O Chamado das Borboletas escrita por Ryskalla


Capítulo 6
Capítulo 5 - Uma Grande Maldição


Notas iniciais do capítulo

Capítulo betado



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Quando Eruwin acordou, a Lua estava alta no céu, embora escondida por nuvens tempestuosas que deixavam cair gotas pesadas e soltavam raios ameaçadores. A sereia se assustou com o barulho e Henry logo se aproximou para tranquilizá-la.

— O que aconteceu? — ela perguntou. Memórias desconexas pouco a pouco começavam a se ligar em sua cabeça, porém ainda havia espaços em branco que a assustavam.

— Você acabou desmaiando, acho. Trouxe você para o hotel e dormiu até então. Tava esperando que você acordasse pra te devolver ao mar… Só que essa tempestade caiu mais cedo que o esperado. — Os olhos dela estavam agitados e tristes. Um relâmpago iluminou o quarto e foi seguido por um sonoro trovão que fez o coração de Eruwin acelerar. Henry podia senti-la tremer debaixo das cobertas.

— Não gosto desses barulhos… No mar eles não são altos assim — ela murmurou, e Henry deu um leve sorriso, Eruwin realmente parecia uma criança. A sereia olhou para o rapaz durante algum tempo com uma expressão culpada e torturada. — Eles… eles te machucaram muito?

— Um pouco, mas já estive em situações piores, acredite. Logo esses machucados irão sarar, sou um cara forte — acrescentou e deu o melhor dos seus sorrisos, fazendo com que Eruwin acabasse por sorrir também. Henry sentiu seu coração pesar. O sorriso dela era encantador e o fez perceber que ele era a maior ameaça ali, não ela. Levantou-se da cama e teria se afastado se Eruwin não tivesse segurado o seu braço. O barulho de um trovão e a sereia estremeceu outra vez. — Tente dormir… Eu vou te acordar quando a tempestade passar.

— Por favor… eu não vou conseguir dormir sozinha… Eu… eu estou com medo. — Seu rosto adquiriu um adorável tom de vermelho enquanto seus olhos se desviavam dos de Henry. O que ele faria agora? Suspirou e se deitou na cama ao lado dela.

— Se você colocar as mãos nas orelhas, o barulho não será tão alto — sussurrou para ela, a qual seguiu imediatamente a sua sugestão. Eruwin escondeu seu rosto no peito de Henry, que instintivamente a abraçou, mesmo que houvesse se arrependido logo em seguida. Tê-la tão próxima assim certamente não era uma boa ideia. Respirou fundo ao passo que desejava que a sereia adormecesse logo.

Eruwin sentia-se protegida, acolhida como nunca fora antes. Sabia que estava sendo egoísta, que ele estava provavelmente no limite de seu autocontrole, contudo… aquele som era tão assustador! Henry estava certo, tampar os ouvidos ajudava, entretanto se ela conseguiu adormecer, fora devido à presença protetora dele.

Tentando distrair sua mente, Henry pensava em Leharuin. Lembrava-se de como todos chamavam o pobre garoto de demônio, o que, naquela época, o enfurecia. Leharuin era, sem sombra de dúvida, mais humano do que muitos naquela cidade, com sua mania de roubar aqueles a quem o dinheiro não faltava para dar àqueles que travavam uma batalha para colocar o pão na mesa. Leharuin, o que parecia não possuir preconceitos… somente alguém como ele para se tornar seu amigo. Um filho de sereia e um pobre garoto órfão (cuja linhagem era amaldiçoada), formaram uma bela dupla durante um bom tempo...

Sim, o ladrão era amado por um pequeno grupo de pessoas, mas era temido. Muitos tinham medo do jovem Leharuin. A simples figura de uma borboleta solitária já era motivo para espalhar temor. A admiração que sentia por ele beirava a inveja, já que não havia, em todo o reino, um único ladrão que a ele se igualasse.

Sua amizade poderia ter sido eterna se não fosse pelo erro de Leharuin. Um erro fatal que custou a vida da jovem que ele mais amou. Jamais poderia perdoá-lo.

Evangeline era dona de uma beleza inocente, não aquela do tipo estonteante como a de Eruwin, porém... mais natural, humana. Mesmo através das lembranças, ainda era capaz de se fascinar pelos cachos dourados da garota. Henry acreditava que ela nunca soubera que ele a amara. Podem perguntar, meus amigos, por que ele nunca se declarou. De fato, ele poderia ter dito, Henry não possuía esse tipo de covardia, todavia… Moros por vezes gosta de brincar com seus fiéis. O coração de Evangeline já fora tomado por Leharuin, mesmo que ele não retribuísse esse amor. Ao se lembrar disso, Henry se perguntou se Leharuin alguma vez amara alguém. Duvidava que houvesse. Queria poupar-lhes, companheiros, de terem que ouvir sobre a morte daquela moça tão doce, porém… acredito que não entenderiam a raiva (talvez ódio) de Henry se eu não o fizesse.

