O Chamado das Borboletas escrita por Ryskalla


Capítulo 8
Capítulo 7 - Pobre Cecille




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Temo, amigos, que tenhamos que abandonar Leharuin novamente. Sinto dizer a vocês que essa história dará muitas voltas, mas lhes asseguro de que, no fim, verão que tais voltas serão importantes para entendê-la completamente.

Uma boneca solitária caminhava pelas ruas imundas de Anankes. A pobre boneca que andava torto, infelizmente não sabia costurar. Foram tantos que a judiaram, que a rasgaram e a sujaram, que ela já nem mais se reconhecia. E o seu mestre? Onde estava? Ela não sabia, não sabia.

Uma de suas pernas estava torta, pois ela havia caído e a pobre Cecille, sem opção, se viu obrigada a costurá-la com as próprias mãos. Um de seus olhos estava perdido, e o substituto incolor de quase nada lhe ajudava. Agora, até mesmo o olho original que lhe restara estava começando a se soltar.

Como era dura a vida da boneca! Tudo o que ela queria fazer era chorar. Porém tecido não se molha sozinho e, por causa disso, seu sofrimento ela não poderia expressar.

— Pobre Cecille, sem mestre! O que será de mim? — ela se lamentava sem saber onde mais procurar. Por que seu mestre a abandonara? Ela não fora boa o suficiente? Ele já não gostava de seus desenhos? Não havia resposta. Tinha que encontrar seu mestre e, assim, ela seria bela outra vez. Seria amada e nunca mais a maltratariam de novo. Como era boa aquela época! O coração da boneca doía ao lembrar (pelo menos doeria, se a boneca tivesse um). Bonecas não possuíam coração; aquele era um presente que apenas humanos possuíam.

Devido à sua visão precária, acabou por tropeçar. Que desespero ela sentiu quando seu braço caiu! O olho substituto agora pendia em seu rosto. Cecille não sabia se procurava o seu membro perdido ou se impedia que seu olho caísse.

Tão perdida estava diante da sua situação lastimável, que sequer notou a aproximação de um estranho. Na realidade, o estranho era o menor de seus problemas. A boneca também era observada por um grupo de crianças. Boa parte dos adultos daquela região já conheciam a desgraçada boneca Cecille, contudo procuravam evitá-la. Era certo que eles sentiam pena dela, só que acreditavam que ela trazia azar, e por isso era possível visualizar um misto de desgosto em seus olhos. Saia daqui, pareciam dizer, pare de nos atormentar.

Onde eu estava? Sim, as crianças e o estranho. O homem era capaz de reconhecer a maldade no olhar de uma criança e, aqueles pestinhas em questão, haviam soado o alarme na cabeça dele. Elas iriam descarregar aquele sentimento vil na boneca e sabiam que adulto algum as parariam uma vez que começassem. Num ato instintivo, caminhou na direção do ser pavoroso, parando para pegar o braço de pano caído no caminho.

Quão grande foi a sua surpresa e medo quando alguém segurou seu braço? A pobre criatura se esforçou ao máximo para focalizá-lo. Era um homem alto de cabelos loiros despenteados. Ele a ergueu com força do chão e a arrastou rapidamente por um caminho que ela mal conseguia visualizar.

— Seu braço. — A voz do homem era grave, porém não era assustadora. Cecille tentava visualizá-lo e, pelo que pode ver, ele não parecia querer atacá-la. Poderia ter suspirado aliviada, mas no lugar disso, resolveu dar o melhor dos seus sorrisos.

— Obrigada, senhor. Veja, eu estava realmente em apuros lá! E os humanos por vezes tentam me descosturar, fiquei assustada quando fui repentinamente puxada. Acreditei que você iria descosturar minha perna, entenda. — A boneca tagarelava e o homem começava a se arrepender de tê-la salvo, mesmo que o sorriso dela tenha aquecido algo que havia se congelado dentro dele. Ela ficava um pouco bonita, quando sorria. No entanto, talvez realmente fosse melhor, para ela, ser queimada e ter sua existência apagada. 

Não, não era isso. O fogo nada resolvia, ele havia aprendido isso quando criança, não havia? Muitos foram os erros de seu passado e ele nada poderia fazer para corrigi-los. Tudo o que lhe era permitido, era evitar cometer outros erros. Sim, era isso e, se a crença popular estivesse certa… o sentimento de já ter vivenciado aquela situação foi a forma que Moros encontrou de lhe avisar de que estava seguindo o destino que ele lhe designara.

— Você… é o quê? Exatamente? — A boneca o ouviu perguntar e imediatamente sentiu-se ofendida. Que pergunta atrevida! Era evidente que era uma boneca!

