Saint Seiya Memórias: História Oculta Do Santuário escrita por Katrinnae Aesgarius


Capítulo 42
Interlúdio :: Van Qüine


Notas iniciais do capítulo

Mais que um duelo de forças, Quine sabe que mais que assumir um legado é lidar com um negro passado de seus antecessores que o deixam na margem da dúvida. Ao mesmo tempo, alguém parece lidar com seus próprios pesadelos e assombroso passado...



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Era uma respiração pesada. Gotículas de suor se misturavam ao de sangue que caía sobre a manopla dourada marcada com fissura pela violenta batalha. Levantou-se fechando o punho com um punhado de terra que lançou longe enquanto caminhava alguns passos à frente. Os cabelos longos acobreados nublavam sua face, mas não era capaz de esconder o sorriso de canto e a língua que umedecia os lábios por saborear aquele momento.

O braço se ergueu frente ao rosto e esticado em seguida para frente. O cosmo que circulava seu corpo como chamas seguiram em direção ao seu punho, concentrando uma poderosa energia na palma de sua mão numa esfera nebulosa vermelha e alaranjada.

Ao seu lado, outro braço surgiu, usando a mesma braçadeira da indumentária sagrada, concentrando uma mesma energia. O poder das duas esferas se misturava, desencadeando uma energia ainda maior como se duas estrelas estivessem prontas a explodir.

Conforme o cosmo crescia, os cabelos dos dois Cavaleiros esvoaçavam para o alto. Cada um puxava o braço contrário àquela que concentrava o poder para trás e como se essa puxasse algo no ar. Ambos empurraram essa segunda força e deferindo o golpe com as esferas que dançavam meio à rajada de luz sobre a exclamação dos Cavaleiros:

EXPLOSÃO GALÁCTICA!

Quem quer que fosse diante daqueles dois, foi engolido pela rajada de luz e as duas esferas explodiram quando se chocaram contra o corpo do oponente, pulverizando sua armadura seguidamente de seu corpo, tornando-se pó de estrelas meio ao grito de horror e agonia.

Aquele que havia surgido ao lado do Cavaleiro tornara-se desaparecia gradualmente como uma sombra formada na névoa. Ao tentar tocá-lo, foi como areia levado ao vento e escapando entre os dedos.

Voltou-se para o alvo de seu ataque e assistindo uma silhueta surgir, bem diferente a de antes. Esticava o braço e o chamava enquanto seu corpo pendia para frente caindo lentamente, meio às chamas do ataque feito há poucos instantes.

O sorriso de outrora desapareceu e lágrimas ganhavam sua face enquanto trincava os dentes antes de gritar esticando o braço naquela direção gritando em desespero.

— NÃÃÃÃÃOOOO!!!

.

.

.

Qüine acordou assustado, piscando aturdido e buscando orientação. O grito que ouviu pareceu partir de alguns aprendizes que treinavam no anfiteatro, o que o fez respirar aliviado levando a mão à cabeça e jogando o corpo para trás. Recostou-se na pilastra puxando ar, respirando fundo. A mecha do cabelo sobre seu rosto foi jogada para trás, mas em vão. Sempre acabava por voltar a cair sobre seu rosto novamente aquela maldita mecha rebelde.

A mão desceu até à nuca onde fez uma rápida massagem pela repentina tensão e alongando o pescoço de um lado para o outro até seus olhos recaírem sobre o livro em seu colo.

O diário estava com as páginas virada para baixo, deixado assim por ele quando buscou descansar um pouco somente, acabando por adormecer. Não fazia ideia de quanto tempo apagou ali. Estava dormindo pouco e sentia o cansaço ao longo do dia devido às noites acompanhando Antares.

Sentado à sombra daquela pilastra e recebendo a brisa daquela tarde, foi realmente convidativo. Certamente cochilou vendo os aprendizes saltando, executando golpes para aprimoramento de suas técnicas, mesmo meio aos gritos e xingamentos... E foi quando simplesmente apagou.

