A Clarividente escrita por Yuka


Capítulo 12
Capítulo 12


Notas iniciais do capítulo

Esse é mais um capítulo grande, com várias informações e onde vocês podem conhecer um pouco mais sobre as novas personagens. Espero que gostem!



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Nirina teve uma noite desconfortável. Não soube dizer se por ansiedade, preocupação ou falta de costume de dormir naquele quarto, seu sono era inconstante. Todas as vezes em que a aprendiz conseguia, finalmente, dormir, acordava assustada por algum sonho ou pelo estalo dos móveis no cômodo. Ficava então parada no escuro, olhando para o teto. Achou bom que a noite demorasse para passar, assim teria mais tempo para ficar sozinha. Sentia-se triste e não conseguia parar de pensar em Arthus. A saudade que sentia dele era imensa e o tempo todo ela se perguntava se ele sentia o mesmo.

Nirina conseguiu pegar no sono mais uma vez antes de ser acordada com batidas à porta. Ela se ergueu, sonolenta. A aprendiz se sentira bem durante a noite, mas agora suas horas sem sono refletiriam em seu dia. Esfregou um pouco os olhos e passou a mão pelo cabelo, tentando parecer um pouco mais apresentável.

Quando ela abriu a porta, a mesma serviçal do dia anterior estava ali. Ela se curvou em uma rápida reverência e anunciou:

— O café da manhã está servido, senhorita Nirina, no mesmo salão de refeições onde você deverá almoçar com os outros aprendizes. Necessita de algo?

— Qual é seu nome?

— Ailina, senhorita.

— Muito obrigada por avisar, Ailina. Não preciso de nada, logo estou indo para o salão.

Ailina assentiu com um leve aceno da cabeça e saiu, tão rápida quanto havia chegado. Nirina estranhava um pouco seu jeito silencioso e extremamente submisso, mas acreditava que ela pensava que assim estaria fazendo melhor seu serviço.

Lembrou que devia usar a túnica roxa sempre que fosse se encontrar com outras pessoas. Foi até seu quarto e decidiu que tomaria um banho antes de se vestir para se encontrar com os seus colegas.

Quando chegou ao lugar com sua túnica roxa balançando ao redor de suas pernas, viu apenas os aprendizes. Os mestres não estavam ali e logo ela pensou que eles estavam no primeiro dia apenas para conhecê-la ou recepcioná-la.

Nirina ainda se lembrava dos nomes de todos eles, desde quando foram apresentados no dia anterior. Ela se aproximou da mesa e se sentou ao lado de Laina, aprendiz de magia de ar, para tomar seu café da manhã e aproveitou para tentar começar a conhecer melhor seus colegas.

— Bom dia, Laina — disse ela com um sorriso. — Como vai?

— Bom dia — limitou-se a dizer, com um breve sorriso em resposta.

— Estou ansiosa por conhecer todos vocês — admitiu. — E um pouco nervosa, também...

Todos os outros aprendizes ficaram em silêncio. Diante da reação estranha deles, Nirina resolveu se calar e pegou um pedaço de pão, lembrando-se de quando Arthus cozinhava e dos cafés da manhã que ele fazia. Sentiu-se entediada e sozinha novamente, mas sempre que podia sorria para um dos aprendizes e comentava algo sobre a comida. Recebia silêncio de volta, ou um leve aceno da cabeça. Um monossílabo era o máximo de resposta que conseguia. Suspirou um tanto irritada e começou a tomar seu chá.

Quando seus colegas foram terminando de comer, juntaram-se nos sofás que ficavam próximos às paredes do salão e conversaram um pouco. De vez em quando eles riam um pouco mais forte, às vezes suas vozes se tornavam fracas como um sussurro. “Sou como uma aluna nova em uma sala de aula antiga” disse ela, em uma tentativa de se consolar. “Logo isso vai melhorar. Eu devia tentar”.

Pensando assim, Nirina terminou de tomar seu chá e se aproximou dos outros aprendizes com o olhar baixo.

— Oi — disse, sentindo o rosto esquentar. — Posso me sentar com vocês?

— Responda uma coisa — disse a aprendiz que vestia vermelho. — Alguém te convidou?

