Selene acordou estranhando onde estava. Não era sua casa, mas um lugar ligeiramente mais frio e seus olhos captaram primeiro uma parede e não sua janela habitual. Isso fez com que acordasse assustada no primeiro instante e levantar-se assustada, até se deparar com Mu no quarto. Ele carregava uma bandeja com um jarro e uma pequena bacia, ambos de barro, com água, um copo e panos limpos. Encheu o copo com água e entregou à amiga antes de se sentar numa cadeira que havia ao lado da cama.

— Que bom que acordou. Estávamos preocupados com você. — comentou Mu observando-a, ajeitando sua almofada para que recostasse. — O mestre Arles ficou com você a noite toda! Como está se sentindo? — havia um tom de preocupação na voz do garoto.

— Ainda... nauseada. — respondeu Selene com a voz levemente enjoada. Somente depois notou que estava sem a máscara, encontrando-a no criado-mudo ao lado junto com a badeja. Estava com o olhar abatido e um tanto pálida. — O que... que foi que... aconteceu? Lembro que estava... conversando com Aiolos e... e de repente...

— Alguém a encontrou caída num dos corredores aqui próximo às Casas Zodiacais e a trouxe para cá. — disse Mu, tomando o copo e perguntando se ela queria mais água e a servindo de mais um pouco. — Você teve uma noite muito inquieta, delirando, falando coisas por coisas... Não se lembra de nada?

Selene apenas meneou que não. Não havia nada que se lembrasse, senão o grito que ecoou em sua mente — ou foi ela quem havia gritado? — e tudo nublar-se diante de seus olhos. Nada mais que isso conseguia se lembrar senão acordar àquela hora. Nem mesmo tinha ideia do tempo e espaço. Parecia ter adormecido por século ou alguns segundos se não fosse o comentário de Mu sobre o mestre Arles ter estado ao lado dela toda àquela noite.

Sentia ainda a cabeça dolorida, como se tivesse batido contra uma parede ou alguém a pressionasse violentamente. Bebia mais da água quando ouviu duas batidas na porta, fazendo ela e Mu se virar e encontrar Arles com um sorriso sereno em seu rosto. Mu se levantou e intencionou sair, mas foi impedido.

— Não, Mu, fique. O que tenho a dizer à Selene também diz respeito a você. — disse sentando-se à cadeira cedida por Mu que acomodou-se à beira da cama, tendo o cabelo bagunçado pela garota. — Estive até há pouco com Grande Mestre e concordamos que você, Selene, deva iniciar um novo treinamento e Mu poderá ajudá-la com isso. — o garoto piscou aturdido, trocando olhares com sua amiga e irmã. — Não se assuste. O Mu já se encontra num estágio avançado, treinado com Shion desde muito jovem. Trata-se de uma técnica para ajudá-la a fechar sua mente, Selene, para ajudar com sua psicocinese.

Mu pareceu gostar da ideia, voltando-se para Selene que, embora forçasse um sorriso, tinha uma expressão preocupada. Isso era notado pela tensão demonstrada ao fechar as mãos e puxando o lençol que a cobria para junto dela, encolhendo-se na cama. Arles observou isso, tocando em seu ombro e acariciando de leve, chamando por sua atenção.

— Não tem pelo que se preocupar, Selene. Acontece que sua psicocinese tem desencadeado com mais força agora, talvez por estar fragilizada demais com o que aconteceu ontem e permitiu que isso acontecesse. — disse ele tentando tranquilizá-la.

— Eu não estou ficando louca, estou? — indagou a garota com olhar suplicante para Arles, marejados. — E-Eu não quero ferir ninguém...

— E não vai! — disse Arles de imediato, sorrindo de modo confortante para ela e fechando momentaneamente seus olhos, mas abrindo em seguida. — Deve confiar em você, Selene. Lembra-se em Jamir?

Sim, ela lembrava de quando se permitiu liberar seu poder e feriu Arles naquele momento, de sua fuga e como superou isso. Era um 'mais do mesmo', mas agora ela tinha mais ciência de suas habilidades.

— Vou pedir apenas que fique aqui em Áries. Ficarei mais tranquilo sabendo onde está. — aconselhou ele, vendo-a assentir. — Está dispensado de seus treinamentos e já deixei as Amazonas avisadas de sua condição, embora nem foi tão necessário. Descanse por hoje. Tão logo se recuperando, podemos iniciar os treinamentos. Para isso, é preciso ter sua mente relaxada! — e se levantou, beijando-a na testa.

