Universo Em Desequilíbrio escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 31
A origem de todo o mal




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À medida que Magali foi falando o que aconteceu, Quim balançava a cabeça negativamente.

- Por que você foi fazer isso? Não teria sido melhor você vir pra padaria? Eu ia te arranjar alguma coisa!
- O seu Quinzão não gosta que você me dá coisas e meu dinheiro tava pouco!
- E agora o Cebolinha tá te ameaçando?
- Tá! Se eu não levar esses doces pro clubinho, ele vai contar pra todo mundo. Me ajuda, por favor! Eu prometo que não faço isso nunca mais, tá?
- Tá bom, eu te ajudo. Não vai custar nada mesmo. Depois eu vou ter uma conversinha com ele, isso não pode ficar assim.

Ele aproveitou que seu pai não estava olhando e arranjou para ela um prato daqueles doces especiais da sua padaria. Ela os levou correndo e durante o resto do dia, Quim não pensou mais naquilo achando que com os doces Cebolinha e Cascão iam ficar quietos. Mas não funcionou.

No dia seguinte, seu pai lhe chamou muito sério e falou com firmeza.

- Filho, de hoje em diante não quero que deixes a faminta ir para trás do balcão.
- Ué, por que pai? A Magali nunca fez nada de errado?
- Fez sim que seu Zeca me contou. Ele ficou muito chocado com isso e eu também estou.

Então seu pai lhe contou que Magali tinha roubado um pacote de biscoitos da loja do seu Zeca. Ele sabia disso, mas achou uma injustiça que Cascão e Cebolinha tenham comido tudo e ainda assim Magali acabou levando toda a culpa sozinha. Pelo visto, ninguém acreditou nela.

Então tudo pareceu desandar. Ela deu a maior surra no Cebolinha e virou o terror do bairro, sempre ameaçando a todos. E ele perdeu sua doce Magali.

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Depois de ouvir um grande sermão dos seus pais, o que foi totalmente em vão já que ela não ouviu nenhuma palavra, Magali trancou-se no seu quarto junto com Mingau, seu único amigo. Ela remoía a raiva daquele tal herói mascarado que tinha aparecido para complicar sua vida.

“Eu vou acabar com a raça daquele desgraçado! Ele não perde por esperar. que ódio!”

Além de ter sido suspensa, seu pais lhe deram ordens expressas para que ela ficasse longe da Mônica.

- Os pais dela são ricos. Já pensou se eles nos processam? – Seu pai falou muito zangado. – Magali, de hoje em diante você fique longe daquela garota.
- E pára de brigar na escola, que coisa! Por que você não pode ser como as outras garotas?

“Por que eu não posso ser como as outras garotas?” ela repetiu a pergunta mentalmente olhando pela janela. Não, aquilo não era mais para ela. Não havia mais como mudar. E nem dar uma merecida surra no Cebolinha ela podia mais. Longe da escola, era difícil encontrá-lo fora do horário de aula. Paciência. Quando sua suspensão terminasse, ela ia arrebentar a cara dele até deixá-lo cair no chão, igual tinha feito há alguns anos atrás. Todo aquele inferno que sua vida tinha se tornado era culpa dele.

Flashback

Aquele dia parecia normal e Magali estava assistindo ao programa do Ursinho Bilu com uma tigela de pipoca no colo e Mingau dormindo do seu lado. Foi quando sua mãe entrou na sala com uma cara muito zangada e se colocou na frente da televisão como sempre fazia quando queria conversar algo muito sério.

- Magali, você vai me contar agora mesmo o que andou aprontando!
- Aprontando o que, mãe? – a menina perguntou tremendo.

Ao invés de responder, Lili a pegou pela mão e as duas foram para a calçada. Assim Magali pode ver, em letras garrafais, o que estava escrito no muro da sua casa.

Magali é uma ladra.

Roubou coisas da loja do seu Zeca.

- Mãe...
- Isso é verdade filha?
- Não, claro que não! O Cebolinha inventou isso!
- E como você sabe que foi o Cebolinha quem escreveu no muro?
- Ele sempre escreve, mãe!
- Ora, vamos! Você cismou com o coitadinho e ele nunca te fez nada!

As duas voltaram para dentro, com Lili levando Magali pela orelha. Após várias perguntas, Magali acabou confessando o que fez e também contou que Cebolinha e Cascão acabaram comendo os biscoitos.

