Universo Em Desequilíbrio escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 8
A turma da Magali


Notas iniciais do capítulo

Um pequeno aviso: esse capítulo pode ser meio nojento pra quem tem estômago fraco. Não leiam enquanto estão comendo.



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Quando elas chegaram ao ponto de ônibus, já tinha um amigo esperando. Era um rapaz pouco mais alto que elas. Seus cabelos estavam ensebados e pelo visto não eram penteados há dias. Suas roupas estavam em um estado tão deplorável que pareciam terem sido tiradas do lixo para serem usadas novamente. O pior era o seu cheiro, que parecia uma combinação de algo podre misturado com aquela água suja que fica no fundo das lixeiras.

Embora as outras pessoas procurassem manter distância daquela figura, Magali e Denise não mostraram nenhum receio em falar com ele.

- E aí, que cara de bunda é essa? – Magali perguntou ao ver que o rapaz estava com a aparência pior do que de costume.
- Minha mãe brigou comigo...

Denise acabou achando graça.

- Por quê? A catinga do seu sovaco matou as plantas dela outra vez?
- Não, é que ela foi pegar meu casaco e caiu um rato morto de dentro dele.

Magali torceu o nariz de nojo.

- E como é que esse rato foi parar ali?
- Vai ver ele tava procurando pelo sanduba que eu pus no bolso outro dia.
- Fala sério, tu é porco demais, caramba! – Magali falou sentindo o estômago embrulhando. Quando o ônibus chegou e os três estavam subindo, ela o ameaçou. – Se você peidar perto de mim outra vez, eu arrebento a sua cara!
- Ah, poxa! São só gases!
- No seu caso, são gases venenosos! – Denise falou apoiando a amiga.

Os passageiros ficaram inquietos e receosos quando aqueles três jovens com aparência de delinqüentes embarcaram. Para seu alívio, eles não pareciam com vontade de causar nenhum problema e foram se sentar no fundo, perto da porta de desembarque.

Cascão ia olhando a rua pela janela, imerso em seus pensamentos. Por que as pessoas se preocupavam tanto com sua higiene pessoal? Todo mundo implicava, fazia comentários, tampava o nariz quando ele passava e muitos até evitavam comer quando ele estava por perto. Pelo visto, era difícil as pessoas o aceitarem tal como ele era e se não fosse pela sua turma, ele estaria totalmente isolado.

Denise e Magali estavam em silêncio, aparentemente não se importando com seu cheiro. Seus amigos não se importavam com o que ele vestia ou com sua higiene pessoal apesar de alguns comentários e piadas aqui e ali. Ele também usava roupas escuras, que parecia ser uma espécie de marca registrada da sua turma. Em um dos seus bolsos, ele levava uma latinha de tinta spray que usava para pixar os muros do bairro, deixando ali sua marca pessoal. Ele era responsável pela demarcação de território da sua gangue.

Uma coceira dentro das suas calças começou a incomodá-lo e ele se coçou por cima do tecido sem a menor cerimônia. Como a coceira não tinha passado, ele tomou uma medida mais drástica e enfiou a mão dentro da calça, se coçando demoradamente e fazendo uma expressão de alívio. Os outros passageiros olhavam enojados e as mulheres viraram o rosto para o outro lado. Que garoto mais indecente! Quando terminou, ele checou as unhas grandes e sujas, tirou alguns pelinhos que tinham ficado entre elas e depois deu uma cheirada nos dedos.

De repente, seu estômago roncou alto e ele lembrou de que não tinha almoçado direito por causa do falatório da sua mãe. Então ele tirou do bolso um sanduíche parcialmente comido, aquele que o rato morto certamente devia estar procurando, e começou a comer despreocupadamente. Apesar de estar no seu bolso há quatro dias, o gosto ainda estava bom, embora levemente azedo.

E, como se aquilo não fosse nojento o bastante, ele estava pegando o sanduíche com a mesma mão que tinha usado para se coçar anteriormente.

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- Véi, na boa! Tô muito legal não! – Cascão falou com o rosto levemente esverdeado e esfregando o estômago que embrulhava ameaçando expulsar o seu café da manhã.

O mal estar ali era geral. Magali tinha ânsias de vômito a toda hora, Cebola mal conseguia olhar para o vídeo, Astronauta e Zé Luis viraram o rosto para o lado, enojados e Xabéu fingiu estar ocupada com outra coisa só para não ter que olhar aquela cena repulsiva.

