Tormento (Hiatus) escrita por aa


Capítulo 1
Capítulo 1 - Resquícios da Guerra




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/333758/chapter/1

A Planície do Fogo, local onde ocorreu a sangrenta Batalha das Raças. O campo de batalha, que outrora tinha uma camada de grama muito verde, que cobria toda a região, agora está tingido pelo sangue dos inúmeros mortos e feridos, daquela batalha. Pelo chão estavam largados os corpos sem vida de humanos e orcs — seres humanoides, robustos, de pele acinzentada, de aparência monstruosa e de cabelos escassos.

Os humanos saíram vitoriosos desse embate. Os sobreviventes estavam com o seu coração apertado, devido a perda de seus companheiros, mas ainda assim, estavam aliviados, aliviados por terem saído com vida daquele massacre.

Jake, o Jovem Guerreiro, removeu o seu elmo e o largou no chão, segurava ele um outro elmo com a sua mão direita. O sol reluziu, banhando face pálida do soldado. Seus olhos observaram um outro guerreiro que se aproximava, John, o Guardião.

— Foi difícil, mas nós conseguimos — comentou John.

— De fato, pelo menos saímos com vida, amigo — declarou Jake em tom amigável. — Sinto pelos nossos amigos perdidos. — O semblante do jovem se entristeceu.

— Ânimo, meu camarada. Não deve ficar triste, e sim, feliz. Suas mortes não foram em vão. Eles morreram como um guerreiro deve morrer, com honra, em meio ao calor da batalha. Ajudaram a salvar a vila. Anime-se!

— É... morreram como verdadeiros heróis — falou o rapaz, com a face um pouco menos carregada.

— Agora o nos resta a fazer é pegarmos os corpos e dar-lhes um enterro digno.

— Faça isso com os outros, eu me juntarei ao grupo de pilhagem.

— Se assim deseja, soldado.

— Obrigado, capitão. — Jake olhou para a esquerda e avistou no horizonte o sol que começava a se esconder por entre as colinas. — Não estou acostumado com a guerra, não quero ter que mover o corpo dos meus amigos. Não quero ter que mover o corpo de Sebastian...

— Entendo — disse o capitão em tom de consolo. — Vá para casa, quando acabarmos de remover os corpos nós chamaremos o grupo de pilhagem.

— Mas já é quase noite, capitão! — alertou Jake, que ficara espantado. — Pode ser perigoso ficarmos por aqui durante a noite, e mais perigoso ainda com a metade do batalhão disperso.

— Acalme-se, meu jovem — disse o Guardião. — Por que seria perigoso? Quem nos atacaria? Todo o exército de orcs foi abatido.

— Sabe muito bem que estas terras são misteriosas e inexploradas. Nunca se sabe o que pode acontecer.

— Meu caro Jake — disse o veterano ao colocar a  sua mão direita sobre o ombro esquerdo do rapaz —, eu sou mais experiente do que você. Se estou dizendo para ficar tranquilo, você deve confiar em mim.

— Mas capitão... — Jake tentou falar.

— Esta conversa está oficialmente encerrada, soldado — findou o capitão ao se virar de costas e seguir andando para longe do garoto. — Volte para a vila junto com os novatos.

— Está bem — o Jovem Guerreiro murmurou, em seguida se virou e seguiu andando em direção a vila, que não ficava mais longe do que um quilômetro.

O caminho fora tortuoso; naquela vila estavam, esposas, namoradas, mães, avós, filhos e filhas que aguardavam que seus familiares e amigos retornassem, mas eles não estavam retornando junto com o batalhão, eles não retornariam agora, eles nunca mais retornariam com vida, infelizmente seu regresso seria junto com mais uma pilha de mortos. Coube ao batalhão de pilhagem transmitir as más notícias, para Jake era tortuosa essa missão, pois teria que encarar os rostos tristes de cada uma das pessoas, algumas que eram tão próximas dele, como se fossem da família.

— Jake! — ecoou uma voz masculina por cima dos ombros do rapaz.

— Sim, diga — prontamente respondendo ao chamado, sem nem ao menos olhar para trás.

— Como poderemos fazer isso?

— Como poderemos fazer o quê?

— Como poderemos dar as notícias funestas? — perguntou o rapaz ao acelerar o passo e ficar ao lado de Jake. Este outro guerreiro era tão jovem quanto Jake, tinha longas madeixas loiras que se aproximavam do ombro, olhos azuis como o seu e uma pele clara.

