Doppelgänger: Primeiro Dia escrita por Rauker


Capítulo 8
Capítulo 07 - Espectadores




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Certos acontecimentos no presente catapultam o passado, e certos acontecimentos no passado catapultam o futuro.


São lembranças coladas em subterrâneos não tão profundos de minha memória. É fácil rememorar a época em que um aviso parecia adornar minha testa anunciando a todos que poderiam tirar sarro de mim. Eu era o garoto sempre zoado da turma, aquele que todos usavam para suprir as fervilhantes bobeiras infantis. Sinto o vapor dessas bobeiras até hoje, preso dentro de mim, aquecendo-me sentimentos de raiva e tristeza. Naquela época, qualquer travessura passada pela cabeça deles suscitava meu nome. “Vamos zoar o Léo”, aposto que era mais ou menos isso.

Nos primeiros anos escolares eu já não me dava muito bem com os outros, imperava grande dificuldade em fazer amigos (e olha que crianças são amigáveis nesse quesito, pois basta uma diversão conjunta como pique-esconde, pique-pega e “pique não sei mais o que” para qualquer solitariozinho se alegrar). Seria mentira afirmar que não tinha coleguinhas, mas os outros garotos eram bem implicantes. Até as garotas também eram irritantes. Se eu pedia um carrinho, não me emprestavam; se eu pedia um lápis ou borracha, feições de negação moldavam suas faces. Parecia que eu era algum tipo de ser repugnante, ninguém me estimava muito.

Se fosse listar todos os maus momentos da infância, eu teria história que preencheria as páginas de uma matéria inteira do caderno que levo na mochila. Meu apelido do primeiro ao quinto ano (antigo C.A e quarta série, respectivamente) era “Patinho”, perfeito para quem já era mirado com depreciação. Tudo porque desgostei de uma camisa com a estampa de um pato, que era destinada aos alunos durante a festa de primavera da escola. Um dos meus colegas, uma versão barrigudinha do Barril (mas sem a aparência punk), chamou-me por esse apelido, e a turma começou a rir. Dali em diante, muitos passaram a me chamar de “Patinho”.

Meu rendimento escolar era baixo, as notas beirando a média (às vezes abaixo dela, deixando-me em apuros nos tempos de recuperação). Era o suficiente para o meu pai, que achava sem importância tirar notas altas ou baixas desde que eu conseguisse passar de ano. Mas minha mãe pegava no meu pé, dizendo que apenas os alunos mais inteligentes conseguiam maiores chances na vida. O problema era que… eu não gostava de estudar. A escola era um lugar chato e penoso onde meus “amigos” aproveitavam para me amolar. Como poderia gostar de estudar em um ambiente desse?

Então, no quinto ano, uma nova aluna se apresentou à turma e sentou-se ao meu lado. Foi essa garota que passou a me proteger dos bullyings. Mesmo sendo uma garota (ela praticava karatê), demonstrava competência para repelir qualquer engraçadinho. Eu me afeiçoei a ela… e me escondi atrás dela.

Tsic! Do que adianta ficar me lembrando dela? Neste instante, sou apenas eu… eu contra quatro marmanjos divertindo-se com minha fraqueza. Mesmo se fossem apenas dois adolescentes, o resultado provavelmente não mudaria. Não há quem me proteja, não há quem pare e olhe a cena e intervenha assim como ela fazia no passado. Realmente não há!

Ouço algumas vozes distantes, olho para o lado e enxergo duas garotas. As risadinhas delas chegam a mim. Irrito-me quando escuto daqueles rostos em diversão frases como: “Ih, olha aquilo. Tomando trote”. Penso ter escutado um “Patinho” e procuro algum rosto conhecido. Mas, ao que parece, foi apenas minha imaginação.

Que droga! Onde estão os funcionários que zelam pela segurança do ambiente escolar? Será que veem isso apenas como uma brincadeira típica de estudantes e não é problema deles? O que estou passando agora é apenas uma metáfora, num contexto juvenil e aparentemente menos sério, da verdade que assola esse mundo. Ninguém se importa com as pessoas que são obrigadas a baixar a cabeça, pois é assim que o mundo funciona e isso deve ser aceito. Mas será que ninguém quebra essa concepção e tenta amparar essas pessoas? Será que ninguém irá ajudar como ela fazia? Preferem olhar e não fazerem nada como se fosse absolutamente normal? E, além disso, riem? Então é assim mesmo que funciona? Aqueles que são abandonados continuarão sendo desprezados, e aqueles que estão por cima tendem a passar por cima dos abandonados? Por que as pessoas gostam tanto de ver esse processo contínuo?

Sim, elas gostam. Percebo uma aglomeração na trilha não muito longe; alguns adolescentes pararam de andar apenas para assistirem o trote. É como um show ao vivo, um espetáculo que, por seu conteúdo desregrado, atrai a atenção de uma massa de estudantes. Mas é assim que funciona, não é? Seja um trote, uma briga, uma discussão, uma brincadeira, isso chama a atenção de todos, e todos param para ver, pausam suas vidas como se ela fosse menos importante que o evento que seus olhos apreciam.

Não são humanos, são espectadores.


Acima das cabeças da plateia particular que contemplava o espetáculo oferecido por Barril e seus companheiros, um espectador que realmente não era humano também o apreciava. Pousado no galho de uma árvore próxima, a ave negra que Léo avistara o observava.

Um espectador que deixaria de ser um em breve.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo: 21 de Abril.



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