Quando o mal-estar passou, Cascão não conseguiu conter a decepção ao ver que seu duplo mais parecia um mendigo.

- Fala sério, “aquilo ali” sou eu? Credo! Se a Cascuda me vê desse jeito, ela me dá um chute na hora! Que cara mais nojento!
- Parece que nesse mundo tá tudo virado do avesso e de cabeça pra baixo. – Magali falou também desapontada com o seu duplo.
- Bem... ainda tem o meu duplo e eu sei que esse não vai decepcionar. Aposto que nem essa Magali das trevas deve ter coragem de ir pra cima dele.

Paradoxo acompanhava a conversa em silêncio, achando melhor deixar que eles vissem os fatos com os próprios olhos. Falar não ia resolver nada.

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À medida que o ônibus andava, a paisagem foi mudando até que eles chegaram no ponto final, que ficava na periferia do bairro. Eles desembarcaram e tiveram que andar por mais quinze minutos até chegarem a um ferro velho que pertencia ao tio de um dos membros da gangue.

No meio do ferro velho, havia um trailer relativamente bem conservado que eles usavam para se reunir. O trailer estava com a lataria repleta de pichações, trabalho do Cascão, e havia um grande caixote velho que servia de mesa e algumas cadeiras que Cascão tinha encontrado no lixo onde o pessoal se sentava.. A turma toda já estava reunida só esperando por eles.

Um rapaz alto, forte e com cabelos loiros cortados em estilo militar veio recebê-las. Ele parecia ter o dobro do tamanho da Magali e tinha um aspecto mal encarado que metia medo em qualquer um.

- Vocês estão atrasadas... – ele falou com a cara fechada.
- Vai se foder, imbecil! Eu chego na hora que eu quiser. E aí, o que tem pra mim?

Ele levou um susto, perdeu toda sua pose de valentia e começou a gaguejar.

- B-bem... o-o F-Franja...
- Fala direito ou eu enfio a mão na sua cara!

Todos ficaram tensos ao ver que ela parecia estar de péssimo humor naquele dia.

- Credo, o que deu nela hoje? – perguntou o namorado da Denise, um rapaz alto, dentuço, bonito e com físico forte e atlético.
- Uma patricinha cismou de arrumar confusão com ela hoje, dá pra acreditar? – ela respondeu falando bem baixo.
- Vixe! Essa tá marcada!

O medo de levar um soco acabou falando mais alto e finalmente Tonhão conseguiu se livrar da gagueira.

- O Franja conseguiu criar aquele aparelhinho que você pediu.

O rosto dela se iluminou.

- Ah, bom! Agora tá melhorando. Como ficou?
- Ô Franja, mostra pra ela!

Outro rapaz com o cabelo cortado num moicano em estilo punk levantou-se do seu lugar e abriu uma caixa onde tinha vários anéis.

- Você pediu algo bem discreto, então eu criei em forma de anéis. Ninguém vai perceber.

Os anéis não eram exatamente bonitos, pareciam ter sido feitos com restos de chips de computador, mas pelo menos eram discretos o suficiente. E ela também não estava preocupada com beleza. Aquilo era para patricinhas frescas e fúteis.

- Deixa eu ver... – ela foi provando cada dedo até colocar no médio e contemplou o resultado. – Como é que isso funciona?
- É simples. Coloca isso perto do lacre e pronto. O lacre se solta do produto facilmente. O anel funciona com bateria de relógio 3V.
- É isso aí! Agora sim vai ficar mais fácil roubar a mercadoria das lojas, hahaha! Quero todo mundo usando essas belezinhas!

Enquanto Franja distribuía um anel para cada membro da gangue, Magali resolveu tratar de outros assuntos importantes.

- Ô Tonhão! Por acaso aquele Zé Mané pagou o dinheiro que devia?
- Tá aqui. – o grandalhão respondeu estendendo para ela algumas notas e moedas.  
- Cada um vai botando aí o que conseguiu nessa semana. E não tentem me passar a perna, senão...

Eles foram colocando sobre uma mesa improvisada algumas carteiras, anéis, correntes, relógios e celulares enquanto Magali ia checando os produtos com a ajuda de Denise. Titi colocou na mesa aparelhos de CD para carros e também dois GPS, deixando-a satisfeita.

