O Dia Em Que A Música Morreu escrita por Rain


Capítulo 1
Capítulo Único




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A long, long time ago...
I can still remember
How that music used to make me smile.
And I knew if I had my chance
That I could make those people dance
And, maybe, they'd be happy for a while.
But february made me shiver
With every paper I'd deliver.
Bad news on the doorstep;
I couldn't take one more step.
I can't remember if I cried
When I read about his widowed bride,
But something touched me deep inside
The day the music died.
(American Pie - Don McLean)

 

O Dia em que a Música Morreu

Joe gostava de acordar devagar, por isso programava o despertador para tocar vários minutos antes da hora certa. Assim, o aparelho desagradável interrompia seus sonhos, mas, de alguma maneira, ele voltava a mergulhar em pensamentos ilógicos até que sua mente despertasse lentamente ao som da música com que tinha sonhado.

Era uma particularidade de seu cérebro barulhento que uma música sempre o perseguisse implacavelmente quando começasse o dia. Ela tocava quando ele fechava os olhos depois do som do despertador, e se insinuava por seus restos de sonho e pensamentos semi-coerentes, e ele não tinha escolha. Era a música que o escolhia.

Hoje era uma música triste. Uma voz poderosa e amarga que falava sobre como o amor era um fardo para a pessoa amada. Joe não simpatizava especialmente com ela, mas a achava interessante.

Neste ponto, é preciso entender que Joe tinha um coração alado, desses com asas diáfanas de sonho que esvoaçam à menor brisa, e que, como todo sonhador, Joe era também um romântico. Não se pode desgrudar uma coisa da outra, não é? Não se voa com apenas uma asa.

Sendo assim, Joe não acreditava ser possível que o amor fosse um fardo para ninguém. Ele nunca estivera, de fato, perdidamente apaixonado, mas sabia instintivamente que há prisões que libertam. A letra da música lhe parecia, portanto, agridoce e um pouco tola. Mas outra coisa que ele não podia evitar, era pensar que qualquer emoção verdadeira que pudesse ser posta em palavras, era digna de ser ouvida. Ainda mais se fosse acompanhada de uma melodia.

Então ele simplesmente a deixou percorrer os labirintos de seu cérebro até que ela acabasse seu trabalho de prepará-lo para o dia. Trabalho esse que foi rapidamente transferido para uma música de conteúdo mais alegre, quando ele pôs seus fones de ouvido e encaminhou-se para seu emprego, ouvindo a história de um homem que se apaixona por uma mulher que se senta ao seu lado num trem e perde a cabeça por ela.

Assim que chegou à rua, deparou-se com uma ausência estranha. O ar parecia pesado, mesmo no frescor da manhã, e não havia passarinhos. Nenhum. Era um estranho dia este que começava sem o canto dos passarinhos, pensou, estranhando a praça que cruzava todos os dias e que nunca tinha estado tão silenciosa, nem mesmo na calada da noite, ele imaginava, quando o vento balança as folhas das árvores. Mas hoje não havia vento.

Que dia! Não me parece um bom começo.

Havia um banco sempre ocupado àquela hora da manhã. Era um velhinho de boina que gostava de passar as primeiras horas do dia alimentando os pombos. Ele sempre sorria para si mesmo e para os outros, imitando os murmúrios desorganizados dos pássaros que se reuniam a seus pés.

— Bom dia – disse Joe, como fazia sempre.

— Olá – respondeu “Seu Boina”, como Joe o havia registrado para si mesmo.

Mas hoje dava para se perceber nele um ar cansado e um desamparo que Joe nunca tinha notado. Então ele pensou, imediatamente, que “Seu Boina” devia estar triste pela ausência de seus pássaros. Era verdadeiramente criminoso como se podia tirar os pedaços de liberdade de alguém.

— Acha que puseram veneno para os pombos? Será que é por isso que não estão aqui? – perguntou Joe, pesaroso de cutucar a “ferida”, mas certo de que “Seu Boina” podia jogar alguma luz àquele mistério.

— Pombos? – perguntou “Seu Boina”. – Está tudo bem com você?

— Tudo bem. E com o senhor? – respondeu Joe, estranhando a extensão do cumprimento, ainda mais no lugar da resposta à sua pergunta. Mas sua mãe não tinha criado um grosseirão que não respondesse a uma pergunta retórica com outra.