— Não — respondeu Nirina, paciente.

— Então não. Não pode. Com licença.

— Não fale assim com ela, Ísis! — repreendeu Adrien, claramente indignado.

— Eu só disse o que todos nós estávamos pensando. Não é verdade? — disse a aprendiz, encolhendo os ombros. — Não queremos uma clarividente aqui lendo nossas mentes.

— Eu não sei ler mentes — disse Nirina, sendo sincera e tentando ser aceita. — E não faria isso mesmo que soubesse.

— Não me importo — declarou Ísis, arrumando a gola da túnica vermelha.

Os outros aprendizes estavam em silêncio. Nirina percebeu que Aiko estava o tempo todo quieto, olhando para os lados. Ele não parecia prestar atenção em nada do que acontecia à sua volta. Laina parecia amiga de Ísis, portanto, duvidou que ela fosse se manifestar. Adrien parecia sensato, mas também não disse nada além da manifestação de antes.

— Tudo bem — disse Nirina, abandonando o sorriso. — Eu vou voltar para o meu quarto.

Assim que Nirina deu as costas aos seus colegas, Aiko se levantou e a pegou pela mão. Os outros aprendizes o olharam, surpresos. O aprendiz de magia de ar raramente se manifestava e dificilmente conversava com alguém. A ação deixou Nirina igualmente surpresa, mas ela não disse nada e deixou que ele a levasse para fora do salão.

Aiko a levou para um pequeno jardim, perto dos quartos onde os aprendizes ficavam alojados. O sol da manhã estava agradável e o jardim estava cheio de flores. Havia uma pequena fonte no meio, e Nirina sentiu saudade das brincadeiras de Arthus com a magia de água.

Nirina ficou em silêncio por um bom tempo e seu acompanhante também não disse nada. Ele parecia aquele tipo de pessoa que entende que o silêncio às vezes fala mais que mil palavras. A clarividente balançou as pernas, sorrindo, enquanto tentava pensar no que se passava pela mente de Aiko.

— Ísis — disse Aiko, finalmente. — É sempre assim.

— Eu imaginei — respondeu, com um sorriso. — Não se preocupe, não precisava ter deixado seus amigos pra vir até aqui comigo.

— Não são meus amigos — ele revelou, rapidamente. — Não me entendem. Imaginei que você pudesse, porque você parece uma boa pessoa.

Nirina ergueu uma sobrancelha. Ele parecia o tipo que raramente fala. Ela devia mesmo ser diferente dos outros para fazê-lo se abrir. E por que será que seus colegas não o entendiam? Do que se tratava?

— Pode conversar comigo, Aiko — ela disse, com um sorriso afável —, sempre que quiser.

— Eu tenho a manhã livre. Você também?

— Não — disse Nirina. — Como tenho aulas com Zahra e Selene, terei algumas aulas durante a manhã. Daqui a pouco preciso ir.

— Sei — ele sorriu. — Como é ser uma clarividente?

— Eu não sei — admitiu Nirina. — Há pouco tempo meu mestre descobriu que eu tinha habilidades de clarividente e enviou uma carta ao Rei, comunicando que algo deveria ser feito a meu respeito. Quando eu tiver mais aulas, eu te conto.

Aiko sorriu. Havia tempo que o aprendiz não conversava com ninguém além de seu mestre, Sven. Sven era alto, tinha o cabelo escuro e usava óculos. Sua expressão estava sempre séria e os aprendizes se perguntavam como Aiko conseguia gostar de ter aulas com ele.

— Não se preocupe com Ísis — disse o novo amigo. — Ela é sempre assim com todos.

— Muito obrigada, Aiko. Devo ir para o quarto esperar por Zahra, não quero me atrasar.

Ele abriu um sorriso e apenas acenou com a mão em despedida. Quando Nirina olhou para trás ele ainda estava ali, e sua mente parecia ter se perdido do mundo novamente, como se pensasse em várias coisas ao mesmo tempo.

Nirina entrou em seus aposentos e, assim que se dirigiu a seu quarto, descobriu que tinha uma visita.

Uma aprendiz de túnica vermelha estava mexendo em seus livros, deixando-os fora de lugar. Não os bagunçava, mas pegava e olhava deixando-os de lado, todos desordenados.