— Teremos que nos virar, suponho eu. Afinal se não dissemos nada suspeitarão de algo, então acho melhor contarmos de como morreram com honra.

— É, acho que tem razão... — murmurou o loiro, mais para si próprio do que para seu companheiro.

— Mas não entendo por que está me perguntando isto, você é o tenente dos novatos, deveria saber melhor do que nós todos o que fazer.

— Se acha isso está muito enganado.

— E por quê?

— Me escolheram por ser o mais habilidoso com a espada, mas não creio que eu deveria ter me tornado tenente apenas por ser bom com a espada, um tenente é muito mais do que isso.

— De certa forma isto é verdade — Jake concordou com o ponto de vista.

— Creio que você seria melhor tenente do que eu.

— Você está com medo de dar a notícia, não é? — indagou Jake, ao virar lentamente a sua face e olhar nos olhos de seu tenente.

— Por favor — pediu o rapaz.

— Tudo bem. Não precisa pedir por favor, você é meu superior, devo obedecer.

— Quando os veteranos voltarem, pedirei pessoalmente que você tome o meu lugar.

— Não se incomode com isso Jimmy, não almejo um cargo mais alto, almejo apenas poder proteger os outros, deixe que as coisas fluam naturalmente. Só desejo lutar para salvar, nada mais do que isso, nada que envolva muitas responsabilidades.

— Como quiser Jake. — Jimmy parou de andar e ficou vendo enquanto o Jovem Guerreiro se afastava. — Mas a partir de hoje te considero como o meu superior.

Jake seguiu andando, aparentemente sem dar bola para o comentário do seu tenente. Parecia tão indiferente quanto aquilo, afinal não respondeu, agiu como se não houvesse escutado. Mas um singelo sorriso iluminou a sua face. Ele ainda segurava aquele elmo, que estava manchado de sangue em seu interior e exterior e com algumas marcas de corte na lateral direita. Jake não afrouxou os dedos nem um pouco desde que coletou o objeto em meio ao campo de batalha. O que teria de tão especial naquele objeto simplório e aparentemente sem condições de uso?

O batalhão dos dez novatos sobreviventes chegou a entrada da vila. Ao passarem pelo portão, que levava até a praça central, local onde se encontravam inúmeras pessoas e vendedores, a população correu até o grupo e alguém tocou o sino, que badalou até que todas as centenas de pessoas que moravam naquela vila chegassem ao seu encontro.

Alguns minutos se passaram, nem todos estavam ali, mas as pessoas que precisavam estar, estavam. Jake, que ficara incumbido de dar as más notícias se adiantou, ficando em frente ao batalhão.

— Pessoal — Jake gritou, sua voz ecoou no silêncio da noite que começava a chegar — Escutem! Nós fomos os vitoriosos! — declarou o soldado.

Toda a multidão que ali estava começou a gritar, bater palmas e conversar entre si, gerando um barulho ensurdecedor. Jake ficara totalmente atordoado com a barulheira. Tentara retomar o seu discurso por algumas vezes, mas fora inútil. Em meio a multidão havia uma garota de longos cabelos loiros e olhos castanhos, que estava em silêncio, estática, olhando para o comunicador das noticias.

Jake e Sebastian sempre saíam juntos e voltavam juntos, mas desta vez não, pensou a bela moça. Sebastian ficou com os outros para mover os corpos ou..., nesse instante a garota cortou bruscamente os seus pensamentos, não querendo pensar no pior. Seus olhos se encheram de lágrimas, mas nem uma sequer escorreu pelo seu rosto rosado.

— Tome isto — falou Jimmy ao alcançar uma trombeta para Jake.

— Obrigado — agradeceu ao segurar o objeto.

Prontamente Jake o pôs na boca, encheu seus pulmões o máximo que pôde e soprou com toda a sua força e fúria. Um som monstruoso ecoou sufocando o som gerado pelos barulhentos da vila. Todos pararam com a algazarra instantaneamente e olharam aflitos para Jake.

— Eu não acabei — retomou Jake, friamente. — Infelizmente coube a mim ter que fazer isto. Nós vencemos, mas perdemos um grande número de soldados... Não, eles eram muito mais do que isto. Perdemos um grande número de pessoas... Não, ainda está errado... Perdemos nossos preciosos amigos e familiares.

Após o som das palavras de Jake se dissiparem no ar, todos, sem exceção, assumiram um semblante de luto, em respeito aos valorosos guerreiros.

