Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 28
"A Farsa - Primeiro Ato"




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À medida que o coche vai andando, Laura apercebe-se da quantidade de cartazes que vangloriam o primeiro recital de Catarina depois de alguns anos afastada dos palcos. A presença daquela mulher no Rio de Janeiro causava-lhe uma certa inquietação e desconfiança. Observou com detalhe a inscrição até que seus olhos não mais acompanhavam a distância que o andamento do coche criava. A grande estreia seria dentro de duas semanas no palco do modesto Teatro Alheira. Laura reposicionou-se comodamente no banco e deixou-se conduzir até casa.

À mesma hora, D. Constância tomava tranquila um chá, elegantemente sentada em sua sala. Luzia falava-lhe das compras no verdureiro quando se dão conta da presença de alguém à porta da residência. Eficiente como exigia a baronesa, Luzia depressa cessou o discurso e encaminhou-se para a porta. A visita não poderia ser mais inconveniente e imprevista. Trajando sua cor predileta, o roxo, Catarina fez-se bem vinda e entrou calmamente provocando a ira de Constância. Afrontada com a displicente presença da cantora em sua casa, a baronesa levanta-se impetuosa derrubando a xícara de chá que tinha em mãos. Luzia corre para limpar o tapete humedecido e recolher os vidros mas logo a patroa a enxota.

Catarina: Bom dia D. Constância – cumprimenta cínica. – Ah, mil perdões, a senhora prefere baronesa, não é mesmo?

Constância: Como ousa pisar em minha casa? Perdeu o pouco juízo que lhe restava? Saia imediatamente – ordena apontando-lhe a saída.

Catarina: Vejo que a falta de modos é herança de família. Que vergonha, uma baronesa que não sabe receber suas visitas.

Constância: Não me recordo de a convidar, portanto cotovia, volte para o ninho ao qual pertence.

Catarina: A senhora sempre me diverte com seu senso de humor – ri debochada. – Não é p´ra tanto, apenas vim retribuir a visita que me fez meses atrás – diz sentando-se confortavelmente no sofá.

Constância: Não vejo motivo para essa visita mas, já que faz tanta questão, diga de uma vez o que quer – fala de pé tentando controlar a raiva que se exprime em seu tom de voz.

Catarina: Ah vejo que interrompi seu chá! Que pena mas, se desejar, posso acompanhá-la em mais uma xícara. Afinal, é uma bebida que muito me apraz – prossegue trocista olhando o tapete molhado e os cacos aos pés da baronesa.

Constância: Não me faça perder a paciência e o meu precioso tempo. Já estou sendo demasiado tolerante permitindo a presença de uma mulher vulgar como você na minha sala – dispara tranquila sem disfarçar o asco.

Catarina: Pensei que teríamos uma conversa amena e civilizada mas, se prefere assim, vou direta ao ponto – diz enquando abre a bolsa e retira um pequeno invólucro. – Vim entregar-lhe esse presentinho – fala esboçando um sorriso ao estender a mão.

Constância: Deixe-se de graças, o que tem aí? – questiona nervosa arrancando o papel das mãos da cantora.

Catarina: Veja com seus próprios olhos. Tive o prazer de ver com os meus e lhe garanto que fui surpreendida.

Ansiosa, Constância abre rapidamente o invólucro e logo pasma com o conteúdo. Na pequena fotografia escurecida pela opacidade do local, vê-se com pormenor um beijo tórrido entre D. Constância e o senador Bonifácio, trocado no aparente sossego do seu escritório na tecelagem Vieira. Percebia-se que fora tirada a partir da porta, obra de alguém que conhecia a fábrica e os hábitos do senador. O rosto da baronesa expressava o mais profundo terror. Seu tom rosado empalidecera e seus lábios estavam secos. Valeu-lhe o brio imponente que a caracterizava para se manter de pé. Segurando a prova irrefutável do seu adultério em ambas as mãos e esforçando-se por esconder o ódio e o assombro que tudo aquilo lhe causava, Constância prende o olhar em Catarina e a questiona.

Constância: O que pretende? Como conseguiu tal injúria?