— Tudo na mesma – respondeu o homem, de forma um pouco menos retórica do que Joe gostaria.

— Humm... Mas e os pombos?

— Garoto, acho que esses seus brincos estranhos podem ter te dado uma infecção. Você desinfetou bem essa coisa feia?

— Quê? – questionou Joe assustado, já que nunca tinha usado brincos.

— Eu não entendo essas modas de agora, sabe? No meu tempo, ninguém usaria uma feiúra dessas!

— Entendo. – Porcaria nenhuma! — Bom, tenho que me apressar. Até logo – disse Joe, crendo piamente que “Seu Boina” tinha endoidado mais que o Batman, mas que não tinha perdido a capacidade de criticar as coisas.

Brincos estranhos!

Talvez o velho não enxergasse direito e tivesse se confundido ao olhar para os pequenos fones pretos dependurados constantemente em seus ouvidos, como se fizessem parte de seu corpo. Certamente, no tempo de “Seu Boina” também não havia fones de ouvido.

Não pôde evitar um sorriso quando, logo em seguida a esse pensamento, a voz irônica de Raul Seixas começou a contar a ambígua história de um homem nascido há muito, muito tempo.

Acho que Seu Boina deve ter nascido há dez mil anos atrás! Pensou, imediatamente lamentando-se de que humor não fosse seu forte. Ainda bem que essas bobagens ficam apenas na minha cabeça.

Aliás, talvez elas andassem ocupando espaço demais, porque, no meio de seu caminho, Joe se questionou como podia ser tão distraído que não tivesse percebido que a escola de balé por onde passava todos os dias tinha fechado. Em lugar da construção de cores delicadas e das grandes janelas através das quais se podia ver paredes espelhadas, onde saltitantes garotinhas e lindas moças se refletiam, movendo-se delicadamente ao som de músicas harmoniosas e leves como a brisa, havia agora uma enorme e barulhenta oficina, onde homens andavam para lá e para cá tocando a antimúsica do calor da funilaria.

Céus! Como foi que isso aconteceu? Lembro-me de ainda ontem ter visto uma menininha de tutu rosa andando por aqui de mãos dadas com a mãe! Será que elas também não sabiam que a escola fechou? Estranho.

Esse dia estava ficando cada vez mais esquisito e Joe reparou, pela primeira vez, como o barulho dos carros que zuniam na avenida invadia seus ouvidos, mesmo através dos fones, e fazia a música alegre que escutava, aquela que nunca deixava de fazê-lo sorrir mesmo quando tudo parecia sem sentido, parecer um som abafado ao fundo de uma gritaria. Ele aumentou o som, mas isso só piorou as coisas, especialmente quando passou por uma construção e o som de uma britadeira o fez querer encolher-se para dentro de seu próprio cérebro.

Tirou os fones de ouvido, sentindo uma angústia pontiaguda e inconveniente instalar-se em si. Tentou ignorar o fato de que todos os olhos pareciam espetá-lo como se ele fosse uma espécie de agressão àquele mundo ao qual tinha certeza que não pertencia.

O cubículo que ocupava no escritório não era nada acolhedor. Ou confortável. Ou algo além de uma caixa apertada com cores assépticas. Com suas pernas longas e desajeitadas, Joe parecia incapaz de refrear a atração de seus joelhos pelo tampo da mesa baixa e sua pele pálida vivia cheia de manchas roxas, produtos de seus desastrosos encontros com as quinas da escrivaninha. Não era nada nem remotamente parecido com um refúgio. Ainda assim, Joe ficou feliz ao correr para ele e instalar-se precariamente em sua cadeira de rodinhas, livrando-se dos olhares diretos que sentia persegui-lo.

Acho que estou ficando paranóico, pensou, lembrando-se da música homônima àquela sensação que parecia ter se instalado em sua mente na forma irônica de um grande Buda que, sentado sobre um pobre Joe amassado, não o deixava se mexer.

Quis desviar aquela ideia bizarra e girou sobre a cadeira para poder encarar o resto do escritório. As rodinhas da cadeira rangeram sob seu peso e o barulho desagradável foi um estranho consolo, pelo menos era um som familiar.

Ninguém estava, de fato, reparando nele, o que permitiu que Joe pudesse olhar as pessoas em volta, seus colegas de trabalho, e percebesse com horror como seus movimentos pareciam grosseiros e pesados.