- Aê! Mandou bem! Isso aqui vai dar uma nota!
- Foi fácil! Até que seria legal se a gente pudesse roubar um carro de verdade!
- Segura a onda aí que a gente não tá preparado pra isso. De que adianta roubar um carro e não ter o que fazer com ele? Por enquanto continua só arrombando os carros que é mais fácil.

Titi voltou a se sentar perto da Denise, colocando um braço ao redor do ombro. Ele era especialista em arrombar carros, sendo capaz de driblar qualquer sistema de alarme e sabia até fazer ligação direta.

Denise também colocou um bonito relógio sobre a mesa, que Magali o estudou cuidadosamente.

- Puta que pariu! Quem daria 490 reais num relógio? – ela bufou ao ver a etiqueta do preço. - E aí, foi muito difícil?
- Foi, né! Nunca é fácil, mas a Denise aqui sempre dá um jeito!
- Beleza. Esse eu já sei onde vender, vai ser fácil.

Ela separou o dinheiro e a mercadoria. O dinheiro foi dividido ali mesmo enquanto a mercadoria teria que ser vendida. Após tirar sua parte (que não foi nada pequena) e guardar o relógio que ia ser vendido naquela mesma tarde, ela distribuiu o restante para os outros. Como a sua parte tinha sido muito boa, ela ordenou que vendessem a mercadoria e dividissem o pagamento entre eles.

Depois de dividir o saque, alguém colocou sobre a mesa baldes de frango frito, duas caixas de pizza e várias latas de cerveja. O duplo de Magali comia frango frito avidamente enquanto tomava uma lata de cerveja e arrotava sonoramente, arrancando risos dos colegas.

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- Credo! Ela está comendo aquelas coisas super gordurosas? E tomando cerveja? Que horror!!! O quêeeeeee? Ela tá fumando? AIMEUCORAÇÃO! Eu acho que vou morrer! Meu coração não agüenta isso!
- Calma, Magá, respira fundo aê! Vamos, lá, inspira, expira, inspira, expira... – Cascão falou tentando evitar que a amiga tivesse um enfarto fulminante.
- Eu ainda não vi o meu duplo. – Cebola falou já ansioso para conhecer seu outro eu. Paradoxo esclareceu aquela dúvida.
- Não se preocupe. Você irá conhecê-lo quando sua amiga for para a escola. Eles estudam na mesma turma.
- Cara, mal posso esperar! Aposto que ele vai enfrentar essa Magali trevosa e dar uma boa lição nela!

Após certificar-se de que Magali não ia ter um colapso nervoso, Cascão falou para o amigo.

- Só se ele for doido! Além de enfrentar aquela Magali, ainda tem o Tonhão! Cara, acho que com um tapa ele quebra o pescoço de qualquer um!
- E quem disse que eu uso força bruta? O meu duplo vai desbancar esses delinqüentes com a inteligência!

Xabéu acabou achando graça daquele excesso de auto confiança.

- O que te faz pensar que ele vai enfrentar essa gangue?
- Ué, eu não enfrentava a Mônica? Perto dela, esses aí são fichinha! Vocês vão ver! A essa altura, ele deve estar bolando um plano da hora pra acabar com esses encrenqueiros! Afinal, o dono da rua tem que manter tudo em ordem!

O restante deu de ombros e continuou assistindo aos acontecimentos. Até que seria mesmo bom se aparecesse um herói para dar um jeito naqueles desordeiros.

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Levou todo o fim de semana até que ela conseguisse arrumar seu quarto e colocar tudo em ordem. Enquanto tirava os pertences das caixas e guardava nos armários e gavetas, Mônica foi se inteirando da sua vida naquele mundo paralelo.

Foi uma grande surpresa encontrar várias medalhas e troféus. Alguns eram de taekwondo. Então ela lutava aquilo? As fotos, faixas e kimonos diziam que sim. E pelo visto, ela era excelente lutadora.

- Puxa... será que eu sei mesmo lutar isso? Que coisa!

Também havia outros prêmios e condecorações.

- “Prêmio de aluna modelo” Eu? Nossa! E esse aqui: “Melhor líder de torcida do colégio...” – aquilo sim foi uma surpresa, já que em seu mundo original ela mal conseguia sacudir um pompom sem ferir alguém e só fazia parte da torcida por ter força suficiente para ser a base da pirâmide.

