhecendo os meios por trás de tal nomeação.

Assunção: Aí está uma coisa que me deixou curioso. Não me candidatei a nada, até porque nunca tive pretensões de ingressar em qualquer cargo público e, por isso fiquei surpreso com o convite. Provavelmente foi indicação de algum dos meus pacientes que trabalham no senado – responde. – A sua mãe é que ficou eufórica quando lhe contei esta manhã. Segundo ela, com essa nomeação serei eleito senador nas próximas eleições – conta rindo incrédulo em relação às aspirações gananciosas de Constância.

Laura: D. Constância nunca fica satisfeita com nada, é impressionante – reconhece. – O senhor ainda nem tomou posse e ela já pensa no senado. Às vezes temo por ela e pelo senhor que tantas vezes se deixa levar pelas vontades da minha mãe – confessa em tom de reprovação.

Assunção: Realmente, eu não costumo dizer que não à sua mãe mas dessa vez prometo que vou tentar arrefecer o ímpeto dela – anuncia tranquilo. – Melhor eu ir, já atrapalhei seu dia o suficiente e preciso voltar p´ro consultório. Com o novo cargo vou precisar de um médico que assuma os meus pacientes – diz levantando-se devagar para não acordar Francisco que entretanto adormecera em seus braços.

Laura: O senhor nunca atrapalha, se quiser ficar p´ra almoçar comigo é muito bem vindo Dr. Assunção – fala pegando o filho adormecido. – O Edgar tinha uma audiência importante agora de manhã, só deve voltar no final do dia.

Assunção: É impressionante como em tão pouco tempo ele fez carreira. A competência traz-lhe cada vez mais clientes e não é à toa que muitos já o consideram o melhor advogado da capital – comenta admirado. 

Laura: O Edgar é mesmo um homem admirável – fala embevecida.

Assunção: Palavras de uma esposa apaixonada! – ri notando o ar arrebatado da jovem. – O almoço fica p´ra outro dia, preciso mesmo ir andando. Cuide-se filha, e cuide bem desse menino que, um dia, ainda o verei formar-se médico como o avô – deseja vaidoso.

Laura: Veremos pai, veremos. Mande um beijo p´ra minha mãe.

Assunção: Será entregue. Até mais ver – despede-se beijando a testa do neto e da filha.

Laura: Eu o acompanho até à porta. Até mais ver – responde ao vê-lo partir.

Vendo-se do novo apenas na companhia do filho, Laura volta para a sala e após alguns mimos, deita-o no carrinho. Por mais tempo que estivesse com ele, a jovem nunca se cansava de admirar o menino. Com dois meses de vida completados no dia 4 de Setembro, Francisco ainda passava a maior parte do dia comendo e dormindo. Chorava pouco e era bastante tranquilo tal como Melissa que apenas se manifestava com mais vigor quando sofria um ataque de asma. Esses, felizmente, não eram tão recorrentes como temeram a princípio graças aos cuidados desmedidos tanto de Edgar como de Laura. Dando-se conta que a visita saíra, Matilde aparece na sala com a menina pronta para fazer a sesta depois do almoço.

Matilde: Bom dia D. Laura – cumprimenta suspendendo os pensamentos da jovem.

Laura: Bom dia Matilde. Eu já ia à cozinha buscar a Melissa – fala andando em direção à empregada e pegando a menina no colo.

Matilde: Se a senhora quiser eu posso deitá-la.

Laura: Não precisa Matilde. Eu mesma vou pô-la p´ra dormir – diz dando um leve mas carinhoso beijo na mão da pequena.

Matilde: Eu fico de olho no Francisco enquanto preparo a mesa do almoço.

Laura: Obrigada. Eu não demoro – conclui subindo as escadas.