— Ora! Eu sou uma boneca, mas que pergunta! Sou a única boneca vivente e, portanto, a mais bela, contudo… estou em estado lastimável! Uma verdadeira desonra! Quando meu mestre não havia desaparecido, eu era certamente a mais bela das bonecas, porque meu mestre cuidava bem de mim, muito bem, sim, senhor. — O homem se perguntava se aquela criatura era incapaz de dar respostas curtas. A noite estava chegando e com ela vinha seu trabalho, que se tornava cada vez mais necessário conforme a situação de Anankes piorava. Como se livraria daquela boneca? — O senhor saberia costurar?

— O… quê? — Uma pergunta totalmente inesperada. O rapaz sequer pensou antes de responder. — Imagino que sim, sei me virar.

— Maravilha! O senhor poderia costurar meu braço! E meus olhos, porque quase não consigo ver e também há a minha perna, que eu costurei errado. Sou um desastre na costura! — O tom de voz da boneca ficava cada vez mais contente conforme ela se enchia de esperanças. Iria poder andar perfeitamente outra vez! E voltaria a enxergar! Poderia explodir de felicidade! — Ora! Que rudeza de minha parte! Esqueci-me completamente de dizer meu nome! Eu me chamo Cecille, prazer. Eu faria uma mesura, contudo minha perna está torta e seria uma mesura vergonhosa. Ah! Seria, sim.

— Não, não. Espere, eu não costuro tão bem assim. Eu iria piorar sua situação e… — Cecille encarava o homem tristemente, fazendo com que ele se sentisse um idiota. Como ela poderia ficar pior? Talvez tenha sido por isso que os olhares hostis das crianças o fizeram agir… aquela boneca era assustadora. Era compreensível querer queimá-la, só que não era certo. Definitivamente, jamais seria certo. Suspirou pesadamente e pegou novamente a boneca nos braços. Ela era leve como uma pluma, por que aquele fato o surpreendera novamente? — Meu nome é Richard. Pode me chamar de Rick.

Dizem que crianças não possuem uma ideia tão certa da morte. Que sua culpa não é tão bem estruturada, pois elas nunca têm noção da grandiosidade de um ato. Rick discordava dessas pessoas. Quando criança, ele fora responsável pela morte de quatro pessoas. A culpa certamente estava lá, como um monstro gigante prestes a engoli-lo. Porque Richard sabia que aquelas pessoas jamais voltariam, que seu melhor amigo jamais voltaria. Ele destruiu um lar e tirara de uma mulher a única pessoa que ela possuía. Mesmo sendo uma criança, ele tinha consciência da monstruosidade que fez. Era apenas uma brincadeira, certo? Por que aquela brincadeira o transformara em um monstro? Por vezes, em seus sonhos, Rick podia ver o fogo. Lembrava-se do que havia no final do barranco e acordava chorando. Não deveria ter acontecido daquele modo.

E era nisso que Rick pensava enquanto costurava a boneca em seu precário quarto alugado. Tudo porque se lembrara do fogo, aquela parte era sempre pior. Os gritos de desespero, o cheiro de carne humana queimando…

— O senhor costura muito bem! Eu poderia fazer-lhe um desenho, se quiser. Meu mestre gostava de meus desenhos. Pobre Cecille sem mestre! Por onde ele andará? Será que ele sente minha falta? — Suas falas eram intermináveis, e Richard mal prestava atenção à maioria delas, pois o rapaz estava concentrado no que fazia e imerso no passado. Além disso, eram formais demais para ele. — Você acha que o mestre sente falta da Cecille, Rick?

— O quê? Claro que sim. Você era muito especial para ele. — A boneca ficou em silêncio, reflexiva, e Rick agradeceu a Moros por aquele ato de bondade. Havia finalizado o braço e agora iniciava o processo de descosturar a perna da boneca que, de fato, havia feito um péssimo trabalho. Mesmo sabendo que ela era uma boneca, aquele simples gesto o envergonhava. Não que nunca houvesse tocado a perna de uma mulher… na verdade ele já não era capaz de numerá-las, mas ainda assim… existia uma inocência naquela criatura que parecia realçar todas as impurezas do coração de Richard.

Cecille lembrava-se dos tempos de felicidade que tivera outrora. Como sentia falta! Lembrava-se dos quadros que fazia ou de quando ajudava seu mestre em algum projeto, segurando ou buscando coisas. E, sempre que se machucava, seu mestre estava lá para costurá-la outra vez. Não apenas isso, seu mestre a presenteava com belos vestidos e sapatos e… ela era tão formosa! Era tão bonita que poderia ser confundida com uma humana! Assim como aquele que era proibido pensar, pois seu mestre dizia: Cecille, você sempre fala o que pensa, por isso deve se esquecer daquele detalhe. Nunca deve se lembrar dele. E Cecille obedeceu a seu mestre. Evitava tanto pensar que agora já não se recordava do que deveria esquecer.

