Os pés do garoto se moviam rápido, levando consigo todo o peso de um corpo juvenil. Passando entre galhos da vegetação seca, ele praticamente não sentia dor quando tinha seus braços e pernas arranhados ou quando seu cabelo agarrava em algum galho.

Seu coração batia forte, latejando contra seus ouvidos o deixando desnorteado. Sua respiração exalava o medo e desespero que sentia naquele momento e seus olhos ressaltavam o pavor a qual estava submetido. Atrás dele, passos lentos e calmos podiam ser ouvidos e uma vez ou outra ele virava para trás, na vã esperança de fugir daquela que o perseguia.

- Aonde você está indo?

Dando um gemido baixo de pavor, o garoto colocou ainda mais forças em suas pernas, temendo pela pequena garotinha que caminhava calmamente pela floresta. Em sua mente se passava a memória de alguns minutos atrás, onde contemplou paralisado pelo medo sua namorada ser brutalmente assassinada.

- Me deixe em paz! - ele gritou, sentindo lágrimas escorrerem por seu rosto. Ainda tinha preso na mente os gritos de pavor de sua amada, a qual o corpo estava sem vida na cabana onde estavam acampados.

- Michael ... espere por mim! - a garota disse mais alto, apressando seus passos para alcançar o garoto a qual jurara amar para sempre.

O cabelo curto dela dançava no ar conforme saltitava. Seus olhos azuis, tão claros quanto o céu do meio dia, tinham um brilho alegre. Entretanto, sua feição e corpo juvenil perdiam a inocência pelo sangue respingado em seu rosto e em suas roupas. Nas mãos carregava uma faca de açougueiro, extremamente afiada e que ainda pingava o sangue daquela que tentara lhe roubar a pessoa que amava. Daquela vadia que o tocara ... daquela que o conquistara, mais do que havia sido capaz..

Mas mortos não amam mais.

- Ei Michael! Tenha cuidado! Você sabe que a floresta é perigosa à noite!

A pequena deu uma risada baixa ao ver o garoto tropeçar e logo se pôs a correr, fazendo com que seu cabelo castanho dançasse ao sabor do vento forte que anunciava uma tempestade. Por sua vez, Michael corria ainda mais sentindo o gosto das próprias lágrimas que escorriam para sua boca, dando um toque ainda mais angustiante a seu desespero.

Não conseguia acreditar que sua melhor amiga matara sua namorada. Não podia crer que a pessoa em que mais confiara durante toda sua vida havia cometido tal brutalidade, demonstrando com exímia psicopatia o quanto não aceitava que ninguém tivesse um relacionamento com ele.

Na verdade, dera demonstrações desde a infância.

Tomado pelo desespero, não tardou para que ele atravessasse a floresta. Conforme caminhava, escutava o barulho do mar se tornar mais alto, se enchendo da esperança de que encontraria alguém na praia que afastasse Yin de seu encalce. Entretanto estava tomando o caminho errado, só percebendo este fato quando chegou à beira de um penhasco e por muito pouco não caiu dentro do mar ao pisar em falso em algumas pedras.

Seus olhos amendoados se arregalaram ainda mais. Seu coração bateu mais forte, enquanto em sua mente apenas passava a ideia de que ele iria morrer. Imaginava que ela o alcançaria e o mataria, assim como fizera com sua namorada. Chegou a levar as mãos até a cabeça, puxando algumas mechas de cabelo em meio a gritos agoniados de desespero. Olhava para os lados, tentando traçar desesperadamente uma rota de fuga, mas a luz do luar não era forte o suficiente para tornar mais nítidas as descidas ao redor do penhasco. Chegou perto da beirada e olhou para baixo tentando medir suas chances de sobreviver a um salto, mas acabou por engolir em seco ao ver ondas fortes baterem contra as rochas, além da enorme altura que se estendia até o chão.