Ele se recordava daquele trágico dia enquanto tinha Eruwin nos braços. De como aqueles homens invadiram a casa da família de Evangeline, exigindo-a. Lembrava-se do pai dela chorando, dizendo que haviam levado sua garotinha e como não fora capaz de impedir. Então Henry correu. Não era difícil saber para onde a levariam, sendo ele um garoto pobre. Todos os pobres sabiam para onde eles levavam as garotas.

Havia em média dezoito homens, e Henry era apenas um garoto de quinze anos que não se deixou intimidar. Com lágrimas nos olhos, correu para cima deles. Um jovem triste e desnutrido que não ofereceu grande desafio para o grupo. Foi surrado até quase ficar inconsciente, o que teria sido uma dádiva — que aqueles homens não tinham a intenção de conceder. Fora obrigado a assistir tudo o que fizeram com ela, todos eles. E aqueles homens eram tão brutos… Evangeline era apenas uma garota assustada que ele não conseguira proteger. Uma garota assustada com um olhar que carregava todo o sofrimento do mundo.

Depois de tudo o que fizeram com ela, depois de todo o sofrimento e da humilhação, os homens foram embora do local e lá deixaram Henry com sua perna quebrada e uma garota que fora abusada até à beira da morte. O pescador se perguntava se abandoná-la naquele lugar, como se ela fosse uma espécie de lixo, não houvesse sido sua culpa… Um último sofrimento que lhe infligiram: assistir a ela morrer sem nada poder fazer para ajudá-la.

E então lá estava Leharuin. Observando-os com sua expressão ausente costumeira. As borboletas voavam ao redor do “garoto sem coração”. Era isso o que Henry pensava. Porque Leharuin poderia tê-la salvado, porque Leharuin podia desaparecer e reaparecer de uma forma espantosa, porque Leharuin talvez fosse mesmo um demônio.

— Leharuin… por favor… ajude… você pode tirar a Evangeline daqui… antes que eles voltem… Leharuin — Henry se esforçava para falar em um tom audível, poderia estar com as costelas quebradas também? Ele não sabia, nem se importava, tudo o que queria era salvar Evangeline. E ainda assim Leharuin não o fez. Ele passou diretamente por ela e caminhou até Henry, dando-lhe um soco logo em seguida.

As memórias seguintes de Henry eram de quando estava na Casa de Curandeiras. Disseram-lhe que fora trazido por um mercador e que estava fora de perigo. E Evangeline estava morta, ela estava morta, morta, morta…

Eruwin acordou com as lágrimas de Henry, que também dormia. Tal como o rapaz, o céu também chorava, era engraçado como o mundo se tornava cinza na superfície quando as lágrimas celestes caíam. Será que os pensamentos de Henry também estavam daquela cor? Por que ele estava chorando? Talvez ele não quisesse devolvê-la ao mar, não queria se afastar dela, porque ele certamente havia se apaixonado.

— Henry? — a sereia murmurou, e ele acordou num sobressalto. Quando havia dormido? A tempestade havia passado, apenas uma chuva fina teimava em permanecer. Ele olhou para Eruwin por um tempo e se afastou. — Você está bem?

— O quê? Sim, sim. — Acreditou que ela ainda estava preocupada com seus machucados. Esfregou os olhos e percebeu que eles estavam molhados… Ah, então era isso. — Estou bem, sim, apenas tive um sonho triste.

— Sabe, eu não preciso voltar para casa… Posso ficar aqui, se quiser. — Ela se recusava a olhar para Henry, sentia o rosto esquentar e lamentou ter dito aquelas palavras.

— Eu não posso ser egoísta e exigir isso de você. Seu lugar é com suas irmãs, lá é mais seguro e você, com certeza, vai ser mais feliz. — A verdade era que Henry não queria a sereia por perto. Estavam ficando perigosamente próximos e a lembrança de Evangeline estava fresca em sua cabeça. Mesmo que Eruwin possuísse pernas agora, ainda era uma sereia, portanto teria que medir muito bem as palavras, era como pisar em ovos. — E elas devem estar muito preocupadas com você.

— Tem razão… — murmurou, sem saber ao certo se ficava feliz ou triste. Buscou se alegrar, afinal Henry estava preocupado com ela. Ele queria que fosse feliz, queria o melhor para ela. — Sim, irei voltar.

Os dois continuaram em silêncio desde então. Henry a guiou até um pequeno barco e a ajudou a entrar. Apesar do fantasma de Evangeline ainda assombrar sua mente, ele não conseguiu deixar de sentir o vazio se formando em seu peito. O que a sereia estava pensando? Sentiria sua falta? Por mais que detestasse admitir, parte dele desejava que sim.

Queria levá-la para o mais distante possível do porto, não gostaria que ela corresse o risco de ser apanhada outra vez. A Lua tímida começava a aparecer no céu e a chuva pouco a pouco parava de cair. Quando Henry achou que estava distante o suficiente, parou o barco e olhou para a sereia.