— Hm, Cecille. — Rick fez a sua atenção voltar. Como estava feliz por ele iniciar um assunto! Era verdade que seria muito rude da parte do rapaz se não o fizesse, porém a boneca o entendia. O rapaz estava concentrado, porque ele não costurava tão bem quanto o mestre (mesmo que costurasse muito melhor que ela)! — Há quanto tempo você... existe?

— Que pergunta indelicada! Não se deve perguntar a idade de uma dama! — E se lhe fosse permitido, a boneca coraria; contudo, tecidos não se tingem sozinhos. A verdade era que Cecille não sabia. Estava perdida certamente há muito tempo... talvez... talvez desde que aquele que ela não podia recordar existia. Não foi pouco depois que seu mestre desapareceu? Ele veio depois… muitos anos depois, como ele era? — Não, não, não! Não posso pensar nisso!

— Pensar em quê, Cecille? — A boneca encarou Richard sem entender por alguns segundos, até que finalmente percebeu.

— Oh, estava pensando alto! Não posso pensar em como estou desconcertada! Sinto falta de minha antiga aparência. — O jovem abriu um leve sorriso. Seja lá como ela foi criada, Rick se perguntava se não havia faltado inteligência àquela boneca. Ou talvez lhe sobrasse ingenuidade. Aquilo de algum modo o divertia… não da forma que estava acostumado a se divertir, não… aquela era uma maneira nova. Pura. Naquele momento, a boneca o fazia se sentir puro. Como a criança que nunca foi.

— Acho que agora começa a parte mais difícil… Só para que você saiba, eu nunca costurei um olho na minha vida. — A boneca acenou vigorosamente. Parecia que ela possuía plena confiança nas habilidades manuais de Richard. O pobre jovem não sabia se aquilo o orgulhava ou o deixava receoso. O que aconteceria se costurasse errado? — Por favor, fique muito quieta. E nem fale, não quero lhe deixar cega.

Cecille pensou brevemente em acenar, mas se deu conta de que, se o fizesse, estaria desobedecendo à ordem de Rick. Limitou-se a um silêncio torturante enquanto aguardava.

A imobilidade da boneca o reconfortava, afinal, era assim que uma boneca deveria ser. Recordava agora do momento em que a viu: quando olhou para ela pela primeira vez não acreditou em sua existência. Pelos olhares que havia observado, dava pra notar as poucas pessoas daquela região já a conheciam. Enquanto a carregava até um abrigo, descobriu que havia até uma lenda sobre. 

Revoltava-lhe encontrar pessoas que diziam sentir pena daquela pobre criatura, porque Richard conseguia ver o medo nos olhos da maioria… cedo ou tarde ela seria queimada e pensando sobre isso, o loiro estava verdadeiramente surpreso. Aquela boneca aparentava ter décadas… e, de certa forma, ainda estava inteira. 

Cecille sequer respirava e talvez nem precisasse. Provavelmente, em alguma parte da consciência daquela boneca, ela tentava ser humana e, portanto, buscava imitá-los. Mal sabia ela o quanto fora abençoada por Moros. Uma desgraçada existência abençoada pelo destino...

— Consegue ver? — ele perguntou incerto. Não foi preciso esperar muito para saber a resposta. Cecille se levantou em um salto e começou a pular pelo quarto desarrumado. Richard reparava agora nas garrafas vazias de bebidas alcoólicas e nas roupas espalhadas pelo chão. Havia algo que ele não tinha certeza se era a roupa íntima de uma mulher, não era improvável. Muitas desconhecidas foram trazidas até ali e ele percebeu que talvez fosse melhor buscar outro esconderijo, afinal... o rei eternamente jovem não era gentil com ladrões.

— Eu posso ver! Posso andar! Você costura tão maravilhosamente bem! Veja, eu estou vendo! E já não ando torto! Posso andar normalmente! Muito obrigada, Rick! Veja, até mesmo posso fazer uma mesura! — O rapaz sorria enquanto a assistia fazer sua tal mesura. De nada entendia daquelas formalidades, então tanto lhe fazia. Entretanto, o rapaz ficou especialmente surpreso quando a boneca jogou-se em seus braços e deu-lhe um forte abraço. — Você não imagina o quanto eu estou feliz!

— Acho que eu consigo ver essa sua felicidade. — Era assim que os curandeiros se sentiam? Isso, é claro, se Richard pudesse definir o que sentia. Aquela sensação era completamente nova.