Coçou entre os olhos e bocejou. Fechou o diário e guardava em sua bolsa quando algo o alertou. Ergueu a mão bem diante do rosto para segurar uma pedra jogada em sua direção, apanhando-a no ar no momento certo. Levantou seus olhos verdes incisivamente para o responsável daquilo e encontrando um trio bem diante dele.

— Ei, novato. Que tal uma disputa de força? — dizia enquanto socava sua própria mão insistentemente, coberta com bandagem de treino e braçadeira de couro. — Vamos, diz aí. Topa ou vai fugir?

Qüine soltou um suspiro. Estava cansado demais até mesmo para uma resposta propícia para aquilo. Observava os outros dois rindo e remetendo aos moleques da escola que apenas mais pareciam macacos adestrados para rir e dar apoio moral.

“O cenário muda, mas os idiotas...”, pensou ele enquanto jogava a pedra para cima e apanhava, até que a esma explodiu sem que nem fosse preciso fechar as mãos.

— Pode ser, mas... tipo. — dizia enquanto se levantava e deixando a bolsa com o diário num lugar seguro. Alongou os braços para cima e dobrando-os para às costas e puxando com o outro, invertendo em seguida. — Sempre andam em bando por aqui? Pensei que disputas pessoais fossem proibidos, saca?

— Não se levar em consideração que estamos fazendo uma comparação de força e técnica. — comentou o rapaz com uma malícia que não passou despercebido por Qüine. — Por acaso ‘tá com medo e usando isso de desculpa, novato?

Qüine não pôde deixar de rir por aquela palavra que soou tão pejorativa — e ele conhecia bem quando usavam daquele tom. Levou as duas mãos ao cinto de couro e mordendo os lábios assentindo. Não era uma disputa de força somente.

Sabia que sua ‘brincadeira com Lagarto’ já tinha se espalhado, mas como passou mais tempo em companhia de Antares naquelas últimas semanas, certamente aquela era uma oportunidade única. Afinal, alguns aprendizes nem mesmo disfarçavam seus olhares para o grupo ali.

— Tudo bem. Não vou me ferrar sozinho mesmo. — respondeu Qüine dando de ombros para aquilo. — Mas, será com você ou os dois figurantes aí ao seu lado também entram na roda?

— Estou sabendo do baile que deu às aprendizes do Richter de Lagarto, não se ache tanto... — disse o provocador com ceticismo e rindo em seguida, chamando-o para o centro da arena do anfiteatro.

— Isso é o nome dele, é? Parece um espirro! — fez uma careta e rindo sobre até onde a história foi. — Quem me dera fosse um baile. Nem sei se pode chamar aquilo de cortejo. — respondeu Qüine acompanhando-o com notória cara de tédio. — Faltou um gingado, se é que me entendem. — e devolveu o mesmo ar de malícia. — Mas já adianto: vocês não fazem meu tipo.

— Vejamos se é tudo isso que dizem. — disse encarando-o com certo desprezo.

O espaço no anfiteatro foi aberto. Os aprendizes que treinavam e viram a aproximação do grupo e se afastaram seguindo para as arquibancadas. Até alguns soldados que patrulhavam pararam para ver o que se sucedia.

Cavaleiro algum à vista. O sol, àquela hora da tarde, já não castigava tanto por estar acolhido entre as nuvens, mas pareceu iluminar aquele momento como se fosse um grande espetáculo.

Qüine mantinha os longos cabelos escuros cor de figo presos pouco abaixo dos ombros, com mechas caindo sobre o rosto e costas. Massageava o pulso esquerdo que trazia a pulseira de couro que foi presente de sua mãe e a outra com as bandagens de treino que envolviam sua mão, pulso e até metade de ambos os braços.