— É triste — continuou Jake — perder as pessoas importantes para nós. Mas por um fato devem ficar felizes: Eles viveram e morreram como verdadeiros HERÓIS! — deu ênfase na última palavra. — Eles protegeram vocês, sejam gratos a eles, mais do que a nós, pois eles deram tudo de si.

Todos baixaram suas cabeças e fixaram o seu olhar no chão, um ar melancólico invadiu o ambiente. Tudo estava no mais puro silêncio. A brisa soprava levemente, movendo os cabelos e roupas. Nem os pássaros cantavam, pareciam que também estavam de luto.

— Jake! — uma voz feminina vinda da multidão chamou pelo nome do soldado. — Onde está o Sebastian? — indagou a garoto tentando se controlar para não chorar. Após a frase proferia a bela se desmanchou em lágrimas. — Onde ele está?! — Perguntou ela, desta vez deixando escapar seu desespero.

O Jovem Soldado observou a garota e não disse uma palavra sequer, ao invés disso andou em sua direção, segurando o elmo com mais firmeza do que nunca.

— Este elmo era dele — declarou Jake ao segurar o capacete em frente ao seu peito com ambas as mãos. — Eu sinto muito. Sinto muito mesmo, Alice — disse a verdade. Sebastian era o seu melhor amigo.

O pranto desesperado da garota dobrou a sua intensidade. Os seus gritos de dor pareciam sair do mais fundo de sua alma, e realmente era o que estava ocorrendo. Perder alguém importante é como perder um pedaço de si mesmo, um pedaço que nunca mais será recuperado ou substituído. Sebastian se foi e levou junto com ele um pedaço de Alice. E por que não dizer, um pedaço de Jake?

O Jovem Soldado se identificou com o sofrimento de sua amiga, afinal estava sentindo a mesma dor que ela, embora o seu martírio estivesse oculto profundamente em seu ser. A fraqueza não deveria ser mostrada as pessoas. Um soldado deve ser forte, resistente e inabalável. Quem inventou essa coisa toda, muito provavelmente não tinha família e amigos ou nunca perdeu alguém que amava.

— Não pode ser! — berrou a garota, ao pegar o elmo e abraçá-lo com todas as forças após se ajoelhar. — Meu amado Sebastian, por que você teve que partir?!

— Não sei se serve de consolo, mas ele morreu com honra, como um verdadeiro herói.

— Não me serve! — rebateu Alice, asperamente. — Não queria que fosse um herói! Muito menos que fosse para a guerra! Eu só queria que ficasse aqui comigo. Só queria ele ao meu lado. Meu coração está sangrando. Iriamos nos casar daqui a dois meses.

— Eu sei. Eu seria o padrinho. Meu coração também está sangrando. Embora não pareça, definitivamente, eu estou mutilado por dentro — proferiu Jake, em seguida se curvou e beijou o topo da cabeça da jovem. — Eu ainda não chorei, quando chorar sairão lágrimas de sangue. Sei que é mais duro e difícil para você do que para mim. Não posso fazer nada a não ser desejar que fique bem e que o tempo ajude a curar seu coração ferido. Então fique bem minha amiga — sussurrou para que apenas ela ouvisse.

Alice em meio ao seu tormento conseguiu encontrar forças para poder agradecer ao seu amigo pelas singelas palavras de conforto ditas por ele.

— Obrigado, Jacob — agradeceu em um sussurro, para que somente ele ouvisse.

Jake detestava ser chamado pelo nome, mas dessa vez não se importou, talvez nunca mais se importaria, era assim que o seu amigo o chamava sempre, aquela seria uma boa forma de manter a lembrança de sua existência viva em sua mente. Sem dizer mais nenhuma palavra, o jovem de cabelos negros sorriu — um sorriso falso que não demonstrava o seus verdadeiros sentimentos, mas aquilo fora preciso para tentar motivar a jovem a seguir em frente. Finalmente Jake se retirou sem falar com mais ninguém. Estava indo para casa, lugar onde estaria sozinho. Estar sozinho era tudo o que queria. Estar sozinho era tudo que almejava. Olhou para o céu durante o seu percurso como que procurando conforto para o seu coração machucado. Lembranças dos bons momentos irromperam na mente do garoto, que não conseguiu evitar que lágrimas escorressem pelo seu rosto pálido e seguissem para o chão.

Quilos e mais quilos de metal destruído; quilos e mais quilos de carne morta empilhada; litros e mais litros de sangue derramado; a perda de um amigo; a visão da dor de uma amiga; a destruição de um pedaço do meu coração; minhas lágrimas banhadas de dor... esses são os resquícios da guerra.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!