— Ísis? — perguntou Nirina, erguendo uma sobrancelha. — O que você está fazendo aqui?

— Ah — disse ela, largando os livros. — Estava te esperando, então fiquei entediada e resolvi ver seus livros.

— Podia ter me avisado que vinha — disse a anfitriã, abandonando o sorriso que tinha ao chegar ao quarto.

— Eu só queria dar um aviso — começou Ísis, levantando da cama. — Sei como vocês, magos clarividentes, se acham importantes. Mas não ache que...

— Eu não estou achando nada — interrompeu Nirina, incomodada com a pretensão da colega. — Você me conhece? Você não sabe nada sobre mim, não sabe o que tenho passado. Só sabe que eu sou uma maga clarividente e isso é tudo. Então você se acha no direito de entrar no meu quarto assim, mexer nas minhas coisas, e dizer que me veio “dar um aviso”? Insinuando coisas que eu tenho pensado? Quem aqui poderá ler mentes, eu ou você?

Ísis ficou em silêncio. Pelo jeito que Nirina havia agido antes, não imaginava que ela iria reagir assim.

— Responda. Quem poderá ler mentes, eu ou você?

— Você.

— Pois é, Ísis — disse ela, afinando os olhos. — Eu não estou pensando nada. Quis me aproximar de vocês porque quero amigos e não quero ficar sozinha. Mas tudo bem. Agora, queira sair do meu quarto, por favor.

— Isso não vai ficar assim — disse ela. — Sei que você se acha importante por estar no meio de nós todos agora, mas isso ainda vai mudar — acrescentou, levantando e jogando a túnica vermelha para trás, olhando Nirina de canto. — Não gostei de você desde a primeira vez em que a vi.

— Lamento — limitou-se a dizer, indicando a porta para Ísis com a mão. — Vá embora, por favor.

Ísis saiu do quarto sem dizer mais nada. Nirina teve vontade de se trancar e não sair mais, mas começou a arrumar os livros que sua visita havia tirado de lugar. Logo Zahra estaria ali para as aulas. A aprendiz sabia que a viagem para a Corte não seria divertida, mas não imaginou que coisas tão pequenas a incomodariam tanto tão cedo. Queria poder desabafar com Arthus e Riana.

Nirina terminou de arrumar os livros e pegou um deles. Um dos livros que Arthus havia dado, sobre magia de elementos, de forma geral. Percebeu que nunca havia lido ele inteiro. Passou os olhos pelo índice e foi atraída por um capítulo em especial: “Magos de elementos e seus relacionamentos”. Ergueu uma sobrancelha e abriu na página em que o capítulo iniciava, e começou a ler.

“O elemento principal de um mago diz muito sobre sua personalidade. É necessário conhecer bem as características de cada mago para que o relacionamento entre aprendizes em um grupo de aulas não seja afetado.

Cada mago pode ser entendido como seu elemento. A água, quando calma, é refrescante, renovadora. O fogo é indispensável para o conforto, para que os dias sejam mais agradáveis. O ar é compreensivo, carinhoso, brincando com as folhas das árvores em um dia de brisa. A terra é o símbolo da fertilidade e da força, generosa, acolhendo todas as sementes com que a semeiam. Como tudo, porém, os elementos tem seu lado destruidor, assim como os magos regidos por seus elementos.

A água tem grande capacidade de devastação. Em pouca quantidade é essencial para a vida, em grandes quantidades, pode matar. Assim é também com o fogo, a terra e o ar; é necessário que se saiba lidar com cada um dos aprendizes para não trazer à tona sua natureza destruidora.

Aprendizes de elementos opostos tendem a desenvolver maior disputa. Acontece com frequência entre magos de água e magos de fogo; e magos de terra e magos de ar. É importante monitorar o comportamento desses aprendizes, pois magos de elementos opostos não precisam de um motivo claro para, aparentemente, se odiarem.”