Não demorou muito para que ela o alcançasse. Yin deu um risinho baixo ao ver Michael olhar para os lados, se lembrando do dia em que procuraram juntos por um gato perdido. Saiu em meio aos galhos das árvores e se agachou, antes de pegar uma pedra pontiaguda e esconder na mão esquerda, a levando até suas costas. Respirou fundo, sentindo o vento gélido e forte bater contra seu corpo pequeno, sentindo aquele momento ainda mais emocionante ao ver raios que caíam ao fundo daquele cenário em alto mar. Era uma visão linda. Não demorou para que chamasse a atenção do garoto, ressaltando o quanto estava feliz por estar novamente naquele lugar com ele.

- Ei ... - ela disse mais alto, apertando forte o cabo da faca em suas mãos. - Lembra-se quando viemos aqui pela última vez?

Um arrepio subiu pela espinha do garoto que no impulso virou o corpo de uma vez. Engoliu em seco ao vê-la a poucos passos de si e medo o paralisou. Era como olhar para a própria morte naquele momento, como encarar seu maior medo em um corpo angelical. Sentiu o vento forte bater conta seu corpo, levantando seu cabelo curto e os dela. Uma onda forte bateu contra o penhasco e o barulho de um trovão pode ser ouvido.

- Lembro que o gatinho da senhora Tymi se perdeu por aqui. Passamos horas procurando ... - ela deu uma risadinha, falando como se fosse uma situação normal, um lugar normal.

Aquilo tornava tudo pior e mais angustiante. 

- Por que Yin? - Michael não conseguia entender como a psicopata que há minutos matara alguém, sorria e agia daquela forma naquele momento.

- Hã? - Ela tombou a cabeça, apertando na mão esquerda a pedra. - Do que está falando?

Ele respirou uma, duas .. várias vezes. Moveu seus olhos para a faca nas mãos dela, medindo suas chances de tirar a faca de suas mãos, mas preferiu não arriscar. Não conseguia entender porque ela agira daquela maneira. Por que havia surtado de tal forma.

- Por que está fazendo isso? - sentia cada batida do seu coração que algumas vezes era silenciada pelo vento forte que soprava em seus ouvidos.

- Não estou entendendo ... - ela deu um passo para frente, tombando o corpo. Ignorava o vento e até mesmo algumas gotas que começaram a cair do céu, focando sua atenção nele.

Na pessoa que amava.

- Por que fez aquilo com Eve? Ela nunca fez nada á você!

Lágrimas escorreram por seu rosto e a garota a tudo observou em silêncio. Escutou cada palavra do garoto, mas aos poucos o som foi se perdendo. Tu que viu e sentiu foi o vento arrepiar seu corpo, enquanto vislumbrava as expressões de choro e desespero que ele fazia enquanto seus lábios se moviam. Tornou a tombar a cabeça e lentamente levantou a mão esquerda, aproveitando que o garoto desabafava de olhos fechados para poder lhe acertar um golpe certeiro na testa, que foi forte o suficiente para que ele caísse no chão.

Tudo que Michael sentiu foi a pancada, antes que seu corpo perdesse as forças e ele caísse no chão. Deu um gemido abafado de dor ao sentir o corpo tocar o chão e levou as mãos até a cabeça, virando o corpo para os lados em protesto a dor, mas acabou por gritar ao sentir a mão dela tocar seu rosto.

A chuva aos poucos foi se tornando mais forte. Michael enxergava tudo embaçado e não teve força para impedir que ela o arrastasse. Com dificuldade, Yin o arrastou de volta floresta, tirando-o de perto do abismo, a qual ela julgava ser um grande perigo. Com a demora para fazer o trajeto, acabou que ambos ficaram completamente ensopados pela chuva.

Michael não conseguia nem mesmo falar. Sua fala saía embolada e sua visão estava turva. Apenas sentiu ela arrastá-lo por um trajeto que lhe pareceu longo e logo fora cuidadosamente encostado ao tronco de uma árvore. Viu um sorriso tranquilo no rosto da garota, antes que ela rasgasse um pedaço da própria blusa e usasse para limpar o sangue que escorria da ferida na testa dele. Sua cabeça ainda latejava e ele já se imaginava sendo torturado por aquela que julgara nunca ter conhecido realmente.