Melissa adormeceu depressa e Laura não tardou a surgir na sala. A mesa estava posta apenas para um. Empurrando o carrinho do filho, Laura aproximou-se da sala de refeições e acomodou-se na sua cadeira habitual. Teve a impressão de ouvir um breve barulho vindo da porta mas não deu importância e permaneceu sentada de costas para a entrada. Com o jarro de água na mão disposto para servir-se, Laura não se deu conta dos silenciosos passos atrás de si e, por isso, quase derrubou a louça quando as mãos de Edgar tocaram seu rosto.

Edgar: Surpresa! – sussurra-lhe dengoso ao ouvido.

Laura: Edgar! Que susto você me deu – confessa repreendendo-o com uma leve palmada no ombro. – Quase entornei a água.

Edgar: Desculpa meu amor. Ao entrar vi que não me ouviu e pensei em surpreendê-la – diz beijando-lhe docemente os lábios e sentando-se no topo da mesa.

Laura: Pensei que não viria p´ra almoçar. Você disse que a audiência seria longa, a Matilde não fez comida p´ra você – relata fingindo indiferença por entre um brando sorriso de felicidade.

Edgar: E quem disse à senhora que eu vim pensando na comida da Matilde? – fala desinteressado por entre os carinhos que faz a Francisco – A audiência foi adiada por falta de uma testemunha e eu fiquei com vontade de comer aquela carne com batatas que você faz como ninguém… - conta desavergonhado olhando-a com paixão.

Laura: Hum… sei! Você não acha que é melhor deixar esse prato p´ro jantar? Está muito cedo p´ra comer carne com batatas Dr. Vieira – diz aparentando negar o convite do marido e tomando um pouco de água.

Edgar: Ah mas eu pensei que a gente podia comer quando sente fome. Deixa, por favor, eu vim almoçar com você de propósito e agora a senhora me diz que eu vou ter que voltar ao fórum com o mesmo apetite com que vim? Isso é maldade D. Laura Vieira e eu posso processá-la por isso – ameaça tentador.

Laura: Está me ameaçando senhor advogado? Olhe que eu deixo de providenciar seu prato preferido por tempo indeterminado – adverte esforçando-se por parecer séria.

Edgar: Mentira que eu sei muito bem que a senhora gosta dessa carne com batatas tanto quanto eu – afirma empolgado puxando a cadeira da esposa para perto.

Laura: Verdade, eu adoro e, já que insiste, quem sou eu p´ra negar um desejo desses ao senhor meu marido – consente mordendo-lhe suavemente os lábios e atiçando-o ainda mais.

Edgar: Então vem, vamos lá p´ra nossa cozinha que eu te ajudo a preparar esse almoço – termina levantando-se de súbito e impelindo Laura escada acima por entre beijos e carícias.

Apesar da ânsia com que subiam os degraus, Francisco não lhes deu tempo de atingir o patamar superior e desatou num pranto persistente.

Edgar: Ah não, agora não meu filho – lamenta interrompendo o longo beijo que trocava com a esposa apoiados no corrimão.

Laura: Está vendo? Até ele sabe que não é hora de comer carne com batatas – ri divertida. – Vou lá ver o que ele tem – fala tentando soltar-se dos braços firmes do marido.

Edgar: Deixa que a Matilde cuida dele. Eu não tenho muito tempo, vem – insiste voltando a agarrá-la.

Laura: Edgar, não está certo isso. Não podemos delegar na Matilde todas as nossas responsabilidades para com as crianças. Recomponha-se, vou descer. Prometo que no jantar faço tudo o que você quiser – garante desenhando um largo sorriso que lhe alegra o semblante.

Edgar: ´Tá, não insisto mais. Vou dar um beijo na Melissa e já desço p´ra repreender esse menino. Vou ter uma importante conversa com ele e proibi-lo de interromper as refeições dos pais – brinca fazendo um ar sisudo e desiludido.

O menino já se acalmara quando Edgar voltou a surgir à mesa. Ainda dececionado, fez companhia a Laura e devoraram ambos o prato de peixe que Matilde fizera para o almoço. Claramente desejoso de ficar a sós com a esposa, o jovem não se poupou a comentários carregados de duplo sentido e as gargalhadas de ambos percorriam alegremente toda a casa fazendo antever mais uma longa noite. Matilde terminou de servir os patrões e retirou-se para a cozinha deixando-os entregues ao beijo da despedida.