- Mesmo? Então vamos agora falar com os pais deles. Se isso for mentira, você vai ver só uma coisa!

Por um instante, ela pensou que aqueles dois iam se dar mal pelo menos uma vez. Só que tudo deu errado.

- Eu não fiz isso mãe! – Cascão se defendeu. – Aqui em casa sempre tem um monte de biscoito!
- Nem eu comi nada, eu julo! A gente nem sabia que a Magali tinha loubado esses biscoitos, a gente não sabia nada!

Não adiantou nada ela acusar. Os dois negaram veementemente e sem nenhuma prova, ela acabou passando por mentirosa além de ladra. Aquele tinha sido, definitivamente, o pior dia da sua vida. Primeiro ela levou muitas chineladas, depois ouviu um grande sermão da sua mãe.

- Magali, eu estou muito decepcionada com você, que vergonha! A gente deixa faltar alguma coisa por acaso?
- Desculpa, mãe! É que eu tava com muita fome!
- Fome? Você tem muita comida aqui em casa, a gente alimenta você muito bem! O problema é esse seu apetite enorme, não tem nada que te enche!  
- Mas...
- Não tem mas. Nós vamos agora mesmo para a loja do seu Zeca e você vai pedir desculpas para ele. E vou descontar o valor dos seus biscoitos na sua mesada.

Ela chorou, pediu, fez promessas e mesmo assim teve que passar a maior vergonha na frente do seu Zeca se desculpando por um roubo do qual ele nem tinha se dado conta. Depois disso, sua mãe a mandou limpar o muro da casa.

- Que não fique nenhuma marca de giz, ouviu?

Enquanto limpava, suas amigas passavam ali perto e Cascuda perguntou.

- Magali, é verdade que você roubou da loja do seu Zeca?
- Que vergonha! – Marina falou também chocada.
- Mas eu nem comi nada, foi o Cebolinha e o Cascão!
- Você tá acusando o Cascão? Meu namorado nunca faria uma coisa dessas, ouviu?
– Que coisa feia Magali! Você é muito esganada e fica pondo a culpa nas pessoas?

As duas foram embora dali, deixando-a limpando o muro em prantos. Por que Cebolinha tinha feito aquilo? O que ele ganhou prejudicando-a daquele jeito?

- Ei, Magali ladlona! – uma voz irritante chamou.
- Tentou ferrar a gente e dançou, bem feito!

Os dois foram embora rindo e conversando. Não, eles nunca mais iam parar de mexer com ela. Dar aquela bandeja de doces não resolveu nada. Cebola era ruim de natureza, gostava de aprontar com todo mundo e pegava no seu pé constantemente.

Ninguém a defendia, ninguém ligava. Feliz era o Tonhão da rua de baixo. Ele sim era respeitado e nem o Cebolinha mexia com ele. Ela parou um pouco o que estava fazendo. Seria essa a solução? Quanto mais pensava naquilo, mais ela chegava a conclusão de que era verdade. Para ser respeitada era preciso ser forte e bater em qualquer engraçadinho que lhe provocar. Talvez até bater sem provocação nenhuma só para mostrar quem manda.

Quando terminou a limpeza, ela tomou uma decisão. Estava na hora de acabar com o reinado de terror do Cebolinha. Assim que conseguiu se livrar da vigilância da sua mãe, ela pegou uma corrente de bicicleta que estava abandonada na garagem do seu pai e foi até o campinho acertar as contas com aquele carequinha miserável. E ela bateu, bateu com toda raiva descontando sua frustração, as lágrimas, as provocações que sofreu. E ela bateu em quem tentou interferir, bateu em todos.

Só assim ninguém mais mexeu com ela. Apesar de aquilo ter custado todas as suas amizades, ela não se importou mais. Aquelas traíras lhe viraram as costas de qualquer jeito. Só Denise brincava com ela porque era meio maluquinha, mas as outras se afastaram. Ela também não fazia questão de mais ninguém, nem mesmo do Quim, aquele traidor que mesmo ela tendo prometido nunca mais roubar nada, lhe proibiu de ir atrás do balcão para lhe dar guloseimas. Pelo visto, ele se deixou levar pelas broncas do pai. Ele não gostava dela o suficiente.

