Universo Em Desequilíbrio escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 27
Só trinta minutos


Notas iniciais do capítulo

Já que hoje estou de bom humor, vamos ter uma dobradinha. É também uma forma de compensar a demora por ter atualizado a fanfic.



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- Caramba, ela vai mesmo falar de mim? – Cebola perguntou com os olhos arregalados. O que seu duplo ia pensar ao saber mais sobre ele? Será que ia adorá-lo como um herói? Afinal, a vida dele era bem melhor que a do seu outro eu. Pelo menos ele não era um perdedor fracassado que apanhava todos os dias da Magali.
- Vai ser muito doido, véi! – Cascão falou também curioso.
- Interessante, muito interessante. – Astronauta também falou. – É a primeira vez que eu vejo um duplo tendo consciência do seu original! Isso é inédito!
- Sim, sim. Vai ser bem interessante. Vamos ver como o rapaz do cabelo espetado aí vai lidar com isso.
- Eu?

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À medida que ela falava... ou melhor, escrevia no bate-papo, Cebola foi fazendo uma careta de desagrado. Claro, ele já sabia de muita coisa por ler o diário dela, mas ainda assim aquilo era ridículo demais para ser verdade.  

- Peraí, deixa eu ver se entendi direito... ele falou que só vai reatar o namoro depois que te derrotar? Sério mesmo?
- É sim...

Então era mesmo verdade? Quando leu aquilo, ele não acreditou que fosse para valer. Era idiota demais para ser real. Como alguém podia ser tão imbecil?

- Isso é... é...
- Meio bobo, eu sei, mas eu respeito os sentimentos dele. Tadinho, ele vivia apanhando de mim, eu era muito difícil. Acho que ele acabou se sentindo diminuído por causa das coelhadas.
- Ô, calma aí. Você tá falando que esse cara tá com esse mimimi todo só porque apanhou com um coelhinho de pelúcia? É isso?
- Eu sempre fui muito forte, então doía pra caramba, viu? Ele ficava até de olho roxo e tudo!

Cebola esfregou o rosto com as mãos e voltou a escrever.

- Na boa? Esse cara é um tremendo bundão, isso sim! Fala sério, que coisa mais patética!

Mônica levou um susto ao ler aquilo. Claro, ele não tinha consciência de que se tratava do seu original, por isso falava daquela forma.

- Não fala assim não, ele é muito inteligente, esperto, gente boa e a gente sempre foi um bom amigo!
- Mas ele fica choramingando porque apanhou com um coelho de pelúcia! Esse cara é de açúcar por acaso? Que fracote! Eu apanhei da Magali de tudo quanto é jeito, ela já me machucou várias vezes e eu não fico chorando pelos cantos!
- Só que nele eu batia quase todos os dias...
- Eu também apanhava da Magali quase todos os dias e apanhava feio! Aliás, eu ainda apanho até hoje!
- E eu sempre fui muito mandona também, queria tudo do meu jeito e batia nele quando ele discordava!
- Hunf! Se era assim, então por que ele não se afastou de você? Bah, vem não que eu tô achando esse cara frouxo demais!
- Frouxo? Ele não é frouxo!
- Poxa, ele te deu um fora só por causa dessa conversinha mole de te derrotar, mas caramba! Vocês eram crianças, isso é passado! Não era pra ele ter superado e seguido em frente?
- Mas...
- Agora ele vai ficar remoendo isso pelo resto da vida?
- É que ele apanhou muito e...
- Blé, apanhou porque te provocou! Se ele tem queixa de você, o contrário também é verdadeiro! Só que você não fica guardando rancor por aí e nem se fazendo de coitada! Esse cara é totalmente patético, um bundão mesmo!

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Cebola acompanhava tudo com os olhos esbugalhados e o queixo caído. Aquele cara estava mesmo falando sério? Seu duplo achava mesmo que ele era um covarde bundão? Como ele podia achar uma coisa dessas depois de ouvir tudo o que a Mônica tinha falado? Ele apanhou, levou muitas coelhadas e isso fez com que ele se sentisse diminuído. Por que aquele idiota não enxergava aquilo?

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- Olha, fala assim dele não, tá? Ele apanhava muito e apanhar dói!
- Fala aí, alguma vez você já abriu uma brecha na cabeça dele?
- Eu? Não, isso não!
- Você batia sozinha ou reunia uma turma inteira pra dar uma surra nele?
- Eu jamais ia fazer esse tipo de coisa!
- E alguma vez você roubou o dinheiro do lanche dele? Já fez todo mundo da escola ficar de cara virada com ele?
- Não...
- Você já o machucou de arrancar sangue? Já mandou ele pro hospital pra levar ponto?
- Er... não...
- Ainda assim ele tá choramingando porque apanhou com um bicho de pelúcia? Um bicho de pelúcia? Não me leve a mal não, mas eu não consigo aceitar isso!
- Por que?
- Porque eu passei por coisa muito pior e não fico por aí me fazendo de coitado! Ao invés disso, eu tô me esforçando para melhorar, crescer e superar tudo isso! Todo mundo pode me achar um perdedor, mas eu não ligo porque estou batalhando pra mudar as coisas. E ele? O que faz pra mudar as coisas?
- Ele estuda muito, se esforça...
- Ele fez alguma coisa pra te derrotar e reatar o namoro? Fez alguma coisa pra vocês ficarem bem? Fez algum esforço pra superar o passado e seguir em frente?
- Não é tão fácil assim...
- Eu tô conseguindo, não estou? Por que ele, que sofreu muito menos do que eu, não consegue? Qual é o problema desse cara?