Catarina: Não precisa fingir baronesa. Estamos só nós duas aqui e eu sei muito bem o que retrata essa fotografia já que, antes dela, foram meus olhos que testemunharam muito mais.

Constância: Você não sabe o que está fazendo. Eu vou acabar com você cotovia desafinada – diz num tom sereno e ameaçador.

Catarina: E eu aqui tremendo de medo. Ora D. Constância, exclama endurecendo a voz – caso não tenha reparado, quem faz as ameaças hoje sou eu. A senhora me fez perder a paciência. O assunto que me trouxe aqui é muito simples. A partir de hoje, somos aliadas e a senhora vai fazer tudo o que eu mandar.

Constância: Insolente – grita fazendo menção de agredir a cantora. – Eu não sou da sua laia, não me vergo a ameaças.

Catarina: Quanta violência – repreende impedindo com veemência a mão de Constância que levava a direção do seu rosto. – Vou ter que repetir? Vamos lá então. De onde saiu essa fotografia, podem sair muitas mais e garanto que não virão parar aqui da mesma forma que essa mas sim estampando a capa de um jornal – conclui provocadora.

Constância: Você ainda vai se arrepender, não vou descansar até vê-la lamber a sarjeta.

Catarina: Suas ameaças não me intimidam mais. P´ra começar, a senhora vai pagar pelo meu silêncio. Estou prestes a estrear um recital e preciso de cem contos de reis para montar o espetáculo. Amanhã volto para receber o montante e nem pense em fazer alguma coisa. Lembre-se da matéria no jornal baronesa. Agora, se me dá licença, – diz apanhando a bolsa e o chapéu do sofá – está na minha hora.

Catarina dirige-se para a saída regozijando-se do sucesso do seu plano. Ainda em pé, completamente transtornada com a reviravolta dos acontecimentos, Constância rasga violentamente a fotografia e atira os pedaços ao chão pisando-os repetidamente. O descontrole da baronesa atrai Luzia que corre para socorrer a patroa.

Durante todo aquele dia, não houve chá que aplacasse a fúria de Constância. Pensou em várias formas de se livrar da ameaça de Catarina mas, o pavor que se apoderava de si ao lembrar-se das potenciais consequências, fizeram-na dobrar-se às exigências do momento. Por hora, a cantora vencera a batalha mas a guerra estava apenas começando.

A noite já caíra quando Edgar chegou em casa. Laura o esperava na sala lendo o jornal mas logo correu para a porta ao sentir a presença do marido. A fama do advogado Edgar Vieira corria a cidade e não lhe faltavam clientes. O dia tinha sido longo e mais uma vez passado quase inteiramente no fórum. Apesar de visivelmente exaurido, não se poupou a abraçar e beijar vigorosamente a esposa.

Laura: Que bom que você chegou. Estava tão aflita p´ra te ver que passei o dia contando as horas – diz cerrando os olhos contra o corpo do marido.

Edgar: Eu também morri de saudade meu amor. Mas você me parece preocupada, aconteceu alguma coisa ou isso tudo é por causa da partida da Isabel? – questiona ainda abraçado a ela.

Laura: Os dois. Não vou negar que me doeu muito despedir-me tão subitamente da minha amiga sem nem saber se um dia vou voltar a vê-la mas, não é só isso – prossegue soltando-se dos braços do jovem e olhando-o de frente.

Edgar: Me conta, estou ficando preocupado.

Laura: No caminho p´ra casa eu reparei nuns cartazes que estão espalhados por toda a cidade. Você já deve ter visto, se não na rua, no jornal porque o Guerra dedicou-lhe quase meia página – conta pegando o jornal do sofá e entregando-o ao marido. – É o anúncio do recital daquela mulher. Ela falou a verdade quando disse que não nos livraríamos dela – reconhece passando a mão no pescoço com raiva e desviando o olhar.

Edgar: Eu não sabia. Quando saí hoje de manhã ainda era cedo, o jornal não tinha chegado e devem ter colocado os cartazes durante o dia. Como estive no fórum até agora e já escureceu nem me dei conta – diz à medida que vai lendo a matéria. – Não fique assim Laura. Ela já conseguiu o que queria, dinheiro e fama. Deixe-a fazer os recitais que ela quiser. Não há mais motivos p´ra atrapalhar a nossa vida e o Rio é tão grande que é até provável que nunca mais nos cruzemos com ela – afirma pousando o jornal na mesinha ao lado do sofá.