Nirina fechou o livro por um instante e refletiu. Ísis havia dito “Não gostei de você desde o momento em que a vi”. Fazia sentido, ela pensou com um sorriso. Era bom saber disso, saber que tinha uma explicação plausível para a raiva injustificada de Ísis. Pensou então em Hazael e Martin. Não sabia ao certo o que havia acontecido entre eles, mas uma coisa era certa: seus elementos também eram opostos como os de Nirina e Ísis, e isso teve a ver com toda certeza. Seu relacionamento com Aiko, Adrien e Laina então seria mais fácil, visto que eram magos de ar e terra.

Olhou para o livro e folheou as próximas páginas.

“Magos regidos pela água e pelo ar são os mais serenos. De todos os elementos, o mago regido pelo ar é o mais calmo e paciente, seguido de perto pelos magos regidos pela água. Os magos de terra são um pouco menos pacientes, mais ativos; não conseguem ficar parados e têm dificuldades em obedecer ordens. Os magos de fogo vêm em último lugar, impacientes, extremamente ativos e com pouca facilidade em obedecer ordens, caracterizam os aprendizes mais difíceis de lidar. Por isso o treinamento por cada um dos aprendizes deve ser administrado por um mago de igual elemento: assim o mestre poderá entendê-los melhor e observar as necessidades de cada aprendiz.”

Nirina parou de ler quando ouviu alguém bater à porta. Deixou o livro em sua mesinha de cabeceira, decidida a ler mais dele depois. Estava aprendendo coisas interessantes sobre outros aprendizes e isso seria útil em sua convivência com os seus colegas. Decidiu ao levantar da cama que seria mais paciente com Ísis e que deveria honrar seu elemento como uma maga de água: devia ser calma como um lago que, apesar de profundo, aparenta estar sempre sereno na superfície. Não se deixaria irritar por outra aprendiz que, como estava até nos livros de magia, tinha uma tendência natural por competições.

Assim que abriu a porta, viu Zahra. Estava curiosa e estranhamente feliz – ler mais sobre a personalidade dos aprendizes a havia ajudado muito, e ela sentia como se tivesse sido consolada pelo livro. Com um sorriso, convidou a nova mestra a entrar.

— Bom dia, Nirina — disse Zahra, sorridente. — Está pronta para muita meditação hoje?

— Mais do que preparada — respondeu a aprendiz, retribuindo o sorriso. — E tenho várias perguntas.

— Ah, isso é ótimo — assentiu a professora, sentando-se à mesa e convidando Nirina a fazer o mesmo. — Quer começar a fazê-las agora mesmo?

— Quando eu comecei a sentir minha mente um pouco diferente, antes de comunicar a Arthus, eu parecia ter uma voz em minha mente, como minha consciência — disse, pausando aos poucos como se tentasse encontrar as melhores palavras. — Há um tempo não a tenho mais ouvido.

— O que essa voz te dizia, Nirina?

— Era algo que me alertava. Dizia para tomar uma decisão ou não, coisas simples que podiam ser confundidas com um sexto sentido. Mas a minha estava sempre certa.

— Sei — disse Zahra, com uma expressão pensativa. — Isso não é um sinal tão bom quanto parece. Sabe, Nirina, mesmo para um mago clarividente, as coisas não podem acontecer sem que ele ordene. Se você não ordenar que quer tentar usar sua habilidade de visão, deve ter alguma coisa errada. Sinal de que seus poderes clarividentes já estavam fortes e começando a fugir de seu controle.

— Entendi — ela coçou a cabeça um pouco. — E por que elas têm parado, se ainda não comecei as aulas?

— Seus sentimentos — respondeu a mestra, segurando-lhe as mãos. — Sua magia, Nirina, é extremamente ligada a seu estado espiritual. Por isso um aprendiz deve ser sempre guiado a sua natureza calma, construtora, não à sua natureza destrutiva. Converse mais sobre isso com Selene depois, ela saberá bem o que lhe dizer. Mas um mago extremamente infeliz ou que sente muita raiva pode, sem muita dificuldade, destruir tudo ao seu redor. Até a si mesmo. Sua consciência de clarividente falava frequentemente a você enquanto sua mente estava calma, tranquila, quando você morava com Arthus e Riana e tinha sua rotina. Vir para a Corte mudou praticamente toda a sua vida, e isso tem afetado seus poderes mágicos.