Trajava uma calça preta com grevas em couro como as amarras e o sapato e fechando no joelho. Na coxa direita, apenas uma proteção presa ao cinto. A blusa num branco puxado para o amarelado tinha apenas um peitoral transpassado preso à ombreira.

O desafiante era um rapaz em seus 17 anos. Tinha os cabelos escuros com trança enraizada descendo até a nuca, depois soltos até pouco abaixo do pescoço presos em nós. Tinha a pele bronzeada e olhos grandes cor de mel. As suas vestimentas de treino denotava ser um aprendiz experiente já no terceiro nível, semelhante ao de Qüine, indicando alguém pronto para fazer as provas para sagrar-se cavaleiro.

Pouco antes do embate começar, uma breve apresentação de ambos com o desafiante chamando-se 'Gista'. Qüine se apresentou sem muito interesse e sem demonstrar qualquer postura de ataque, mas precisando levantar defesa quando viu o rapaz avançar em sua direção já, com o propósito de golpeá-lo no rosto.

Qüine se esquivou com maestria jogando o corpo para o lado e girando de modo a ficar de frente para seu adversário que, por sua vez, não abriu margem para um possível contra-ataque.

Mostrou-se igualmente ágil em virar-se buscando golpeá-lo com a perna. Qüine conseguiu bloquear com o braço, sendo preciso agachar-se quando um chute ganhou maior altitude. Ele girou o corpo buscando uma rasteira em seu adversário que conseguiu saltar a tempo para não perder sua vantagem.

Aproveitando a abertura dada pelo geminiano, avançou novamente, e Qüine remeteu a sua agilidade à de Antares quando a encontrou pela primeira vez, no Campo das Amazonas. Porém, seu oponente estava sendo apenas muito afoito em avançar tão indiscriminadamente.

Se fosse um inimigo de fato, Qüine o explodiria antes mesmo de chegar a ele. Porém, estava se limitando ao máximo para não usar seu cosmo e de não iniciar realmente uma batalha naquele anfiteatro.

Contudo, aquele ataque não foi como os outros. Entre um golpe e outro da qual Qüine bloqueou com a braçadeira e o punho, percebia que Gista ganhava velocidade e seus golpes tornavam-se mais rápido, o que poderia se tornar um problema. Sendo assim, conseguiu segurar seus punhos e iniciando uma real medida de forças como havia sido proposto.

—  O que foi...? — dizia Gista em provocação. — Por que não me ataca, novato? Só fica na defensiva, esquivando-se dos meus ataques... — dizia Gista entre dentes encarando Qüine. — Deixa eu dar um incentivo maior então...

Qüine sentiu, repentinamente, sua mão queimar, percebendo que Gista estava a concentrar uma parcela de cosmo em seu punho. Isso levou o geminiano fazer o mesmo com objetivo de anular aquele calor, mas não seria suficiente. Para isso, Qüine precisou 'explodir' o mínimo de seu cosmo em seu punho ao soltá-lo, permitindo abertura suficiente entre ambos para que ele pudesse recuperar seu espaço.

Qüine apenas o viu sorrir diante dele. Quando novamente avançou, estava já se colocando pronto para bloqueá-lo, vendo-o sumir diante de seus olhos. Surgia em pontos distintos que o deixaram perdido até que o notou às suas costas, restando apenas quebrar a cabeça para o lado junto com o corpo para esquivar-se do golpe.

Esse processo permitiu que levantasse a perna e empurrá-lo para um ataque seguido. Apoiou-se no chão e rodou a sua perna no ar deferindo dois golpes simultâneos antes de dar impulso para novamente cair de pé, ainda que dobrasse o joelho.

Gista cuspiu sangue, e aquilo o deixou expressamente irritado. Se antes sentiu o punho de seu oponente quente, agora podia ver as chamas 'brotando' em sua mão e lançar em sua direção.

Foi preciso saltar, enquanto aqueles que assistiam se encolherem na arquibancada para se proteger daquela rajada de fogo. "Agora ferrou! O cara ficou realmente... literalmente esquentadinho", pensou Qüine caindo em pé, sentindo duas bolas de fogo em sua direção.