Mônica não soube responder, mas no fim acabou concordando ainda que continuasse defendendo o Cebola original.

- Só que eu tenho muitos defeitos!
- E você conhece alguém que não tem? Ninguém é perfeito, ora! Se você tem defeitos, ele também deve ter um monte!
- Isso é, só que cada um tem que cuidar de si pra melhorar. Eu ainda preciso melhorar muita coisa.
- E aposto que ele também.
- Pelo menos ele não batia em ninguém.
- Não batia, mas xingava, tentava te humilhar, roubar seu brinquedo e ainda instigava os outros garotos da rua pra fazer a mesma coisa.
- Nunca olhei por esse lado.
- Pois devia. Eu fazia a mesma coisa com a Magali e sei como é. Só que eu me ferrei legal, ele não. Então eu não acho que você era tão ruim assim. Duvido que tenha sido pior que a Magali.
- Bom, mas eu batia um monte. Acredita que eu até cheguei a acertar o pai dele uma vez? Dá pra acreditar?
- Sério?

O rapaz arregalou os olhos e tratou logo de fazê-la contar toda a história. Quem podia imaginar que aquela conversa ia tomar um rumo tão inesperado?

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Até Cascão ficou surpreso, pois não se lembrava de nada disso.

- Ué, careca, ela acertou o seu pai mesmo?

Apesar de estar espumando de raiva, Cebola procurou se acalmar e pensou um pouco, tentando buscar algo na memória.

- Tente se lembrar, garoto. – Paradoxo aconselhou. – Isso será importante e te ajudará a entender muitas coisas.
- É... agora eu tô lembrando. Vixe, tinha até esquecido!

Todos ficaram em silêncio, também curiosos para ouvir a história da Mônica. Por que aquilo era tão importante?

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- Por que você acertou o pai dele?
- Foi sem querer, eu juro! É que esse garoto ficou me chamando de dentuça, baixinha e gorducha. Aí eu não agüentei e joguei o coelhinho nele.
- Só que acabou acertando o pai dele.
- Pois é. Ele ficou desmaiado um tempão, coitado. Quase não foram viajar naquele dia.
- Viajar? – Cebola perguntou surpreso. – Eles estavam indo viajar? Pra onde?
- Aí eu não lembro. Só lembro que atrasou a viagem deles. Mas eles foram.

Cebola pensou um pouco e perguntou.

- Engraçado. Isso faz quanto tempo, você lembra?
- Lembro sim, a gente tinha 11 anos na época e eu fiquei um tempão de castigo quando minha mãe ficou sabendo. Aí eu entendi que precisava melhorar meu gênio ruim.
- Onze anos? Puxa, faz tempo heim? Bom, pelo menos eles foram viajar, não foi assim o fim do mundo. Eles aproveitaram as férias? – A última pergunta foi feita com o propósito de arrancar mais alguma informação dela.
- Férias? Não, era só um feriado prolongado mesmo. Acho que foi no carnaval.

Por um instante, Cebola teve a sensação de que alguém tinha acertado seu estômago com um soco. O acidente que matou seu pai e sua irmã tinha sido no carnaval, quando ele tinha 11 anos. A família estava viajando para aproveitar o feriado prolongado. Pelo visto, o tal acidente não tinha acontecido no mundo original. Tentando pescar mais alguma coisa, ele continuou perguntando.

- E no fim tudo correu bem na viagem deles, não foi?
- Foi, né... tirando uma batida que teve na estrada...
- Batida? Eles bateram o carro?
- Não. Deixa ver se consigo lembrar... ai, faz tanto tempo! Acho que na volta, ele falou qualquer coisa sobre batida de carro...
- Faz uma forcinha aí!
- Ué, por que você tá tão curioso?
- Nada não, nada importante. É que falar te faz bem, ajuda a desabafar. E aí que batida foi essa?
- Pelo que ele falou, foi um monte de carro que bateu, mas com eles não aconteceu nada. Levou um tempão pra liberar a estrada e eles continuaram. Só isso. Viu como não tem nada de mais?
- É... nada de mais.