Laura: Eu queria ter esse seu otimismo mas algo me diz que ela não parou por aqui.

Edgar: Ah não. De novo essa história de ciúme não. Vem cá vem – diz tomando-a pela mão e envolvendo-a em seus braços.

Laura: Que ciúme Edgar! Eu não tenho ciúme de ninguém, muito menos dessa mulher – fala irritada afastando-se.

Edgar: Dela você não tem mesmo que ter porque eu já te falei e mostrei o quanto eu te amo e o quanto a desprezo. Agora de outras moças… – insinua em tom de brincadeira provocando a ira da jovem.

Laura: Outras moças, que moças Edgar? Escute bem, nem pense em me trair ouviu, eu já aguentei além do que eu podia. Se você aprontar mais alguma nem pré aviso eu dou. Saio de casa na mesma hora levando o meu filho e peço o divórcio – avisa exaltada com o dedo indicador apontado ao rosto do marido.

Edgar: Calma, calma meu amor. Era uma brincadeira Laura. Não precisa ficar desse jeito, eu só estava testando os seus ciúmes mas já me arrependi – diz erguendo as mãos junto ao corpo pondo-se na defensiva.

Laura: E isso lá é assunto p´ra brincadeira. Eu não sou ciumenta. Você é que é ciumento e retrógrado porque ciúme é coisa do século passado. Eu sou uma mulher moderna, não sinto ciúmes, apenas defendo o que é meu – afirma categórica sem desmanchar a pose.

Edgar: Ah é? Defende o que é seu? Estou vendo… mas eu sei de uma maneira ótima de você defender o que é seu – fala puxando-a para perto de si e beijando-lhe o pescoço – e podemos começar aqui – termina atirando-a contra a coluna que divide as duas salas e lançando-se sobre ela beijando-a repetidamente.

Sem prever o ímpeto do marido, Laura não tem tempo de o contrariar e cede aos intensos carinhos que vão trocando em plena sala, primeiro na parede e depois no sofá. No andar de cima, Melissa e Francisco dormem calmamente e nem o rebuliço da sala os desperta.

No dia seguinte, como combinado, Catarina chega antes do almoço para receber os cem contos de reis que exigira de Constância. Engolindo o ódio, a baronesa entrega um envelope fechado à cantora que não se faz de rogada e confirma o total. Não trocaram muitas palavras. Resolvida a questão, Constância aguardou a saída de Catarina e apressou-se em direção à porta. Lá fora, o cocheiro aguardava-a pronto para levá-la de novo à tecelagem. Porém, dessa vez, a baronesa não pretendia pagar uma parcela de sua dívida mas sim conquistar o apoio do senador para que juntos descobrissem o cúmplice da cantora e dessa forma se livrassem do problema. Bonifácio não acreditou prontamente na história que Constância lhe contava mas, vendo o estado um tanto ou quanto mais descontrolado da baronesa, acabou por dar-lhe o benefício da dúvida e prometeu investigar.

Em aparente tranquilidade se passaram duas semanas. Constância e Bonifácio tornaram-se mais cautelosos em seus fortuitos encontros e Laura retomou o ensino de algumas aulas voluntárias na biblioteca. Três vezes por semana, a jovem deixava as crianças ao cuidado de Matilde para, durante pouco mais de uma hora, se dedicar exclusivamente ao magistério. Com o dinheiro conquistado à conta da chantagem, Catarina montou um sumptuoso espetáculo ainda que o pequeno palco do Teatro Alheira não lhe permitisse muita ousadia. Teve casa cheia. Sem a grandeza de voz que tivera noutros tempos, conseguiu ainda assim surpreender o público da capital brasileira que pouco conhecia a verdadeira extensão do talento que, anos antes, a catapultara para os palcos europeus. Catarina envaideceu-se e, no dia seguinte, acordou vitoriosa com a matéria no “Correio da República” que lhe elogiava a arte e o corpo de Fernando que lhe aquecia a cama.


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