— Imagino que seria melhor você retirar o seu vestido. Ele pode te atrapalhar depois. — ela concordou, e ele a ajudou a retirar as roupagens, a conhecida sensação de tremor em suas mãos não lhe atrapalhou tanto dessa vez. Pensava no passado, naquela a quem ele devia seu coração. Por mais bela que fosse a sereia, não era ela quem ele amava e pensar daquela forma o ajudava a controlar seus instintos mais sórdidos. Assim que Eruwin se viu livre das roupas, se jogou no mar desfrutando do júbilo, mesmo com a dor, de ter suas barbatanas de volta. Era como ter sua liberdade novamente, sua segurança… Todo o cansaço e fraqueza que sentia enquanto possuía aqueles membros frágeis foram banidos de seu corpo ao recuperar sua real natureza. — Acho que isso é um adeus.

— Antes de ir, eu gostaria de lhe pedir uma coisa. — A sereia se apoiou no barco e isso preocupou Henry, cujos sentidos ficaram em estado de alerta. Aquela que nunca revelou seu nome o olhava intensamente, o que só fez aumentar o desconforto que ele sentia. — Eu não quero que você me esqueça… Eu sei que irá e que uma humana roubará seu coração. Eu quero um beijo… Você é um humano diferente das histórias, não me importo que meu primeiro beijo seja com você.

Aquilo o pegou desprevenido. Como deveria agir diante de tal situação? Instintivamente, Henry se afastou e, para seu azar, a sereia percebeu sua relutância.

— Eu… Você sabe sobre a lenda do beijo de uma sereia, não sabe? Eu jamais vou ser capaz de amar outro alguém, vou viver sozinho e não terei filhos para falar sobre você. — Amaldiçoou-se, era um erro dizer aquilo! E se Eruwin desejasse ter um filho seu? Respirou fundo e colocou a mente para funcionar, tinha que sair dali vivo e sem receber o beijo da sereia. O problema seria como fazer isso… — Não posso fazer isso… Acho que sou como os outros homens, afinal.

— Você me disse que não era igual aos outros humanos! E como você acha que é a existência de uma sereia que se apaixona por um humano? É completamente solitária! Achei que você pudesse entender. — O tom de voz dela começava a ficar mais alto, estava claramente irritada e magoada. Entretanto, Henry não poderia fazê-lo, não poderia esquecer Evangeline.

— Eu já amo outro alguém… — Aquilo fora tudo o que lhe restara. Esperava que a sereia fosse compreensiva, mas os olhos de Eruwin passaram rapidamente de dor para ódio até que a sereia assumiu uma expressão sarcástica.

— Ama mesmo? Porque não importa quem seja, eu sou muito mais bela. Eu sei que você me deseja… — Ela estava perigosamente perto, seus lábios cada vez mais próximos. A mão de Henry buscou o remo, porém era tarde demais. Ela conseguira, havia-o beijado.

E que sensação! Nada mais importava, apenas aquela sereia de lábios tão encantadores e doces… Sentiu vontade de se entregar ao mar, viver com ela naquelas águas profundas, e então Evangeline seria apenas uma remota lembrança do passado…

Não. Não poderia esquecê-la. Com o que lhe restava de consciência, Henry golpeou a sereia com o remo.

Eruwin se assustou, como ele fora capaz de resistir? Por uma questão de segundos não o havia levado! Não poderia deixar que ele fosse de ninguém além dela. Aquilo não era uma questão de diversão, um prazer sádico em afogar humanos; aquilo era uma questão de amor. Ela sabia agora, Eruwin simplesmente não poderia aceitar que Henry amasse outro alguém que não fosse ela.

O humano tentou acertá-la novamente com o remo, contudo ela o quebrou com sua barbatana. Estava submersa agora. Henry olhava para o mar, tenso, a qualquer minuto a sereia viraria o barco e aquele seria seu fim. Foi então que pensou ver uma movimentação próxima e, sendo o remo quebrado a única arma digna que possuía, afundou aquela lança improvisada com força na escuridão do mar. O pescador se afastou e caiu sentado quando o remo deu um salto na superfície. Ele sabia que aquilo aconteceria e ainda assim não pôde evitar se assustar.

Sem dar espaço para seu coração se acalmar, Henry se apoiou na borda do barco para procurar pela criatura. Primeiro vieram as bolhas e, logo em seguida, a água se tingiu de vermelho. Onde estava a sereia? Não queria descobrir, seu instinto de sobrevivência falava mais alto que o feitiço que ela havia lhe lançado. Com o outro remo, tentou com todas as suas forças voltar para o porto. Era algo complicado, entretanto as ondas o ajudaram e, antes que se desse conta, estava correndo para seu quarto no hotel.

Ela tinha que estar viva, tinha que estar bem. Porque se não estivesse ele jamais se perdoaria. Henry passou uma noite torturante, com sentimentos de culpa e infelicidade. Aquele amor que lhe fora imposto doía e ele duvidava que fosse capaz de ser feliz outra vez.

No entanto, meus queridos companheiros, o que o rapaz sequer sonhava era que, em algum lugar nas profundezas do mar, uma sereia planejava sua vingança.


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Notas finais do capítulo

Olá, queridos! Aqui está mais um capítulo para vocês :D Espero que gostem e me perdoem por demorar a postá-lo! Gostaria de agradecer por todos os comentários que tenho recebido, eles são maravilhosos! Beijinhos!