Nirina se lembrou do que havia lido no livro de antes. Então era mesmo assim que acontecia... Lembrou-se de ficar de olho em Aiko, que parecia sempre inconstante.

— Entendi, obrigada — sorriu Nirina, admitindo que Zahra estava certa. Estava mesmo confusa e perdida, sentindo saudade de sua casa, de Arthus e de Riana. — E quais são as habilidades principais de um mago clarividente?

— Esse é o tópico principal de nossa aula — respondeu Zahra, sentando-se à frente de Nirina. — Os magos clarividentes são especialmente usados em estratégias defensivas, interrogatórios, acusações e, em raros casos, previsões do futuro.

— Soube por Arthus que um dia, andando na rua, você previu que um pedestre deixaria cair sua sacola de compras e isso realmente aconteceu. As visões do futuro que um clarividente tem dizem respeito a pouco tempo adiante do que estamos e tem uma desvantagem: elas não nos incluem.

— Como assim? — indagou Nirina, erguendo uma sobrancelha. — Quer dizer que posso ver o que vai acontecer ao meu redor, mas não o que vai acontecer comigo?

— Exatamente isso — confirmou a mestra. — Nossas habilidades têm grandes limitações. Somos poderosos, mas temos nossos pontos fracos como todos os magos. Como maga clarividente, os seus poderes relacionados a seus elementos também ficam mais fortes. Com o tempo, vou pedir também a ajuda de Reno para que te treine em batalhas. Nada melhor que um soldado para ensinar a um mago como lutar. A não ser que você não queira participar do exército. Você vai poder escolher.

— Eu quero — disse a aprendiz, com convicção. — Eu quero muito.

— É bom saber disso, Nirina. Precisamos de magos assim.

— Zahra — ela disse, sem conseguir esconder a apreensão. — Pode me falar um pouco mais sobre magos clarividentes e magos negros?

— Eu pretendia deixar isso para uma próxima aula...

— Por favor — insistiu Nirina, segurando a mão de Zahra com uma expressão intensa. — Eu preciso saber.





Riana terminou de colocar os preparativos para o almoço na cesta que estava arrumando e sorriu para Aldara, sua mãe, pegando suas coisas e se dirigindo até a porta.

Havia explicado para a mãe que, após a mudança de Nirina para a Corte, ela havia conhecido novos amigos na biblioteca da cidade. Aldara não questionou, percebendo como sua filha parecia ter um novo ar de felicidade.

A garota foi até a rua e decidiu pagar pelo transporte de carruagem até a casa de Selene. Alguns cocheiros ofereciam esse trabalho e o sol estava forte demais para que Riana se animasse a andar até a casa da maga.

Assim que bateu à porta, Ian a atendeu. Sorriu imediatamente ao vê-la e deu espaço para que ela entrasse, convidando-a. Não viu Hazael e logo se voltou a Ian:

— Eu vim ver se vocês querem almoçar — disse Riana, erguendo a cesta. — Eu preparei algumas coisas.

— Ora, ora, parece que temos alguém além de Selene para cuidar de mim e Hazael — riu, pegando a cesta das mãos de Riana e indo até a cozinha, deixando-a sobre a mesa. — Hazael ainda está dormindo.

— Ainda? — disse ela, surpresa. Sempre fora acostumada a acordar cedo, tivesse algum compromisso ou não.

— Pois é. Selene está na Corte, as aulas dela com Nirina começam essa tarde. Agora ela deve passar um tempo maior lá. Vamos arrumar a mesa e chamar Hazael?

— Ótima ideia! — disse Riana, estendendo sobre a mesa a toalha que havia trazido.

Estava obstinada a perguntar a Ian sua história. Ele e Hazael já haviam mantido mistérios o suficiente desde que os encontrara pela primeira vez. Tinha que admitir que só havia voltado para vê-los se sentindo completamente segura depois que conheceu Selene, que também era mulher e era doce e compreensiva, extremamente confiável. Riana soube que podia confiar nela, e grande parte do seu sucesso em invocar espectros havia acontecido por causa das conversas com a maga sobre suas inseguranças.

— Riana, existe algo importante sobre magia negra que eu devo dizer a você — disse Ian, ajudando-a com a arrumação. — Eu não quero que você saiba através de outras fontes.