Quase se queimou bloqueando com a braçadeira, distraindo-o facilmente para que o rapaz caísse sobre ele com suas mãos em chamas. Ainda que o segurasse pelo pulso e a outra com mão-a-mão, não suportaria por muito tempo. "Preciso dar um basta nisso...!", pensava quando sentiu calor excessivo em seu braço, fazendo-o arregalar os olhos.

Aquilo pareceu incentivar ainda mais Gista a ponto de aumentar a energia e isso alimentar a chama que crescia em sua mão, e ao fechar o punho, visava deferir um golpe certeiro naquele maldito novato quando foi surpreendido pela reação do mesmo.

Qüine havia segurado-o pelo pulso, envolvendo sua mão com seu cosmo para evitar o contato direto com as chamas, e jogou seu corpo para trás, trazendo o de seu oponente com ele. Com o espaço que queria, empurrou-o com a perna e criando um ponto de impacto que 'o explodiu' arremessando-o para o alto e para frente de seu corpo, lançando-o em direção às arquibancadas, no ponto mais alto onde havia arbustos meio a escombros de pilastras.

A queda somente não tinha sido violenta porque foi amortecida com a telecinese de Qüine que o observava, ainda deitado no centro da arena com a cabeça para trás. Fez uma careta quando uma pequena nuvem de poeira se levantou calculando 'errado' a distância.

"Ouch! Acho que isso vai doer um bocado pelos próximos dias...", pensou ele com falsa preocupação. Olhou o braço direito e conferindo a pulseira de couro, sem qualquer mancha, e respirou aliviado.

Apoiou-se com o braço,  erguendo as pernas para o alto até quase perto do peito, jogando-as em seguida de volta onde estavam. Durante o processo, usou a velocidade do movimento, aliada aos músculos das costas e do abdômen, arqueando a coluna, e caindo sobre a ponta dos pés.

Virou-se, novamente, em direção para onde arremessou Gista e vendo seus dois amigos correndo ao encontro do ponto de queda.

Não ouviu ovações, apenas burburinhos daqueles que assistiam comentando o que viram entre si. Enquanto alguns se levantavam caminhando de volta ao centro do anfiteatro, outros se retiravam. Os soldados que presenciaram tudo voltaram à sua rotina e tudo pareceu que voltava à sua normalidade. Nenhuma ajuda ou palavra foi trocada com Qüine que se levantava sacudindo a terra e poeira das pernas, braços e cabelo. Era como se nada tivesse acontecido.

Enquanto caminhava para onde deixou seus pertences, ouviu algo que pareceu perturbá-lo de alguma forma. Olhou sobre os ombros para dois aprendizes que conversavam e o fitaram por alguns instantes. Fingindo não ter ouvido, Qüine preferiu ignorar por hora.

Seguiu adiante tomando a garrafa d'água que sempre trazia com ele e refrescando-se em altos goles. Isso até perceber uma sombra projetar-se contra a sua com uma capa esvoaçando com a brisa. A voz que falara às suas costas era forte e imponente, mas também levemente assombrosa. Não que fosse feia, mas fez Qüine sentir um leve arrepio.

— Muito bom para um novato. — comentou um Cavaleiro de Ouro de braços cruzados recostado na pilastra. — Eu deveria mandar prender os dois por esse show, embora preferia fazê-los passar uma temporada numa caverna próximo ao Yomotsu, ouvindo o berro dos mortos.

Qüine engoliu a seco por aquilo, mas não escondeu seu ar de cinismo.

— Por que não me manda direto para o Inferno? — respondeu buscando disfarçar sua apreensão.

— Não fica muito longe... — diz coçando o queixo. — Um chute e te mando para o colo de um dos três Juízes. — e manteve a seriedade no olhar e na voz.