Laura: Não vai, por favor – suplica levando as mãos ao peito do marido.

Edgar: Por mim eu ficava mas hoje ainda tenho mais um processo p´ra resolver no fórum. Vou fazer de tudo p´ra não me demorar – diz baixando-lhe um pouco a blusa branca rendada de modo a beijar-lhe o ombro nu.

Laura: Vou terminar de preparar as aulas da semana enquanto te espero. Ah, e antes que me esqueça, precisamos pensar na festa de aniversário da Melissa.

Edgar: Logo mais tratamos disso. Mas só depois do meu jantar… entendeu? – relembra beijando-a pela última vez.

Laura: Entendi muito bem… Não demora.

Despediram-se aos beijos que só cessaram quando Edgar colocou a custo os dois pés para fora da residência. Laura passou o resto da tarde no escritório preparando mais algumas aulas, revezando-se com Matilde nos cuidados com as crianças. Melissa entretinha-se bem brincando sozinha com as bonecas numa manta que a jovem tinha por hábito estender no tapete do escritório e Francisco exigia mais atenção somente nas horas de mamar. Quando o sol se pôs, Laura cumpriu com a promessa da hora de almoço e realizou os desejos do marido. Matilde recolheu-se mais cedo do que o costume e, seguindo as indicações da patroa, deixou uma bandeja com o jantar à porta do quarto do casal. Edgar surpreendeu-se ao abrir as campânulas. O manjar daquela noite era, literalmente, carne com batatas. A brincadeira rendeu e já era de madrugada quando o silêncio finalmente descansou por entre as sombras da casa.

O dia 20 de Setembro amanheceu iluminado pelo sol que aquecia os vidros das janelas da residência. Laura e Edgar precipitaram-se em direção ao quarto de Melissa e felicitaram-na carinhosamente pelo primeiro ano de vida. Mesmo sem entender o verdadeiro motivo da festa matinal, a menina exultou batendo palmas e rindo e ainda temperou com um inocente beijo a face de Francisco que Laura carregou no colo a fim de partilharem os quatro aquele momento em família. O programa do dia tinha sido decidido há pouco tempo. Passariam a manhã no Jardim Botânico e, pela tarde, receberiam em casa os poucos mas sinceros amigos que não os recriminavam. Tudo correu como previsto e, nem mesmo os olhares descarados e os comentários indiscretos que algumas damas da sociedade lhes lançaram durante o passeio serviram para estragar o contentamento do casal e das crianças. A verdade sobre a paternidade de Melissa era um segredo que só Laura e Edgar sabiam.

Ao meio da tarde e já refeitos do passeio, abriram as portas da casa e deram as boas vindas a Guerra, D. Margarida, Dr. Assunção, Celinha e Sandra. Pese embora a escassez de convidados que aceitaram o convite para a pequena festa, não faltaram momentos de felicidade. No final do dia, todos partiram satisfeitos deixando Laura e Edgar entregues à tarefa de desembrulhar pela menina os presentes que recebera. Um a um, foram descobrindo várias bonecas e um ou outro livro infantil até que faltava apenas um embrulho para terminar. Porém, ao contrário de todos os outros, aquele não parecia ser de nenhum dos convidados. Laura segurou nas mãos a caixa de forma retângular e fitou-a intrigada enquanto Edgar preparava a tesoura para cortar o fio que prendia o embrulho. Estavam os dois em pé, no meio da sala junto do sofá, perdidos entre os papéis rasgados quando, de uma vez só, o advogado separou o fio e Laura levantou a tampa da caixa negra. O pavoroso grito que Laura soltou ao ver o conteúdo da misteriosa caixa ecoou pelas paredes e perdeu-se no olhar aterrorizado de Edgar.


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