— Pois não? — sorriu ela, colocando os três pratos sobre a mesa.

— Essa que eu lhe ensinei é a melhor prática de magia negra — prosseguiu, cauteloso. — Existe outro modo de prática que não é tão inofensivo assim.

Riana se sentou em uma das cadeiras enquanto Ian fazia o mesmo e prosseguia com a explicação. Ele parecia extremamente cauteloso e a aprendiz não conseguia saber direito o porquê.

— Fale mais, Ian — ela encorajou, sorrindo. — Quero saber mais.

— Essa prática da magia negra pode alimentar um mago de modo a deixá-lo permanentemente mais forte. Mas não há meios inofensivos de fazer isso. Para tomar o poder de alguém, seja mago ou não mago... É preciso matar a vítima do ritual.

Riana não pode esconder a expressão de surpresa. Então havia algo realmente ruim na magia negra. Esse modo de aumentar o poder era só para pessoas cruéis, que não se importavam com o sentimento alheio e estavam dispostas a tudo apenas para chegar a seus objetivos.

Ela olhou para os lados, imaginando o que Ian já teria feito. Sabia que quando Hazael o encontrou ele estava fugindo de magos negros. O que poderia ter acontecido para que Ian precisasse fugir?

— Você sabe o que é preciso para fazer esse ritual?

— Está só perguntando por curiosidade? — riu Ian, fazendo Riana torcer a boca em desaprovação. — O que você quer saber, Riana? Vamos, pergunte — acrescentou, ficando sério subitamente.

— Você já usou esse tipo de magia, Ian? — disse, sem rodeios. Como ele havia pedido que perguntasse, não hesitaria.

— Sim — respondeu ele, igualmente sem hesitar. — Sim, eu já pratiquei esse tipo de magia enquanto vivia em Nali.

Os dois ficaram em silêncio. Hazael descia as escadas, sonolento, quando ouviu a voz de Riana e percebeu que os dois conversavam. O mago resolveu que não iria atrapalhar e sentou no sofá da sala, prestando atenção ao assunto de mestre e aprendiz no outro cômodo.

Riana mordeu o lábio inferior de modo apreensivo. Ergueu o olhar para Ian e decidiu que se já havia ido tão longe, devia saber todo o resto.

— O que aconteceu com você, Ian? Por que você teve que fugir daqueles magos negros?

Hazael se retesou no sofá, ouvidos atentos à resposta de Ian. O amigo nunca havia explicado essa parte da história e ele resolvera nunca insistir demais.

— Eu comecei a participar de rituais de sacrifício — começou e parou por algum tempo, como se procurasse as palavras exatas. — Eu comecei a procurar por vítimas que pudessem ser usadas nos rituais para os magos que faziam parte do nosso grupo.

— Por quê? — insistiu Riana, atenta.

“Deixe-o falar, garota”, pensou Hazael, do cômodo ao lado.

— Não faça perguntas demais. Eu só resolvi começar a praticar esse tipo de magia junto com eles. Mais ou menos como você decidiu começar a praticar o tipo menos ofensivo da magia comigo — ele sorriu. — Até que um dia eu percebi que isso era insensatez. Que já havíamos matado muitas pessoas e, embora preferíssemos as que já não tinham mais família, pois dariam menos trabalho depois, tínhamos que parar. É claro, os magos negros do grupo não concordaram comigo. Eu saí em silêncio do lugar onde executávamos os rituais e denunciei, anonimamente, à Corte do Rei de Nali o que eles faziam.

— Os guardas do Rei foram revistar o lugar, por mais que eu tivesse pedido para que não interviessem de repente. Os magos eram fortes. A maioria dos soldados foram mortos e os magos, dispersos. Mas eles não fugiram antes de tentar acabar comigo, afinal eles haviam percebido como eu estava hesitante nos últimos rituais. Decidiram, por dedução, que eu era o culpado. Mas era melhor me matar do que ficar com a dúvida.

Riana exibiu um sorriso triste. Não sabia direito o que dizer a Ian, que era seu mestre e agora também parecia um amigo.