Outro prêmio lhe chamou a atenção, lhe enchendo de calafrios. Era um concurso de pianistas. A imagem do piano da sala apareceu diante dos seus olhos, lhe enchendo de pavor. Ela sequer sabia dedilhar aquele instrumento, quanto mais tocar a ponto de vencer um concurso! Como ela ia fazer quando seus pais lhe pedissem para tocar algo?

- Ai, eu vou ter que dar um jeito nisso! Hum... esse prêmio aqui parece ser legal. Então eu fiz teatro também? E aula de canto? Ih, quem dera! Olha só, até aula de dança eu fiz! E fui a primeira da turma? Só nesse mundo mesmo!

Ela olhou seus álbuns e achou bem estranho ver a si mesma e seus pais naquelas fotos e não ter lembrança alguma.

- Entra! – ela falou quando ouviu alguém bater na porta.
- Oi, lindinha. Ah, está guardando suas medalhas? São lindas, não são?
- Pois é mãe. Hã... só que eu fiquei com uma duvida aqui...
- Pode perguntar, querida.
- Por que vocês me colocaram para aprender taekwondo?

Apesar de ter estranhado um pouco a pergunta, Luisa sentou-se na cama e explicou a filha como ela era nervosa e temperamental na infância, sempre reagindo de forma exagerada a qualquer provocação e batendo nos colegas de escola. Nada daquilo era novidade para a Mônica. Ela mesma sabia o quanto tinha o gênio difícil. A novidade era que naquele mundo, seus pais se preocuparam em trabalhar aquele lado ruim da sua personalidade, arrumando formas de ajudá-la a lidar com seu temperamento explosivo de forma mais construtiva.

Foi por isso que eles a matricularam nas aulas de taekwondo, dança, natação, entre várias outras. Essas aulas ajudavam a dissipar a energia extra, a ser mais calma, disciplinada, paciente e a não se irritar por qualquer provocação. Eles realmente se preocuparam em desenvolver seus talentos! Em seu mundo de origem, seus pais fizeram muito pouco a esse respeito, deixando que ela resolvesse seus problemas de temperamento sozinha.

- Por que me perguntou isso? – a mulher quis saber quando terminou as explicações.
- Er... acho que me deu assim um branco, sabe... aí eu não lembro de algumas coisas da minha infância.
- Tudo bem, se quiser saber algo, pode perguntar que não tem problema. Ah, não se esqueça de que as aulas começam na segunda feira! Esteja preparada para o seu primeiro dia de aula no novo colégio. Nossa, vai ser tão emocionante!
- Ah, vai sim!

Ela sentiu um frio na barriga ao imaginar como seria freqüentar seu colégio. Não, aquele não era seu colégio. Se o homem do jaleco branco estava certo, então ninguém ali a conhecia. Para todos os efeitos, seria como começar em um colégio totalmente novo, algo que Mônica nunca tinha experimentado. Durante sua vida inteira, ela estudara na mesma escola, com os mesmos amigos e sempre vendo as mesmas caras.

Outra coisa que a deixava empolgada era saber que em breve ia conhecer o duplo do Cebola. Como ele seria nessa nova realidade? Será que iria se apaixonar por ela? Até que seria emocionante poder namorar com o duplo do Cebola. Por que não? Afinal, era o Cebola, então não podia contar como traição, podia? Assim, quando ela fosse embora, poderia deixar seu duplo já namorando com o Cebola alternativo e tudo ficaria bem.

- Aposto que vai até ser mais fácil porque o Cebola daqui não vai ter aquele mimimi de me derrotar. Puxa, que legal!

Uma foto sua usando kimono e derrotando um adversário lhe fez pensar em uma coisa. Em seu mundo de origem, ela era conhecida como a Mônica esquentada, marrenta e que nunca levava desaforo para casa. Por causa diso, as pessoas não conheciam seu lado meigo e delicado. Talvez fosse hora de tentar ser diferente e aquela era sua chance de construir uma nova identidade do zero e daquela vez, ela ia fazer tudo direito.

Apesar da empolgação, ela ainda se preocupava com a Magali e ficou imaginando o que iria fazer para ajudar sua amiga. Talvez uma boa conversa franca resolvesse tudo.


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