Será possível que todo mundo hoje acordou no corpo de um lenhador com dois pés esquerdos?

Girou de novo sobre a cadeira, fechando-se novamente no mundo minúsculo de sua desconfortável mesa de trabalho. Apoiou os cotovelos sobre ela e a cabeça sobre as mãos, fechando os olhos. Entretanto, o estranho mundo para o qual tinha acordado hoje não desapareceu. Ao contrário, penetrou lenta e cortantemente por seu cérebro através do barulho das impressoras, dos dedos que corriam ligeiros e furiosos sobre os teclados, das outras cadeiras cujas rodinhas rangiam, dos telefones tocando estridentemente...

Todos esses sons familiares que compunham o cotidiano daquele ambiente de trabalho, e que eram, outrora, uma espécie de sinfonia secretamente harmônica que Joe se comprazia em decifrar, não passavam agora de uma terrível massa amorfa e dissonante de barulhos perturbadores.

A angústia pontiaguda que Joe sentia foi, ao longo daquele dia, deixando de espetá-lo à medida que ele ia se esquecendo, como os outros pareciam ter se esquecido, do que é que estava faltando no mundo. Sua anterior inquietação foi lentamente se transformando numa espécie de torpor, ou quase isso, já que a consciência vaga de uma ausência qualquer permanecia.

A noite parecia um pouco mais escura que o normal quando Joe se preparou para dormir. Ele tinha tentado distrair-se do silêncio que se apossara dele instigando seu mau humor, mas nada pareceu ajudar. Menos ainda os programas insípidos na televisão que tinham um quê, embora ele não soubesse qual, de desarmônicos.

Tentou ler, mas não havia barulho o suficiente em sua mente, e o abismo silencioso e deserto ameaçava endurecer seus neurônios como se fossem microscópicas estátuas desfazendo-se em pó. Ele talvez tivesse algum pensamento engraçado a esse respeito, mas nada lhe ocorreu, porque era como se muitas palavras tivessem subitamente desaparecido de seu vocabulário.

Deitou-se com a sensação estranha de estar sentindo saudade de algo que ele não sabia o que era e fechou os olhos esperando o sono chegar. A escuridão sorrateira chegou antes que Joe pudesse notar que o dia 03 de fevereiro de 2009 tinha chegado ao fim na cidade de Clear Lake, Iowa, e que a meia-noite tinha vindo acompanhada do canto dos pássaros que tinham, estranhamente, despertado de um sono profundo e enfeitiçado em plena noite de inverno.

Nenhum dos outros moradores da cidade pôde também notar que um vento suave percorreu um antigo milharal, despertando aos poucos todas as plantas e insetos que jaziam num silêncio encantado.

Ao longe, um avião transparente seguia seu destino rumo à cidade de Moorhead, Minnesota. Ou talvez fosse para outro lugar.

♪♫♪♫♪♫

Tudo estava diferente, exceto para Joe que acordou com um zumbido estranho e estridente na cabeça que doía. Saudou o dia com um palavrão e vestiu-se com descaso para enfrentar a manhã que o esperava com um sorriso que ele não viu ou que preferiu ignorar.

Olhou para seu I-Pod, jogado de qualquer jeito sobre a mesa da cozinha, e tentou se lembrar por que sentia que aquela era uma de suas posses mais preciosas. Não conseguiu, mas enfiou-o no bolso mesmo assim, por via das dúvidas, e saiu apressado, pois tinha dormido demais.

Na praça, Seu Boina alimentava os pombos e sorria alegremente para os conhecidos que passavam. Joe respondeu ao seu “bom dia” apenas com um leve aceno de cabeça e seguiu adiante. Sua vontade era não responder, porque o vazio em seu peito não o deixava pensar em nada, porém sua mãe não tinha criado um grosseirão.

Em frente à escola de dança, que Joe estranhou sem saber por que, a Srta. Fada de Cristal, como ele tinha mentalmente apelidado a professora, recebia as menininhas de tutu rosa para a primeira aula do dia. O apelido se devia ao fato de que Joe a achava linda, delicada e reluzente, mas ele nunca tinha tido coragem, tímido que era, de dirigir-lhe sequer um “olá” despretensioso.