Fim flashback.

Ela estava deitada na cama com Mingau em cima da sua barriga. De tanto pensar e lembrar, Magali acabou caindo no sono com aquelas lembranças tristes da infância ainda rondando sua mente. Sua vida nunca mais foi a mesma depois daquele dia. Apesar do preço alto que tinha pago perdendo suas amigas, ela ainda achava que tinha valido a pena. Era isso ou passar toda a juventude sendo perseguida pelo Cebolinha e os amigos dele. Agora ela mandava em tudo e todos e até Cascão, melhor amigo do carequinha, tinha sido colocado em sua gangue. Assim aquele miserável cinco fios ia ficar sozinho e isolado de todos.

- Eu ainda tenho que pegar aquele idiota mascarado... – ela murmurou para si mesma ainda sonolenta e virou-se para o lado, caindo num sono pesado e sem sonhos. Mingau aconchegou-se junto a ela e também dormiu profundamente.


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No dia seguinte, Cebola e Mônica passeavam aproveitando o feriado. Cada um segurava uma casquinha de sorvete na mão e iam conversando como velhos conhecidos. Quando foi a última vez que ele tinha tomado sorvete com uma menina? Ele se lembrava muito vagamente de ter convidado uma amiguinha para tomar um picolé no campinho, mas foi apenas isso. Ele nem saiba mais o nome dela.  

- Seu olho ainda dói?
- Não, já sarou. E você? Eu vi o Cascão batendo com a barra de ferro nas suas costas.
- Ficou roxo, só que ninguém vai ver mesmo. Com o tempo vai passar.
- A Marina ligou e disse que a Magali pegou uma semana inteira de suspensão. Pelo menos você vai ter sossego.
- É... só que depois ela vai querer tirar o atraso quando voltar a escola.
- Eu ainda não entendo Cebola. Já vi que você pode encarar ela e o resto da gangue. Por que não acaba com isso logo de uma vez?
- Porque eu quero fazer do meu jeito, usando a inteligência.
- Então você entende porque eu não quis bater na Magali. Já bati em muita gente no passado, não quero mais ser assim!

Ele pensou um pouco, tentando escolher as palavras e voltou a falar.

- Bater numa pessoa pra mostrar força, intimidar e aterrorizar é uma coisa. Se defender é outra muito diferente. Você viu que eu me defendi deles, não deixei que me batessem.
- Só que eu posso acabar machucando as pessoas.
- Machucar? Também não é pra tanto. Você parece tão... delicada! – ele falou olhando-a de cima a baixo. Além de ser baixinha, ela também tinha um físico meio franzinho.
- Acho que é mais fácil mostrar do que falar. Peraí... vem cá.

Os dois foram até o meio da praça, onde tinha vários bancos de cimento. Apesar de serem feitos com cimento, eles não eram presos ao chão já que eram pesados demais para alguém querer removê-los dali. Pelo menos para a maioria das pessoas.

Após certificar de que não tinha ninguém olhando, Mônica foi até a extremidade do banco e o ergueu com apenas uma mão, enquanto a outra segurava a casquinha.

- M-m-m... eu não acledito! – o assombro foi tanto que ele acabou deixando o sorvete cair no chão. – Como isso é possível? Nunca vi coisa igual!
- Eu sempre fui muito forte, só não sei por quê. Acho que nasci assim.

O queixo dele caiu no chão, indo fazer companhia para a bola de sorvete.

- Caramba, com uma força dessas você podia derrotar Magali e a gangue dela com uma mão amarrada nas costas! Por que deixou ela te bater?
- Porque eu não quero mais resolver as coisas assim, é isso! – ela falou levemente irritada. Por que todos esperavam que ela só usasse de violência?
- Mônica, peraí! Eu não to falando pra você intimidar as pessoas, é defesa pessoal! Você tem o direito de se defender, pindalolas!
- Eu quero me defender de outro jeito.
- Blé, mas não tá conseguindo. Por que não assume que seu jeito de ser é esse mesmo e pronto?
- É esse o que? - Ela parou de andar e o encarou com aquela cara zangada fazendo-o tremer nas bases.
- Bem... forte, que luta, e... e...
- E que resolve tudo na pancadaria, né? Até você tá achando isso?
- Eu?
- Só que eu não quero mais ser assim não, tá? Não quero mais resolver tudo com força bruta, cansei de ser a brigona marrenta da escola! Quero mudar, ser diferente!
- Mesmo que isso signifique deixar de ser você mesma?
- Ah, tá! Então você acha que o meu verdadeiro eu é isso mesmo? Uma outra Magali?
- Calma lá, eu não te comparei com a Magali hora nenhuma!
- Mas acha que eu tenho que resolver tudo na pancadaria!
- Também não falei isso, você tá distorcendo minhas palavras!