Ela concordou, sorrindo moderadamente. Observava-o se levantar e chamar por Mu para fora do quarto para conversar. Deixou seu corpo deslizar na cama e soltou um suspiro, olhando para a janela do outro lado e em direção à subida das Doze Casas. Se todos já tinham conhecimento, como Saga estaria sabendo do que aconteceu?

O dia seguiu arrastado aos olhos de Selene, restringindo-se a ficar no quarto. Apenas pediu ao Mu, através de Aelia, para buscar uma muda de roupa e um bauzinho onde guardava alguns objetos pessoais como tinteiro e seu diário, onde passara o resto da manhã e as primeiras horas da tarde escrevendo algo até que se levantou para comer um ensopado. Ainda se sentia muito enjoada, com ânsia de vômito — algo que aconteceu durante seu mal-estar na madrugada.

Após um breve descanso, uma vez que se sentia ainda fraca, levantou-se para um banho, vestiu sua máscara e seguiu para a sala principal do templo onde encontrou Mu corrigindo algumas armaduras. Passara todo um dia fechada naquele quarto e talvez ali a distraísse em vez de ficar ruminando aqueles pensamentos, ainda que tivesse outros interesses enquanto estivesse ali.

Uma grande verdade é que ele esperava ao menos que passasse por ali, uma vez Áries era a primeira Casa Zodiacal.

Selene estava distraída trabalhando com o pó de estrelas, derramando-a a última porção moderadamente nas fissuras de algumas armaduras. Estava ligeiramente distraída quando pressentiu algo, no mesmo instante que ouviu passos ecoando pela casa e fazendo-a levantar a cabeça. Esperava apenas dois cavaleiros passarem por ali, Aiolos de Sagitário e Saga de Gêmeos, sendo que esse último tinha seu interesse particular. Porém, o viu foi um homem diferente da qual desconhecia até então, cruzando com seus olhos claros quase esbranquiçados e pele bronzeada típico de pessoas do mediterrâneo.

— Ora essa... vejo que está melhor. — disse ele com forte sotaque italiano observando Selene, agachada, esboçando um sorriso malicioso. — Como se sente?

— Ahn, bem, obrigada por perguntar. — respondeu ela com estranhamento, levantando-se. Estava sozinha na sala, pois Mu havia se retirado para buscar mais material na outra sala. — Por um acaso foi...

— Eu que a encontrei caída a trouxe para cá? Sim, com ajuda de alguns soldados que a reconheceram ser uma irmã ou algo assim do garoto que fica aqui... — dizia olhando para o lado, em direção aos fundos onde surgia Mu que trazia um saco com pó de estrelas e cumprimentando o homem com aceno. — Estava inconsciente quando a encontrei.

— Obrigada! — agradeceu Selene juntando as mãos frente ao corpo e curvando-se discretamente em agradecimento. — Estou melhor. Grata por perguntar. — e ficou um breve silêncio, com ambos se encarando.

— Bom, não vou atrapalhá-los, apenas seguir para a Casa acima. Permitam-me...?

O garoto assentiu, depositando o material no chão. Selene acompanhou-o atravessar a Casa de Áries. Selene fechou o tampo da urna e se sentou, engolindo a seco e pedindo uma água a Mu que a serviu de imediato e perguntando se estava bem e que fosse deitar.

— Não, está tudo bem. Foi um... leve mal-estar. — disse bebendo a água. — Quem é ele? Achei que ninguém podia subir para as Casas se não fosse um Dourado.

— Sim, é verdade, exceto se seu antigo guardião conceder as honras reconhecendo aquele como seu sucessor... — dizia, apontando para si em seguida. — ... como eu, por exemplo. — disse o garoto apanhando de volta as ferramentas e uma ombreira que havia sido separada e iniciando a reparação. — O Mestre Shion me concedeu Áries como moradia e reconhecendo-me como seu sucessor do primeiro Templo Zodiacal, mas disse que ainda preciso estar mais bem preparado... — Mu olha em direção da urna no pedestal num canto da casa, frente à parede talhada com a insígnia da constelação. — ... embora a armadura me reconheça.

— Entendo. Então um outro de quem Aiolos me falou... Shura, também teve concessão de ocupar uma das Casas Zodiacais? — indagou Selene voltando-se a se sentar e remexer numa das peças da armadura da qual trabalhavam.

