O Chamado das Borboletas escrita por Ryskalla


Capítulo 9
Capítulo 8 - Tecido do seu Tecido




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A mente da boneca estava perdida em algum lugar do passado. Buscava lembrar-se de Thierry… como ele era? Seria ele tão tirano quanto alegava Aubrey? Não poderia ser, claro que não poderia…

Caiu sentada no chão olhando a carta. O que faria? O que faria? Por que seu amigo queria destruir Thierry? Seu irmão, seu tão precioso irmão... ela já não era única no mundo. Já não era solitária. Será que Richard e Aubrey poderiam entender? Poderiam eles entender que Cecille já não era mais a única que chorava sem ter lágrimas? Que se envergonhava sem poder corar? Thierry era tecido de seu tecido! Por que seu mestre ordenou que ela esquecesse Thierry? Como poderiam ser tão cruéis?

Humanos sempre foram cruéis, Cecille… Todos! Veja você, no que os humanos te transformaram… e seu mestre humano, Cecille? Que lhe abandonou?

Não. Humanos não são de todo ruins. Existiam aqueles de bom coração, aqueles que lhe tratavam bem e lhe ofereciam abrigo.

Os pensamentos conflitantes assolavam a pobre boneca, fazendo-a desejar nunca mais pensar. Fazendo-a desejar dormir… mas bonecas não podem dormir. O sono era uma das inúmeras coisas que lhe fora privado.

Pobre Cecille, sem consolo. No fim, o mais próximo de sonhos que ela poderia ser, eram suas lembranças… e, naquele momento, a boneca não pode evitar afogar-se em recordações que, por tanto tempo, lhe eram proibidas. 

— O curandeiro disse que ele não possui muito tempo… meu pequeno príncipe Thierry… — De dentro de seu quartinho, Cecille ouvia a voz de um homem lamentar. Ela desenhava um vaso com rosas. Seu mestre adorava rosas e ela vivia para alegrá-lo. — Ele é um verdadeiro guerreiro, sabe? Essa é a segunda crise que ele enfrenta, mas… Ele não chegará aos quinze anos.

— A morte é um trágico destino para alguém que mal começou a viver. Porém a vida pode ser a maior de todas as tragédias. — Ao ouvir as palavras de seu mestre, Cecille inflou-se de orgulho porque eram palavras sábias. Tudo que seu mestre dizia estava carregado de sabedoria.

— Oh, meu caro amigo, o eu fiz para que Moros me castigasse desse modo? E essa guerra… nunca imaginei que Themaesth pudesse resistir tanto. — A boneca se pegou sentindo pena do pobre homem. Sua voz estava cansada e carregava o peso de uma tristeza imensurável.

— Eles possuem fortes muralhas e o deserto nos é estranho e traiçoeiro... essa guerra ainda durará alguns anos… — Cecille saiu de seu quarto em passos rápidos. Havia terminado sua pintura e queria a aprovação de seu tão amado mestre. — Olá Cecille, o que temos aqui?

— Rosas! Espero que elas sejam de seu agrado, mestre. — A boneca sorria em plena felicidade. A simples contemplação de seu criador lhe inspirava alegria.

— Estão lindas, querida. Diga-me, você não notou a presença do rei Milan? — Um súbito rubor teria tingido a face da boneca, se esta não fosse de pano. Que indelicadeza a dela!

— Perdoe-me! É um imenso prazer conhecê-lo. — E a bela boneca sorriu enquanto fazia a mais caprichada de suas mesuras.

— É um prazer conhecê-lo, vossa majestade. — Seu mestre a corrigiu e ela imediatamente realizou outra mesura enquanto pronunciava a frase de maneira correta.

— Não há necessidade de tal formalidade. Não de você, meu caro. — Uma risada calorosa aqueceu o ambiente da sala. Cecille olhava para o Rei, admirada. Como conseguia rir com seu filho em estado tão lastimável? — Nunca me contou que possuía uma filha.

— Sou apenas uma simples boneca, majestade. Bonecas não possuem pais, apenas mestres. — Os olhos do rei se arregalaram e a inocente boneca não entendeu a razão, seu mestre mandou que ela voltasse para seu quarto com uma ordem rápida e a pobre criatura pouco entendeu da discussão que se seguiu.

— Meu reino não pode ficar sem príncipe! Você deveria entender! Crie-me um boneco de Thierry!

— Está pedindo demais, Milan e você sabe disso. Se contrariar Moros dessa forma acabará como Yervant e terá seu reino tomado.

— Sei muito bem o que você pensa sobre Moros, como pode se recusar a prestar um favor a um amigo? Como pode privar um pai de seu filho?

— Não estou lhe privando de seu filho, estou lhe privando de uma falsa ideia de filho. Ele nunca será Thierry, será apenas um boneco com a aparência dele!

— Se continuar a negar, considerarei isso um ato de alta traição.

— A loucura tomou conta de sua mente, Milan? Não pode fazer isso.