— Poderia costurar meu outro olho? Sinto que ele se soltará em breve. — Richard desviou sua atenção para a janela; a noite havia chegado sorrateiramente. Estava na hora do seu trabalho. Suspirou e retornou para a boneca.

— Tenho que trabalhar agora. Fique aqui e, quando eu voltar, irei costurar o outro. — A boneca assentiu veementemente. Ela era muito obediente, e ele pensava se talvez pudesse tirar proveito daquela situação. Imaginava se ela poderia lhe ser útil. Acreditava que sim, todo mundo possuía alguma utilidade. — Não saia daqui, entendeu? Não abra a porta para ninguém e… e fique quieta, por favor.

— Sim, Rick. — Ele segurou o riso e foi em direção à porta, bagunçando o cabelo da boneca no caminho. Era estranho, sabia que aquilo deveria ser algum tipo de tecido, entretanto… parecia muito com cabelo humano e um calafrio percorreu sua espinha ao pensar nisso. Não podia ser humano. Não, obviamente não.

Após seu salvador sair pela porta, a boneca olhou ao redor. Estava uma lástima o estado daquele lugar. Tão lastimável quanto ela própria! Poderia retribuir a bondade daquele humano! Sim, iria arrumar toda aquela bagunça e assim distrairia sua mente. Não correria o risco de lembrar, não se lembraria de nada, já que sua cabecinha de pano estaria ocupada.

E imaginem que susto ela tomou quando bateram na porta! Não conseguia se lembrar se fazia muito ou pouco tempo desde que Rick a deixou ali. Não conseguia se lembrar há quanto tempo o tempo deixou de significar alguma coisa para ela.

— Richard, seu patife! Eu sei que está aí. Pague o que está devendo! Eu não vou sair daqui! — berrava com grande raiva. A boneca decidiu que o mais sensato a se fazer era não abrir a porta, afinal de contas, Rick havia dito para ficar quieta e não abrir a porta. Provavelmente ele sabia que aquele homem deselegante faria tamanho estardalhaço cedo ou tarde. Resolveu que já estava na hora de iniciar seu trabalho e logo os berros e as batidas na porta se tornaram algo abafado que ela já nem se importava.

E por mais que sua cabecinha de pano estivesse ocupada, ainda havia aquela sensação incômoda de que deveria se lembrar de algo. Mesmo que ela tentasse se convencer de que aquele não era o desejo de seu mestre, sua mente continuava a se esforçar. Ela não podia lembrar! Por que queria tanto lembrar? Que boneca desobediente eu sou, ai de mim! Era o que Cecille pensava em desespero.

Terminada a arrumação, a boneca não poderia estar mais feliz. Encontrou duas latas de tinta! Sendo uma delas para tecido! Era fantástico! Se havia tinta, deveria haver um pincel. Passou então a procurar, poderia pintar seus cabelos desbotados! De certo ficaria mais bela e aos poucos poderia voltar a ser parecida com a sua eu de antigamente (já que nunca seria igual, eram muitos os remendos em sua pele… Será que conseguiria escondê-los?). E claro, pensar em pintar havia distraído sua teimosa mente. Como ela poderia estar mais satisfeita? Continuou a buscar, a esperança de que o próximo lugar que olhasse seria o local onde encontraria o tão preciso pincel.

Em uma pequena cômoda, Cecille encontrou uma carta. Não a teria lido, pois ela sabia como era errado bisbilhotar. Era uma atitude muito feia para uma dama! O que estragou tudo foi o nome que havia na carta: Aubrey Fremont. Aubrey. Lembrava-se de Aubrey, ele era seu amigo. Sim! Há quanto tempo conhecera Aubrey? Sentia falta! Ele foi muito gentil dando-lhe aquele olho transparente quando seu original havia se perdido. Tão gentil quanto Rick, e que boa notícia era essa! Saber que ele e Rick eram amigos!

Ou não tão amigos assim…

 

Richard,

Sei que tivemos nossas desavenças, mas não devemos temer o destino. O quão mais injusto ele poderá ser? Preciso de sua ajuda… tenho uma teoria sobre a fraqueza do Rei Thierry. Sim, meu amigo, algo que possa destruí-lo e acabar com esse reinado de tirania.

Peço aos Céus, que sempre cumprem seu dever, que nos abençoe com um Rei justo. Um rei que destitua Moros como deus e passe a olhar para os necessitados.

Daquele que um dia foi seu grande amigo,

Aubrey.

 

Seu mestre estaria desapontado com a pobre Cecille agora. Porque ela lembrou. Mesmo lutando contra isso, ela havia lembrado. Porque havia um nome. Porque havia Thierry. Cecille havia lembrado… porque Thierry era o nome de seu irmão.


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