Qualquer coisa nos movimentos daquela mulher dava a Joe a impressão de que ela poderia voar se quisesse, e ele sabia, ou ao menos achava que sabia, que não era nenhum “material de apreciação para fadas”. Sendo assim, todas as manhãs ele passava, admirava sua beleza e esperava que ela lhe dirigisse ao menos um olhar. Quando isso invariavelmente não acontecia, ele “recolhia-se à sua insignificância” e continuava seu caminho. Neste dia, porém, aconteceu algo diferente.

— Bom dia – cantou uma voz melodiosa que encheu os ouvidos dele de doçura.

Joe levantou os olhos e deparou-se com a Srta. Fada de Cristal em pessoa, parada à frente dele, sorrindo. Vendo-a assim de perto, Joe teve certeza de ela era algo saído diretamente de um desenho da Disney e não pôde evitar que um rubor cobrisse sua face ao responder ao cumprimento.

Mortificado, ele enrolou-se um pouco mais ao casaco que o protegia na manhã gelada e ia continuando seu caminho quando parou, pensando por um momento que não tinha como se sentir pior naquele dia cinzento e estranho, então não havia mal em tentar a sorte.

Ao inferno com a timidez!

Girando nos calcanhares, ele virou-se novamente para ela e teve a impressão de perder os sentidos por uma fração de segundo quando ela o fulminou com um novo sorriso.

— Eu passo aqui todos os dias. Você nunca olhou para mim. Por que hoje? – perguntou, sentindo-se atrevido e um pouco mal-educado.

— Porque você parecia alguém que precisava de um sorriso – ela respondeu, como se aquela resposta fosse algum tipo de coisa óbvia no mundo das fadas.

Joe não pôde evitar que o rubor tomasse conta de seu rosto novamente e que seus olhos baixassem ao chão, mas tampouco pôde impedir que um sorriso fosse lentamente nascendo em seus próprios lábios e colorindo seu cinzento mau humor ao passar por seu coração acelerado.

— Obrigado. Acho que você tinha razão. Qual é o seu nome?

— Donna. E o seu?

Donna.

A voz de Ritchie Valens insinuou-se tranquila e sorrateira na mente de Joe como o aroma de uma torta posta para esfriar na janela.

— Donna. Por causa da música?

— Sim – disse ela, balançando a cabeça que estava ligeiramente inclinada para o lado. – Você conhece?

— Conheço. É muito bonita. Bem, Donna, meu nome é Joe e eu conversaria mais com você sobre música, mas tem um bando de menininhas olhando furiosas para mim neste momento. Algo me diz que é bom não irritar garotinhas de coque no cabelo.

Donna riu, inclinando a cabeça para trás. Era estranho que ela tivesse achado alguma graça em seu humor peculiar e Joe gostou disso

— Nos vemos amanhã? – perguntou Donna.

— Certamente. Boa aula! - disse ele, se afastando.

— Até amanhã – prometeu ela.

Joe continuou andando, um sorriso insistente colado nos lábios e um mundo novo se insinuando pelas brechas que iam se abrindo na escuridão. Alguns metros à frente, ele não resistiu e olhou para trás, embora tivesse certeza de que ela não estaria mais ali. Para sua surpresa, viu-a encostada à parede.

Quando o viu, Donna arregalou os olhos numa expressão graciosa de quem foi pega em flagrante e apressou-se para dentro da escola, lançando-lhe um último sorriso tímido e um aceno rápido de sua mão de dedos finos.

Joe acenou também, mas ela já tinha desaparecido e, para não ficar com os dedos ali nos ares, ele colocou as mãos nos bolsos, sentindo dentro de um deles os contornos de seus preciosos fones de ouvido.

Colocou-os nas orelhas e foi embora cantarolando uma antiga melodia sobre como o mundo era maravilhoso.

 

********

Na madrugada do dia 3 de fevereiro de 1959, cinquenta anos antes da data em que se passa essa história, num milharal em algum lugar próximo a Clear Lake, Iowa, um pequeno avião mergulhou na escuridão matando seus quatro jovens ocupantes: o piloto Roger Peterson e três dos músicos mais promissores de sua época, Buddy Holly, Ritchie Valens e J. P. "The Big Bopper" Richardson. Esse dia mudou o mundo da música de um jeito que nunca poderemos saber, e por isso seria definido posteriormente por Don McLean, em sua canção "American Pie", como "o dia em que a música morreu".

Esta é a minha humilde homenagem aos ocupantes do Beechcraft Bonanza.


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