— Eu sou o Rei, posso fazer tudo o que eu quiser. Não quero infringir sofrimento logo a você, contudo… você está me deixando sem escolhas.

— Está me ameaçando? Está certo de que quer ameaçar um Inominável?

— Estou ameaçando a ela.

Nenhuma outra palavra foi dita por um longo período. O que fizera? O que fizera? A boneca não conseguia entender o que fizera de errado, embora soubesse que algo fora feito. Por que eles gritavam tanto?

— Mestre? — A pobre boneca chamou. O que estava acontecendo lá fora?

— Fique quieta, Cecille e não saia de seu quarto. — A voz de seu mestre estava tão zangada! Ela sentia todo o seu tecido tremer. Será que ele a odiava? Será que o ato que ela cometera era tão terrível que ele não poderia perdoá-la? Cecille voltou para o quarto e se sentou encolhida na cama, o peso de uma culpa que ela não entendia machucando todo o seu ser.

Aquela foi a primeira vez que Cecille desejou ter lágrimas para chorar.

Horas mais tarde, seu mestre retornou. Ela sentiu a mão quente de seu criador tocar seu braço e imediatamente levantou o rosto. Ele exibia uma expressão triste que partiu seu coração.

— Perdoe-me, mestre. Eu não quis ser uma boneca malvada!

— Por que está se desculpando, querida? Você nunca foi uma boneca malvada. — Ele a envolveu em seus braços, sufocado com um pensamento que Cecille não tinha conhecimento. Contudo, meus caros amigos, eu sei. O que o mestre de Cecille pensava naquele momento, era em como Milan sofreria. Porque Cecille era a representação de sua filha… uma filha que nunca deu sua primeira respiração. Uma filha que levou a vida da mulher que ele amava. E uma representação nunca era o suficiente. Porque Cecille era apenas uma boneca. E era tudo o que ela sempre seria. Uma boneca que acreditava que podia sentir. — Você terá um irmão, Cecille e você deverá ensinar tudo a ele. Deverá ensiná-lo principalmente a dizer adeus.

— Por que, mestre? — Aquilo era tão confuso! Sua leve cabecinha de pano jamais poderia entender o peso daquelas palavras.

— Porque o tempo será a prisão de vocês e com isso há a necessidade de se despedir daqueles a quem o tempo não aprisionou. — E após tantos anos, aquelas palavras pareciam finalmente fazer sentido.

Eram tantas as suas lembranças! E como era difícil recuperá-las! Cecille sentia-se como um imenso deserto, onde cada grão de areia era uma recordação... Como acharia a lembrança certa naquela vastidão sem fim?

Ceci! Ceci, me ajude! Ceci! Eu não quero ir, eu não quero ir com eles!

Aquelas palavras… a que grão de areia elas pertenciam? A boneca tentava vasculhar em suas memórias, por que Thierry estava tão triste?

— Meu querido, eu não sempre lhe ensinei? Somos feitos de pano! E a primeira coisa que devemos aprender é dizer adeus. Foi isso o que nosso mestre nos disse, essa é a única verdade que conhecemos.

— Eu não quero ir… não quero dizer adeus… não quero deixar você, Cecille! — Eles estavam abraçados, a boneca lembrava agora. Thierry se recusava a soltá-la.

— Irmão, irmãozinho. Você sabe que não temos escolha. Você será um grande rei um dia, sabe? Lembra-se das histórias? Lembra-se do que o mestre lia para nós? Um bondoso rei! Quando chegar o tempo, é nisso que você se tornará e eu ficarei tão orgulhosa! Porque você será o mais amado dos reis viventes! Você será o primeiro boneco a governar e quando nosso mestre deixar, eu irei lhe visitar no seu lindo castelo e então pintarei milhões de quadros para que você nunca se esqueça de mim!

— Você promete não se esquecer de mim, Cecille?

— Prometo, Thierry, prometo. Eu jamais poderia, porque você é tecido do meu tecido.

A porta do quarto se abriu, revelando a figura de seu mestre. Ele levaria Thierry e como eles estavam tristes! O próprio mestre exibia uma expressão soturna, seus lábios estavam entreabertos, como se houvesse esquecido o que iria falar.

— Cecille? Ei, Cecille? Está tudo bem? — Aquela não era a voz de seu mestre. Richard havia voltado. A mente da boneca afastou-se das lembranças e buscou focar naquele que ela já não saiba se poderia chamar de amigo.

— Oh, sim, estou ótima. Desculpe, acabei adormecendo… — Era uma mentira descarada e Cecille se sentia péssima com isso. Detestava mentiras. Rick olhava fixamente para a mão da boneca e ela se perguntava o que teria de errado com ela. Foi então que se lembrou da carta. — Sinto muito! Não foi minha intenção, veja, sei que foi uma atitude desrespeitosa, mas... quando vi que era de Aubrey não pude evitar, queria saber se ele estava bem, entende? Ele me deu meu olho postiço quando eu perdi o verdadeiro.