— Encontrei Hazael quando resolvi me esconder em uma casa abandonada. Hazael fugia de Sira, e eu fugia de meus perseguidores. Como nenhum dos dois podia ficar no mesmo lugar por muito tempo, decidimos que fugiríamos juntos. Então fomos para Earine, já que nenhum dos dois tinha nada a perder.

— Como Hazael decidiu voltar?

— Ele começou com uma conversa de que não concordava que magos servissem ao Rei de Sira, que o exército era injusto e que devíamos fazer algo a respeito. Não entendi. Recentemente soube que ele ainda quer tentar se ver com Martin, o homem responsável por sua perseguição em Sira.

— Entendi... — disse a aprendiz, e depois ficou em silêncio.

— Você gosta menos de mim por isso?

— Quem gostaria menos de um amigo por alguns erros do passado? — disse Hazael, entrando na cozinha e se intrometendo na conversa sem o menor sinal de vergonha ou hesitação.

— Além disso, você se arrependeu — completou Riana. — Nós, seres humanos, fazemos isso o tempo inteiro. Não conseguimos enxergar as consequências de nossas ações a longo prazo e depois lamentamos, arrependidos, o que não devíamos ter feito. O arrependimento é um sentimento nobre, Ian, e você tentou consertar o que fez — sem conseguir evitar, ela segurou a mão de seu mestre. — Eu não gosto menos de você por isso.

Ian e Riana ficaram em silêncio, encarando um ao outro intensamente. Hazael assobiou e olhou em volta, fazendo os dois perceberem o porquê de seu manifesto.

— Hazael — começou Ian, afinando os olhos. — Será que dá pra parar de ser insinuante desse jeito?

— Desculpem — disse ele, com um aceno displicente da mão. — Eu não quis atrapalhar nada, mas eu senti o cheiro do almoço. Quem é responsável por isso, Riana novamente?

— Sim — respondeu, sentindo o rosto esquentar. — Espero que esteja tão bom quanto o jantar de ontem.

— Tenho certeza que estará.

— Não havia nada pra atrapalhar, imbecil — resmungou Ian, em tom incompreensível.

— O que você disse, Ian? — perguntou Hazael, rindo do amigo.

— Nada, Hazael — respondeu. — Nada.





Nirina prestava atenção à Zahra, compenetrada. Riana não saía de sua cabeça, no entanto.

— Você já deve ter ouvido Arthus dizer que a magia negra é a única que pode ser ensinada a alguém que não é mago, certo? — a aluna assentiu com a cabeça, fazendo-a prosseguir. — Talvez tenha ouvido também que os magos clarividentes e os magos negros são inimigos um do outro.

— Ouvi também. Isso é verdade?

— Mais ou menos. Os magos negros começaram a lutar contra os clarividentes porque não podemos prever com antecedência os movimentos de seus espectros. São totalmente imprevisíveis. Os espectros são estranhos de enfrentar, eu já encontrei com vários. É mais fácil se pudermos encontrar seus invocadores pela presença, mas como eles sabem que podemos fazer isso, geralmente estão afastados de onde acontecem as batalhas. A magia negra não é mais tão usada em confrontos por ser difícil de usar, ainda mais se os magos precisam se manter longe dos clarividentes.

— Essa magia, eu não entendo — disse Nirina, mordendo o lábio inferior.

— Existe outra forma de magia negra, Nirina. A mais usada, embora todos os magos tentem dizer o contrário.

A aprendiz ficou em silêncio, apenas esperando pela continuação.

— Essa forma consiste em sacrificar pessoas e, principalmente, magos para aumentar de modo permanente o poder mágico em rituais de sacrifício.

— Isso é... — ela olhou para baixo, pensativa. — Isso é horrível. Isso é praticado ainda em Sira?

— Foi para isso que o Rei Nasser me pediu para voltar.

— Existem magos como esses em Sira?

— São apenas suspeitas de Nasser. Algumas pessoas têm desaparecido nos arredores da cidade e até mesmo em bairros próximos ao palácio, e o Rei pediu para que eu não contasse isso a mais ninguém. Mas é você, Nirina. Você e eu, nós vamos trabalhar juntas tão logo isso seja possível. Você vai me ajudar a encontrar esses magos.