— Não exatamente. Ele pediu acesso somente uma vez por conta de uma caverna próxima à Casa Zodiacal de Capricórnio. Possivelmente por conta do rio que cruza mais abaixo da montanha... bem mais cá para trás... para usar de treinamento. Disse que se sentiria mais seguro lá. — disse Mu apontando para os fundos de Áries, de modo a mostrar, hipoteticamente, um riu que passava próximo ao Monte Zodiacal, da qual Selene vi somente a partir de Sagitário devido a curva que fazia. — Parece que seu nome foi dado pelo seu antigo mestre que teria sido salvo ou foi aprendiz, algo assim. — explicava, mostrando-se confuso, mas logo dando de ombros. — Enfim! Parece que herdou dele uma técnica secreta da qual ele jurou um dia usar em nome de Athena. Por isos queria esse espaço para treinar.

Selene assentiu. Sabia sobre o lugar que Mu se referia, um lugar bem isolado, fazendo-a pensar qual seria a habilidade que deteria para fazê-lo treinar destacado de todos os outros. Pensava se não seria o ideal para ela com suas habilidades e visões que a deixavam simplesmente desnorteada. Ficara tão absorta que nem mesmo ouvira o que Mu disse, voltando-se para ele.

— Eu disse que me pareceu desconfortável com Mephisto. — disse Mu com um sorriso no rosto.

— Mephisto? Fala daquele homem que esteve aqui? Esse é o nome dele?  — indagou Selene surpresa e voltando-se para a saída de Áries. — Para qual casa Zodiacal ele seguiu?

— A quarta Casa Zodiacal. Ele foi pupilo do Cavaleiro de Ouro de Câncer, Nazar. — respondeu, percebendo pelo silêncio da ‘irmã’ seu desconhecimento do Cavaleiro mencionado. — Eu também não o conheci. Era um Cavaleiro de Ouro que saiu em missão pelo Santuário há uns 20 anos, ao que parece. Ele foi mestre também de Sólon, também mestre de Saga de Gêmeos. — respondeu com naturalidade. — Aliás, foi Saga quem o trouxe quando voltou da Itália.

Selene assentiu, olhando para as peças à sua frente e para a saída de Áries, ainda notoriamente incomodada. Mu corrigiu a peça da armadura, e não podia ignorar a inquietação da irmã ao seu lado após dizer aquilo.

— Normalmente as pessoas têm essa reação com os Dourados de Câncer, Casa da qual Mephisto talvez venha herdar em breve.  — o garoto riu, conseguindo a atenção da jovem. — A técnica deles tem envolvimento direto com o Submundo. São capazes de ir e vir ao Yomotsu Hirasaka, assim como o Patriarca anterior ao atual, também mestre do Senhor Shion, e lemuriano. — disse com tom orgulhoso, mas isso não pareceu tranquilizar Selene. — O que foi? Não gostou dele, né?

— Não é que não gostei dele... — Selene continuava olhar para a saída de Áries — Algo nele me incomodou e não sei dizer o que.

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Mephisto atravessou Áries calmamente, subindo as escadarias até Touro quando interrompeu seus passos, olhando para trás com um sorriso cínico estampado em seu rosto, assentindo por algo que passava em sua mente.

A jovem que encontrara, era realmente bonita, de rosto e corpo. Havia encontrando-a sem sua máscara, caída ao seu lado, a mente bem perturbada pelo que pôde notar, mas com algo que chamou bem sua atenção.

Riu de si mesmo pela perversidade que passou por sua mente e jogando uma pedra para o alto e apanhando no ar. Seguiu seu caminho e passava por Gêmeos quando viu Saga na entrada, olhando para baixo e cumprimentando o colega italiano. Forçou um sorriso, mantendo o semblante levemente preocupado.

— Encerrando o treinamento por hoje, Mephisto? — indagou Saga casualmente.

— Se chama isso de treino... Ontem ainda foi divertido as competições no anfiteatro, mas hoje achei um tanto entediante. — disse com indiferença. — Não vejo a hora do mestre anunciar-me como o Dourado de Câncer.

— Você e outro a quem chamam de Shura, mas isolado na Fenda de Capricórnio. — comentou Saga se voltando para Mephisto que assentiu. Ambos conheceram o espanhol de expressões sérias. — Certamente ele aguarda por algo para anunciar os dois ou espera mais alguém.

— Que seja! — deu os ombros — Desde que seja o quanto antes e que me envie para uma missão... — respondia, abrindo um sorriso — ... que, ao menos, me dê pouco mais diversão. Sinto falta disso.

Aquelas palavras chamaram a atenção de Saga que percebeu um sorriso malicioso no rosto do italiano.