— Cecille você não deve falar a ninguém sobre essa carta. — Em um movimento rápido ele a arrancou da mão da boneca e a rasgou em minúsculos pedaços. Tão pequenos que seria impossível juntá-los. Ele olhava nervosamente para a porta fechada, teria ele encontrado o homem que berrava? — Eu poderia morrer se você contasse. Está entendendo, Cecille?

— Sim, Rick, sinto muito… n-não foi minha intenção. — Ele a olhava duramente até que aos poucos foi amolecendo o olhar. Os olhos celestes de Rick desviaram-se para o quarto, observando a arrumação que a boneca havia feito. Um sorriso brincava em seus lábios quando ele tornou a olhar para a boneca.

— Você fez um ótimo trabalho — A expressão da boneca se iluminou, era como se ela não fosse elogiada em anos. Teria que dar um jeito nela, talvez Frank pudesse tomar conta dela.

— Fico muito feliz! Eu gostaria de lhe agradecer por ter me costurado, eu não pude deixar de tentar retribuir o favor. — Ele a encarava sem vê-la, pensava se poderia tirar algum proveito da boa vontade da boneca, conquistar a amizade dela não parecia ser um trabalho difícil. Teria que mantê-la por perto, não queria arriscar que ela contasse sobre a carta. E o que dera em Aubrey escrever uma coisa dessas? — Olhe! Uma borboleta, isso me faz lembrar…

A figura solitária de uma borboleta voava do lado de fora da janela. Uma linda borboleta azul que ainda assim conseguiu fazer com que o sangue de Richard gelasse em suas veias. Em desespero, o homem correu até a janela e a fechou com força, sua respiração estava acelerada. Foi por pouco, por muito pouco…

— O que houve? — Cecille não conseguia compreender a estranha atitude do homem. O que havia de errado com uma pobre borboleta?

— Não… é nada. Não é nada. — Várias imagens invadiam a mente de Richard deixando-o enjoado. Um barranco, um cadáver e então uma casa incendiada e aquele maldito cheiro… depois de tantos anos ainda era capaz de lembrar-se daquele cheiro.

— Tem medo de borboletas? — A boneca aproximou-se lentamente de Richard que havia sentado no chão com a cabeça entre as pernas.

— Não, delas não. — Por que não conseguia esquecer? Era como se o quarto estivesse impregnado com aquele odor horrível, era como se ele estivesse dentro daquela casa…

— Tem medo do jovem Leharuin? — Richard levantou a cabeça em um piscar de olhos, o que acabou por assustar Cecille. Os olhos azuis do rapaz estavam dilatados, ela nunca viu alguém com tanto medo assim. — Ele é uma boa pessoa… impediu que um grupo de crianças colocasse fogo em mim.

— Cecille… cale a boca… — Eles ficaram em silêncio por vários minutos. Cecille o encarava com um olhar magoado, jamais presenciou tanta grosseria! O choque havia silenciado a boneca. Não conseguia aceitar o fato de que ele pronunciou tais palavras.

Richard respirava com dificuldade, os olhos fechados com força como se aquilo fosse expulsar as lembranças de sua cabeça. A culpa o esmagava de forma avassaladora e não importava para onde ele fugisse, ela nunca ia embora. Por mais que buscasse se distrair, ela sempre estaria presente. Assim como aquele cheiro de carne humana queimando, assim como os gritos. Só percebeu que estava chorando quando sentiu a mão da boneca em seu rosto, seus olhos abriram rapidamente e ela afastou a mão, como se tivesse levado um choque.

Ficaram se encarando por anos, ou assim pareceu para Richard. A pena estava estampada no rosto da criatura e aquilo o irritava. Entretanto não havia forças na voz de Rick para brigar com ela, não havia forças no corpo de Rick para mandá-la embora e quando a boneca o abraçou ele apenas retribuiu o abraço e deixou que as lágrimas o sacudissem. Porque ele nunca recebera um abraço daquele tipo, nunca havia sido consolado porque nunca se achara digno disso.

— Está tudo bem, não precisa se preocupar… vai ficar tudo bem… apenas coloque essa tristeza para fora. — Não estava tudo bem. Nunca ficaria tudo bem. Porque ele matou seu melhor amigo… ele matou Travis e culpou Leharuin… e a casa dele ardia em chamas com todos aqueles que ousaram amá-lo. E Richard ainda podia sentir o cheiro, o cheiro que envenenava o ar de seus pulmões. Os gritos de desespero daqueles cujos corpos eram devorados pelas chamas e aquilo de nada adiantou porque Leharuin não estava na casa… mas apenas ele sabia. Apenas Rick sabia que aquele estranho garoto que era perseguido por borboletas laranjas estava observando do topo da colina.


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Notas finais do capítulo

Caros leitores! Peço infinitas desculpas por ter demorado tanto para postar esse capítulo, os dias aqui têm sido corridos! Irei me esforçar para não atrasar com os próximos! Gostaria de agradecer a todos os comentários tão carinhosos que eu recebo, eles são maravilhosos! É uma honra ter leitores como vocês! Espero que gostem desse capítulo! Beijinhos.