Mas ninguém conhece alguém por completo.

Yin sorria, limpando a testa dele. Sentou em seu colo, passando as pernas envolta de sua cintura enquanto cantarolava alguma musica baixinho. Uma vez ou outra, passava a mão no rosto para limpar a água da chuva que escorria por seu corpo, limpando aquele sangue imundo que havia lhe sujado. Após terminar de limpá-lo, ela lhe deu um beijo demorado na testa, encostando seu corpo junto ao dele. Distribuiu beijos por seu rosto, recebendo como resposta gemidos de reprovação, mas acabou por silenciá-lo quando alcançou seus lábios. Delicadamente, lhe deu beijo demorado e tímido que foi seguido por um abraço apertado.

- Você vai ficar para sempre comigo!

Naquele momento Michael conseguiu entender o motivo de tanta crueldade e loucura que transformara a mente daquela que ele chegou a chamar de melhor amiga.

Amor .... amor doentio.

- Não! - ele gritou com dificuldade, enquanto a empurrava com o pouco de força que ainda tinha. Engatinhou para longe dela antes de se colocar de pé. Tentaria correr mais uma vez, sentindo medo daquela pequena criatura que fora mais astuta, a ponto de pegar sua faca e acertar um corte certeiro em seu tendão de Aquiles.

Ele gritou de dor, perdendo a força na perna atingida antes de cair de bruços no chão, cravando os dedos entre pedras em resposta a impulsos de seu corpo. Yin a tudo observou em silêncio. Seu sorriso desaparecera e em seu lugar surgira uma expressão terrivelmente séria.

- Você vai! Você vai ser meu! - ela gritou, empurrando-o com os pés para que ele girasse o corpo.

Mais lágrimas escorreram pelo rosto de Michael que gemia de dor entre seus gritos para que ela se afastasse, mas acabou por ser silenciado quando ela novamente lhe acertou um golpe na cabeça.

-x-

Já havia se passado anos após aquele dia. Yin agora se via uma mulher adulta, já graduada e empregada. Alegremente sorria para todos em seu trabalho, demonstrando ser uma profissional extremamente competente quando o assunto era medicina, área que a interessou desde aquele dia.

Logo o relógio marcava 18:00 hs e ela se despedia de todos seus colaborados de trabalho, antes de pegar seu carro e dirigir até sua casa. No caminho, passou por um supermercado, comprando potes de iogurte e o pudim que tanto gostava.

Ao chegar em casa, estacionou seu carro na garagem, como fazia todos os dias e abriu as portas da enorme propriedade que adquiria há pouco tempo. Caminhando pela casa espaçosa, ela carregava a sacola com compras, andando apressadamente até o porão.

- Querido, estou de volta! - anunciou, antes de abrir a porta.

Acendeu as luzes, revelando naquele enorme espaço vazio uma cadeira. Sentado nela, Michael aparentava mais idade, assim como ela. Estava amarrado e tinha uma sonda presa á boca que fora colocada a partir do dia que em que ele se recusou a comer. 

Sorrindo, ela fechou a porta, tirando de dentro da sacola que carregava dois iogurtes. Caminhou até ele e lhe deu um demorado beijo na testa, o olhando com extrema ternura. Já o homem ali sentado mal se movia, apenas interpretava seu papel de boneco que Yin gostava tanto de amar. Seus olhos há muito perderam o brilho e desde aquele dia fatídico, ele perdera a vontade de viver.

- Precisamos comemorar! - ela disse animadamente, passando as mãos envolta de seu pescoço, distribuindo beijos rápidos pelo rosto do homem. - Você vai ser papai!

O coração de Michael bateu mais forte e seus olhos se encheram de lágrimas. Não emitiu um ruído sequer, sentindo aquela sonda que se estendia de sua boca até seu estômago abafar um soluço baixo, assim como as cordas que o mantinham preso naquela cadeira de metal.

Desejou como fazia todos os dias, que a morte finalmente o libertasse.