Certo, aquela garota tinha mesmo um gênio teimoso e difícil. Nem mesmo toda sua lábia e retórica era capaz de vencer toda aquela teimosia.

- Eu perdi um namorado porque batia nele na infância, cansei de todo mundo me jogar na cara que eu aterrorizava os meninos, cansei!
- Mas você não pode abrir mão do seu jeito de ser, isso é errado!
- De repente eu não ligo, tá?
- Pois devia ligar! Caramba, deixa de ser teimosa criatura!
- Tá vendo, até você tá achando que eu sou teimosa e marrenta!
- Eu não falei marrenta, só teimosa! Você precisa entender que cada um tem seu jeito de ser! A gente pode melhorar sim, mas não é certo abrir mão de quem somos só pra agradar aos outros!
- Nem mesmo alguém que amamos?

Ele engoliu em seco. Então ela ainda amava aquele idiota?

- Nem mesmo aquele imbecil que te chutou por causa de besteira.
- Já disse que isso não foi besteira!
- Pense como quiser, só que aí você vai continuar sofrendo pelo resto da vida por causa de alguém que não te aceita como você é!
- Ele aceita sim!
- Então por que você se esforça tanto pra mudar?

Ela gaguejou, tentou se justificar e acabou caindo em prantos, confusa e desorientada. Cebola resolveu ser mais brando e a levou até o banco da praça, fazendo com que ela pousasse a cabeça sobre seu ombro.

- Olha, fica assim não. Você deve estar muito confusa, não é?
- Demais! Você nem imagina o quanto!
- Acho que tenho uma idéia. Você deve sentir falta dos seus amigos e parece que de alguma forma os vê no pessoal da escola.
- Heim? – ela levantou a cabeça para olhar os olhos dele. Cebola fez com que ela pousasse novamente a cabeça em seu ombro.
- Parece que você vê seus amigos no pessoal da escola, até na Magali e seu grupo. Não sei porque disso, mas foi o que percebi.
- Tá tão na cara assim?
- Bastante. A gente não se conhece há muito tempo, mas não acho difícil saber o que você pensa ou sente.
- Puxa...
- Deve ser difícil pra você, mas eles não são seus amigos. Quer dizer, não os mesmos amigos que você deixou no outro colégio. São pessoas diferentes.
- Às vezes penso que não... que tem alguma coisa dos meus amigos neles.
- Mesmo que tenha lá alguma coisa, eles são outras pessoas, viveram outras vidas, com outras experiências... acho que você precisa entender que não está mais no seu bairro vivendo sua antiga vida com os amigos de sempre.
- Acho que sim. É tão difícil...
- Difícil sim, impossível não. Você precisa fazer uma forcinha, isso vai facilitar muito as coisas pra você.
- Pode ser.

Ele a levou para casa e após se despedir, Mônica foi para o seu quarto pensando no que Cebola tinha lhe falado. Mesmo não sabendo a verdade, ele tinha acertado em muitas coisas. Realmente, ela não estava mais entre os amigos de sempre. aquela Magali não era a sua melhor amiga, o Cascão não era o sujinho alegre e bem humorado. Mesmo que alguns deles tivessem mantido a mesma personalidade, eles não eram as mesmas pessoas.

- Tá na hora de eu cair na real. – ela falou decidida. Até então ela tratava os colegas de escola como se fossem seus amigos de infância, o que não era verdade. Eles não tinham com ela a mesma ligação, o mesmo passado e a mesma história. Não dava para forçar esse tipo de coisa e nem criar do nada. O homem do jaleco branco estava certo quando disse que ela precisava esquecer tudo o que sabia sobre seus amigos e começar do zero. Se tivesse seguido aquele conselho, teria sofrido muito menos.

Apesar do que o Cebola alternativo havia falado, ela ainda precisava dar um jeito naquela teimosia.


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