Qüine apenas arregalou os olhos, involuntariamente, e aquilo foi suficiente para o Dourado abrir um sorriso de canto. Aquilo fez o garoto sentir o cabelo da nuca se arrepiar.

— Não me culpe. — disse Qüine seguro de si e buscando manter o controle. — Ele disse que seria apenas medir força, mas veio querer queimar minha cara como puta disputando ponto.

— A sua boca é suja assim mesmo, garoto? — disse o Cavaleiro arqueando o semblante. — Posso estar enganado, mas parecia mais preocupado com essa pulseira que com essa sua cara-de-pau.

— Foi um presente. — disse limpando o braço sujo de sangue. — Se tivesse queimado ele não teria voado degraus acima. Tinha entrado em órbita! — disse contrariado e se sentando, bebendo mais um pouco de água. — É o Cavaleiro de Câncer, certo? Merikh é o seu nome, não é?

O Dourado jogou a sua capa de lado, e com isso, Qüine teve a impressão de ter visto algo nela. Como se o mais sutil dos movimentos daquele tecido branco lhe mostrasse um rosto se contorcendo em agonia, e isso o fez piscar aturdido. A capa estava rasgada nas pontas, não em desleixo, mas como se fosse da própria, uma vez que parecia bem nova. Ficara tão distraído com aquilo que nem percebeu quando o Cavaleiro removeu sua garrafa e bebericando de sua água.

— Sim, sou eu mesmo. Ao menos não preciso me apresentar, odeio isso. — disse voltando a seriedade. — Passei aqui e o vi adormecido. Se fosse outro, eu teria mandado fazer flexão com uma pedra de meia tonelada, mas soube que esteve cuidando da mascotinha, então...

— Mascotinha? — indagou Qüine. — Quem diabos está chamando...'Pera! Tá falando daquela garota, Antares? Chamam ela de mascotinha?

— Ela mesma. — respondeu com toda naturalidade. — Quem mais poderia ser?

— Por que ‘mascotinha’? Que raio de apelido é ess...? — indagava Qüine quando foi cortado por Merikh.

— Isso não te interessa. — disse olhando para Qüine de lado e já vendo-o bufar, mas pouco se importou. — Quero saber como ela está, já que tem cuidado dela.

Em outro momento Qüine teria dado uma resposta bem malcriada, mas percebendo o tom preocupado daquele Cavaleiro, sentiu-se desarmado e relaxou. Sua expressão moleque e debochada deu espaço a um rapaz mais sério, também angustiado por aquele estado da garota.

— Na mesma. — respondeu desanimado. — Ainda está... inconsciente, mas as feridas ao menos já pararam de sangrar e parecem estar cicatrizando. Mas, ela não reage a nada... — disse observando o Dourado assentir e removendo o elmo.

Merikh era um homem de expressões fortes em seu rosto alongado. Como bem Kiki havia dito, era um homem próximo aos 30 anos, com um porte mediano bem distribuído em seus 1,85m, mas com um braço com músculos tão bem trabalhados como as pernas.

No entanto, diferente dos muitos que encontrava ali, tinha uma pele alva, até mais que dele e do ariano que viveram grande parte de suas vidas em região fria.

O seu cabelo era escuro, quase negros, eram razoavelmente cheios no alto e jogados para frente, mas também com bom caimento atrás até pouco abaixo da nuca. Não chegavam a cobrir seus olhos, mas estes pareciam levemente nublados devido aos olhos caídos ‘tristes’. Pareciam contornados por um lápis escuro e permitindo um sombreamento pouco mais abaixo dos olhos. Isso acabava por destacá-los em seu tom prateado com rajados levemente azulados.

Quando fitavam Qüine, era como se o próprio pudesse ver muito além do plano físico e talvez isso o tornava inquietante apesar de sua aparência atraente.

— Geralmente ela não ficava de molho mais que alguns dias... — comentou olhando para a pedra branca incrustada em seu elmo: pedra-da-lua. Tocava-a com a ponta dos dedos. — O máximo que chegou foi uma semana, 10 dias eu acho. Já se passou um mês e ela...