— Eu não esperava ouvir isso tão cedo — admitiu Nirina, sentindo a excitação dentro de si crescer.

— Eu decidi revelar logo. Não fazia sentido ficar escondendo — sorriu Zahra, segurando a mão da aprendiz. — Pensou em como vamos poder trabalhar bem juntas? Se clarividentes só podem enxergar com antecedência o que acontece a sua volta, eu vou poder ver se você vai estar envolvida nos acontecimentos. E você poderá enxergar o mesmo comigo. Se tivermos o suficiente de prática e sintonia, poderemos nos comunicar mentalmente.

— Isso certamente será incrível! — exclamou a aluna, sorrindo. — Mas é tão... Diferente. Eu não sei se conseguirei ser útil a você, Zahra...

— Claro. Claro que conseguirá — sorriu a maga. — Não faremos nada a não ser que você esteja preparada para isso. E você vai estudar e meditar muito, até que sua mente esteja fortalecida e com prática o bastante para que possa controlar com segurança suas habilidades.

— Pode me dizer um pouco mais sobre elas?

— Com certeza — ela manteve o sorriso. — Como disse, magos clarividentes são muito usados em interrogatórios e acusações. Sem a permissão de nosso alvo, podemos ler apenas os pensamentos superficiais se desejarmos. Por exemplo... Se você estivesse pensando em Arthus no momento que eu decidisse ler sua mente, eu saberia que você estava pensando nele. Mas sem sua permissão, eu não poderia saber, por exemplo, se você cometeu algum crime sem que pensasse nele. Interrogatórios — ela riu, como se lembrasse de algo — apenas o fato de a vítima saber que vai ser interrogada por um clarividente já a deixa tensa e propensa a não mentir. Imagine, saberemos imediatamente se estão mentindo. Em acusações, devemos ter a permissão para ler a mente do nosso alvo para saber o que aconteceu. Eles são obrigados a isso — prosseguiu, agora séria. — Qualquer um que se recuse é acusado de mentir e é levado diretamente para a justiça do Rei.

— Então a função dos clarividentes é mais política do que prática? — Nirina ergueu uma sobrancelha, contrariada.

— Exato. Já ouviu falar que a maioria dos clarividentes odeia participar de batalhas, certo? Eles não estão acostumados a isso.

— Já existiram outros clarividentes em Sira antes de você?

— Já — ela riu novamente. — Claro que sim. Mas nenhum que eu tenha conhecido. Conheci outros, no entanto, em outros países, antes de retornar para Sira a pedido do Rei.

— Entendi — disse a aluna, pensativa.

— Previsões do futuro são eventos raros — prosseguiu Zahra. — Geralmente você só consegue ver o que acontece com pessoas com quem você constitui um forte laço sentimental. Se você tentar observar algo, provavelmente será com Arthus, ou aquela sua amiga que você quis se despedir antes de se mudar para a Corte. Mas peço que não faça isso com frequência, a não ser que precise. Siga isso.

Nirina percebeu que a voz de Zahra tinha um tom sombrio. Era compreensível: o futuro é algo desconhecido para a maioria das pessoas e era mesmo melhor não tentar saber o que aconteceria apenas para ter certa vantagem. Mas teve que perguntar:

— Por quê?

— Existe algo que, se você previr, não conseguirá evitar: a morte. Ela sempre virá, por mais que você trabalhe para que ela não aconteça. Não adianta: tudo conspira a seu favor. Por isso, peço para que não se machuque tentando prever se algo acontecerá. Você pode ver coisas que não quer. Tenha cuidado, essa nossa habilidade é algo perigoso, por isso temos que ser tão fortes. Lembra-se que eu disse? Você vai ser uma poderosa maga de água além de clarividente. Provavelmente será capaz de ganhar de qualquer mago de água que não seja clarividente.

— Qualquer um?

— Qualquer um — assentiu Zahra, voltando a sorrir. — Agora, já falamos demais. Vamos tratar de exercitar essa mente?

— Sim! — sorriu Nirina, esperando pelas próximas instruções de sua mestra.


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Notas finais do capítulo

Um pouquinho atrasada no dia que disse que ia atualizar (às sextas-feiras), mas aí está. ♥