Seu coração apertou de tal forma que seus dedos tremiam fortemente, atrapalhando sua digitação. Seus olhos se encheram de água e ele percebeu que não ia mais poder continuar aquela conversa. Estava acima das suas forças.

- Ih, minha mãe tá chamando, eu tenho que sair do computador.
- Ah, tudo bem. Foi bom mesmo conversar. A gente se vê na escola amanhã, tá?
- Tá...
 
Ele desconectou-se do jogo e levantou-se bruscamente, chutando a cadeira para o lado. As lágrimas começaram a cair e ele socava a parede com força enquanto chorava de raiva, tristeza, revolta e amargura.

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- Teve mesmo aquele acidente? – Magali perguntou.
- Peraí... é, teve. Eu lembro de ver um monte de carro que tinha batido e queria até descer pra olhar. Minha mãe é que não deixou.
- Por que seu duplo ficou bolado daquele jeito? Eu não entendi!

Cebola abaixou a cabeça. Ele tinha entendido muito bem, embora se recusasse a acreditar.

- Vejo que você entendeu a história, rapaz. – Paradoxo falou.
- Não, deve ter um engano! Aposto que se a gente tivesse ido mais cedo...
- Não teria dado tempo. E de tempo eu entendo muito bem.
- Mas foi só meia hora!
- Em muitos casos, um segundo pode fazer muita diferença.

A cabeça do Cascão ferveu um pouco até ele conseguir entender a situação.

- Peraí! Você tá dizendo que o duplo do Cebola sofreu aquele acidente com os pais porque... porque...

Astronauta completou.

- Porque eles não tiveram a Mônica para atrasá-los. Isso é realmente impressionante!
- Então – Zé Luis completou – Se a Mônica não tivesse atirado o colho contra o seu pai, vocês teriam viajado mais cedo e sofrido aquele acidente?
- Nossa, me deu até arrepios! – Xabéu completou tremendo um pouco.

Cebola voltou a olhar a tela, onde seu duplo chorava desconsolado socando as paredes e jogando coisas no chão. Que ironia... ele queria tanto saber o que tinha acontecido para que suas vidas fossem diferentes e quando descobriu, entrou em desespero. Como ele ia viver o resto da sua vida depois daquela revelação?

Ele mesmo não sabia como ia continuar vivendo depois daquilo. Durante toda sua vida ele desejou que Mônica fosse mais controlada e não lhe desse coelhadas. Seu duplo nunca levou coelhada nenhuma, mas isso teve um preço muito alto para ele.
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Levou um tempo até que ele se acalmasse. Muito tempo. Suas mãos sangravam um pouco de tanto socar as paredes e seu quarto estava bagunçado. Cebola foi até o banheiro para lavar o rosto e levou um susto ao ver o próprio reflexo no espelho. Seus olhos estavam vermelhos e inchados, o roto molhado e o nariz escorrendo. Sua aparência nunca esteve tão patética antes.

Patético. Era assim que ele se sentia. Um pobre coitado que tinha perdido metade da sua família e agora vivia com a mãe obesa, doente e depressiva que não queria fazer nada para ajudar a si mesma. Um infeliz que não tinha amigos, apanhava quase todos os dias e era alvo de piadas e chacotas dos outros alunos. O que tinha de bom na sua vida?

A conversa que teve com a Mônica retornou a sua lembrança. Coitada, ela não fazia a menor idéia do impacto que tinha na vida das pessoas. Uma simples coelhada tinha salvado uma família inteira. Por que o duplo dela naquela dimensão teve que morrer? Por que ele teve que passar sua vida sem conhecê-la?

- Então é isso. Ela é a diferença entre aquele idiota e eu. – ele falou consigo mesmo enquanto lavava o rosto e procurava se recompor para não ter que olhar mais para aquela cara horrorosa de bebê chorão. – Minha vida virou esse inferno porque eu não a conheci...

Já mais calmo, ele sentou-se no vaso para pensar um pouco. Aquilo era tão absurdo e ao mesmo tempo parecia fazer sentido. Desde que chegou na escola, ela passou a fazer uma grande diferença em sua vida, fazendo-o até mesmo adiantar seus planos para se reerguer e derrotar Magali. Por causa dela, ele tinha se fantasiado de herói e enfrentado a gangue mais barra pesada do colégio, tinha descoberto que vivia em uma dimensão paralela e também percebeu o quanto sua vida era limitada e ruim. Não, ele não queria mais viver aquela vida medíocre de fracassado. Ele queria mais.

Queria ser respeitado, ter uma vida normal, ter amigos e também uma namorada. E também queria realizar seus sonhos de ser alguém forte e poderoso.

Os chamados insistentes da sua mãe pedindo por comida fez com que ele voltasse a realidade. Mas a mudança já estava feita e ele não era mais o mesmo, nunca mais. Estava na hora de mudar muitas coisas e ele pretendia começar o quanto antes. Sua vida não podia mais esperar.


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