— ‘Pera lá! — foi a vez de Qüine cortá-lo, mas o Canceriano pouco pareceu se importar. — Está me dizendo que isso já aconteceu antes? Olha... Não acham que estão levando a sério demais em ‘dar o sangue’ nos treinos? Ela poderia estar morta!

— Ela não vai morrer se é isso que tem medo. — respondeu Merikh se voltando para Qüine. — Você mesmo disse que as feridas estão cicatrizando, ela agora precisa de um tempo para se recuperar.

— Não devo esperar que me explique que merda é essa com ela, né? — questionou Qüine já se exasperando enquanto via Merikh menear negativamente e olhando para o anfiteatro. — Ah, fala sério! Por que tanto segredo com isso? Como pode ser tão frio assim?

— Primeiro. Isso é um assunto restrito aos Cavaleiros de Ouro, algo da qual ainda não é por pouca vergonha sua! — dizia entregando a garrafa de água. — Segundo. Se ela morrer, eu saberei, e ela não vai porque ela é teimosa demais até mesmo para aceitar isso. Além do mais, acho difícil alguém ceder à morte quando tem alguém lhe contando histórias todas as noites.

Ouvir aquilo fez Qüine não somente se calar, mas enrubescer ao ouvir aquilo. Sempre garantia que as servas já tinham se retirado e Kiki estivesse ocupado demais trabalhando nas armaduras ou mesmo dormindo para ler para Antares esperando alguma reação dela. No entanto, aquele Cavaleiro o flagrou fazendo isso?

— Não tem pelo que se envergonhar. Eu mesmo já fiz isso... — disse dando os ombros. — Embora ela fosse menor que agora... não que tenha crescido grandes coisas. — e olhou para a bolsa onde tinha o diário guardado. — Seria esse o livro que lê para ela?

Qüine voltou-se para ele, recaindo os olhos sobre a bolsa, removendo parcialmente o diário.

— N-Não. Isso é... o diário da minha mãe... que minha mãe me deixou. — disse com a voz mais baixa desde que começaram a conversar.

— É, 'tô sabendo. — e olhou para a bolsa onde Qüine guardara o diário. — O Kiki me explicou, e por onde o vejo está com isso em mãos. Isso é tão importante assim para que fique adiando assumir seu legado, garoto?

— Digamos que... — Qüine umedeceu os lábios. — Antes de assumir um legado, eu preciso conhecer a quem pertenceu. — e se voltou para Merikh que o observava ainda sério. — Eu já ouvi muitas histórias por aqui sobre... — ele engoliu a seco ao pensar naquilo. — Sobre meu pai.

— Como o quê? — questionou Merikh fitando-o.

Houve uma hesitação por parte do garoto, chegando a ficar com a voz trêmula nas primeiras frases quando tentava explicar. O próprio Merikh conhecia a história de Saga, sendo boa parte pelo próprio Kiki, e do quanto o ariano se impressionava pela semelhança do garoto com o pai e o receio de quando ele viesse para o Santuário e os comentários que poderiam gerar sobre.

— A-Aqui... — dizia batendo de leve na bolsa onde estava o diário. — E-Eu... Eu conheço um lado do meu pai que pareceu se perder. Pode parecer tendencioso, mas é onde minha mãe comenta da admiração que tinham por ele, de quando passava por Rodório e todos falavam com ele, de como o admiravam, como era respeitado por aprendizes e Cavaleiros sob sua liderança... — dizia Qüine empolgando-se em seu orgulho e sorrindo sob o olhar silencioso de Merikh, até que pareceu murchar no instante seguinte. — Mas tenho percebido alguns olhares, principalmente de comandantes da guarda mais antigos que o conheceram... ou de aspirantes que comentam sobre o período de 'trevas' que se instaurou aqui no Santuário.

— Não deveria se incomodar por isso. — disse Merikh quebrando seu silêncio após breves minutos. — O seu pai, Saga de Gêmeos, não foi o grande vilão, mas uma vítima, e ele encontrou sua rendição na última Guerra Santa contra Hades...

— E-Eu sei. O Kiki... e-ele me disse isso. — comentou Qüine com a voz levemente embargada. — Ele conversou muito comigo em Jamir antes de vir para o Santuário, preparando o meu psicológico para tudo isso. Dos possíveis comentários, principalmente. — forçou-se a rir, mas apenas suspirou. — Ele hesitou muito para que eu viesse para cá até que estivesse preparado porque não se pode evitar que falem sobre isso mesmo após tantos anos.

Até tentou rir daquilo, mas fracassou. Refugiou-se na água e bebendo todo o restante que tinha num único gole. Merikh, por outro lado, não desviou os olhos dele, apenas repousou a mão sobre as dele em sua perna.

— Impressão minha ou acha que está destinado a trilhar o mesmo caminho que seu pai? — indagou Merikh olhando para Qüine que mantinha o olhar parado num ponto qualquer. — Não é porque é filho que está destinado a seguir o caminho que seu pai tropeçou, garoto... ou que seu tio Kanon escolheu em uma parte de sua vida. — comentou Merikh levantando-se e colocando novamente seu elmo. — Você tem pais a quem apenas tem a se orgulhar. Lembre-se disso.

Qüine ficou a olhá-lo, com certa surpresa, por ouvir aquilo, mas assentiu forçando um sorriso. Agradeceu silenciosamente e o Cavaleiro de Câncer forçou a sorrir.

— Um adendo. — e chamou a atenção de Qüine que levantou os olhos para fitá-lo. — Se tentar alguma coisa com a mascotinha, juro que mando sua alma em pedaços a ser recolhido pelas 108 Estrelas Malignas de Hades por todo o Submundo! — e seguiu adiante, deixando um Qüine com os olhos arregalados para trás, embora ouviu o garoto rir em seguida, fazendo o Canceriano levantar a mão em despedida.

O jovem geminiano olhou para a pulseira por alguns minutos e pensando no que Kiki havia dito sobre sua semelhança com seu pai, com exceção dos cabelos de Saga serem acobreados e de seu sorriso ser o de sua mãe.

Quando olhou para o anfiteatro e observando alguns poucos aspirantes ainda treinando, lembrou-se da passagem do diário sua mãe comentar o dia que os dois irmãos disputaram a Armadura Sagrada de Gêmeos, da interferência dela que gerou uma mágoa com seu tio Kanon por um longo tempo.

Ao pensar naquilo, sentiu-se levemente desconfortável, sentindo uma tensão na altura da nuca que o fez respirar pesado. Jogou o corpo para frente apoiando-se nas pernas. manteve-se assim por alguns instantes e se levantou, olhando em direção ao horizonte e o entardecer rubro que fez lembrar alguém, principalmente de que ficou de buscar um livro novo para ler naquela noite para certo alguém.

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Quando Merikh ganhou o pátio de Áries encontrou Kiki próximo à entrada da primeira Casa Zodiacal com sua indumentária sagrada, mas com seu elmo retraído, deixando seus cabelos soltos.

Não usava uma capa às costas como o Cavaleiro de Câncer, mas um saiote presa internamente à cintura da armadura em um tecido fino quase transparente. Uma imagem rara naqueles últimos tempos uma vez que estava sempre com vestimentas civis típicas de seu povo enquanto restaurando as armaduras.

Há poucos instantes o Ariano estava a observar o seu mais novo irmão no anfiteatro a conversar com o Cavaleiro de Ouro, estudando o comportamento de cada um e pressentindo uma leve perturbação em Qüine.

Entretanto, ao ver o companheiro cumprimentá-lo com seu jeito seco da qual estava acostumado, sorriu de volta já mediante às palavras de Merikh.

— Kiki de Áries. Eu perguntaria sobre a nossa mascotinha, mas o depravado de seu irmão me contou que não teve grandes avanços. — comentou ele parando diante de Kiki e vendo-o suspirar com um semblante preocupado. — É tão grave assim desta vez?

— Não exatamente. — comentou Kiki. — Apenas que a sua recuperação está sendo mais demorada que o de costume. certamente por conta do veneno. — explicou enquanto via o canceriano assentir em entendimento. — Qüine tentou pescar algo de você?

— Como se fosse conseguir alguma coisa. — disse dando os ombros, deixando Kiki soltar um riso tímido. — Ele está preocupado com ela, e muito cansado também, mas... — coçou o queixo, caminhando alguns passos. — Ele me parece cismado com outras coisas também.

Aquilo preocupou Kiki, franzindo o cenho para Merikh e questionando sobre o que seria, sendo devolvido com outra questão do canceriano sobre até onde tinha falado sobre o pai do garoto. O lemuriano soltou um longo suspiro.

— Não muito. Apenas o que ele precisava saber. — comentou Kiki olhando para Merikh. — Não queria que ele chegasse aqui e soubesse uma história deturpada dos acontecimentos, ainda que seja impossível evitar isso.

— Ele tem medo, Kiki. — respondeu o Canceriano objetivamente. — Medo das histórias que contam sobre seu pai. Sabe o que contam sobre o mito da 'estrela do conflito', da dita 'Maldição de Gêmeos'... — e viu Kiki fazer uma careta ao ouvir aquilo. — O quê? São as histórias que contam ao longo dos séculos. Seja quem for herdar o legado, seja ele ou qualquer outro deve estar ciente disso.

— Eu odeio quando falam isso. — comentou Kiki. — e meneou negativamente. — Conversei tanto sobre isso com ele.... Não entendo o porquê de Qüine achar que pode ser destinado à maleficência de Gêmeos.

— Não o culpo por isso. — disse o Canceriano sério. — Porém, que moral eu tenho em dizer qualquer coisa dado meu legado.

Kiki se voltou para o Canceriano que olhava em direção ao horizonte com uma expressão mais dura que seu normal, transformada sempre que tocava naquele assunto.

— Merikh, não tem por que se preocupar com isso. — comentou Kiki buscando se aproximar, recuando quando percebeu o olhar do Canceriano ganhar um brilho sinistro.

— Sei o que vai dizer. Que ele conseguiu sua rendição e que Athena perdoou seus crimes, porém ele não foi uma vítima, mas o algoz, Kiki. O Saga foi um joguete divino, mas ele... — disse entre dentes, com certa raiva em seu tom de voz. — Ele seguiu esse caminho por sua escolha, e eu não pretendo herdar esse legado. Eu não quero carregar o título do qual ele se orgulhava ter. Não quero ser a 'Máscara da Morte'.

Kiki nada disse senão observá-lo passar por ele e avançar pela Casa de Áries, seguindo em direção do terceiro Templo Zodiacal.

Aquele herdado de seu pai.


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Notas finais do capítulo

Muitos tem perguntando acerca de Antares sobre o que ela tem e do porquê isso acontecer com ela. Calma! Não pretendo matar a personagem. Faz parte de sua história narrada em uma novel somente dela e em breve verão por aqui. Além do mais, isso ajuda na construção do próprio Quine.

E quanto ao Merikh de Câncer, o que acharam? Surpresos de quem é ele? XD
O seu nome é uma variação de 'Mirrikh' (مريخ), na Arábia ou Persa é o nome para o planeta Marte. Possivelmente seu significado é algo próximo à 'morte', 'abate'.

Outros personagens Dourados surgirão nessa geração. Seria uma futura fic? Certamente! Por hora, Memórias fica um complemento para 'Initiu Legends' e um gaiden futuro somente para Van Quine.



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