O Chamado das Borboletas escrita por Ryskalla


Capítulo 30
Capítulo 29 - A Tempestade


Notas iniciais do capítulo

Em teoria, o Leha ia encontrar a mãe nesse capítulo... Acabou que me empolguei descrevendo o que aconteceu na viagem e aí iria ficar muito grande :v Espero que não me matem por isso q- Esse capítulo eu gostaria de dedicar a todos os 216 leitores que fazem essa fic ser tão especial! Obrigada, gente, de coração s2



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Do ponto de vista de Leharuin, a pirataria não era a liberdade, mas sim a prisão. No mar, não havia para onde fugir, os ataques poderiam acontecer a qualquer momento e ainda havia o escorbuto. O inverno estava ali e, mesmo que os homens não admitissem, uma frase se entranhava cada vez mais em suas mentes: Que Moros nos livre do escorbuto!

A noite anterior foi um verdadeiro pesadelo. Uma tempestade os atingiu no que Sendulum chamava de A Garganta. O ladrão nunca caíra tantas vezes no chão. Estava cheio de cortes e hematomas e havia um gosto amargo em sua boca. Aquilo devia ser uma brincadeira de Moros.

Quando a tempestade estava se aproximando, Sendulum o chamou até a proa e apontou para as nuvens revoltosas.

— Aquela será nossa primeira provação. Se sobrevivermos a ela, conseguiremos chegar até Delfinos. — informou com a voz grave. Não achou que a situação estava tão ruim. Já vira nuvens de tempestades piores que aquelas. Foi como se o capitão lesse seus pensamentos. — Não subestime o poder da tempestade. As que parecem inocentes são as piores. Ela nos pegará na altura d'A Garganta.

— Garganta? — perguntou. O ladrão de nada entendia daqueles termos náuticos, aprendeu um bocado naqueles dois meses que estivera ali, porém não o suficiente.

— Veja o mar como a terra coberta com água salgada. Ele também possui morros e... fendas. A Garganta é uma dessas fendas. — Seu tom era soturno, contudo não havia medo em seus olhos. — Seu irmão e eu quase não conseguimos sobreviver À Garganta. E não estávamos navegando no inverno.

— Mas o que uma fenda embaixo d'água pode influenciar? — Podia entender como uma elevação atrapalharia, poderia danificar o casco e aquilo só atrasaria ainda mais a viagem. Teriam que perder tempo arrumando o estrago.

— Em situações normais? Pouca coisa ou nada. Mas em uma tempestade... O mar quer nos destruir e podemos facilmente perder o rumo. Não é raro recorremos à ajuda da âncora. Manobra de ancoragem é o nome que damos. — Não foi preciso dizer mais nada. Leharuin conseguiu ver o problema e seus olhos se tornaram sombrios.

— Na fenda não vamos ser capazes de realizar essa manobra — O capitão confirmou com um aceno leve. Ambos continuaram encarando as nuvens, o gosto da morte ficando cada vez mais presente. Era amargo. — Estamos entregues a nossa própria sorte, então.

— Moros nos protegerá. — Era a primeira vez que suas palavras possuíam alguma confiança.

— Sabe? Eu estava começando a gostar de você. Estava. — A risada do capitão ecoou pela vastidão do mar. — Você não me chamou aqui apenas para informar da tempestade.

— Perspicaz. De fato, não. Chamei para dizer que, quando ela chegar, você ficará lá embaixo. — Os olhos dourados de Leharuin se franziram.

— No porão? — Quando Sendulum acenou em afirmação, o rapaz sentiu a raiva explodir dentro dele. O que aquele homem achava que ele era? Um covarde? — Como uma menininha indefesa.

— Suas borboletas irão agradecer. E você não ficará fazendo nada lá embaixo. Enzo irá com você. — O olhar de descrença do rapaz lhe divertia. — Ficar no porão pode ser pior que ficar aqui em cima, rapaz. Mantenha as coisas no lugar.

À princípio, Leharuin não entendeu o sentido da última frase.

No entanto, não demorou muito para entender.

Um aroma desagradável impregnava o local e como se não bastasse, a umidade incomodava seu nariz que começava a obstruir. Respirar ali já era difícil por culpa do cheiro... com corrimento seria ainda pior. E para completar, parecia ser ainda mais difícil se equilibrar ali embaixo.

O garoto da pólvora passou e deixou a porta bater acima da sua cabeça, submergindo-os na escuridão. Quando seus olhos finalmente se acostumaram, procurou por Enzo que estava segurando uma espécie de argola presa ao teto.

Leharuin sentou-se em cima de uma das caixas e segurou firmemente as laterais. Por alguma razão que o ladrão desconhecia, aquilo arrancou um sorriso por parte de Enzo.

Não foi preciso muito tempo para Leharuin entender o motivo.

Uma onda golpeou o navio com força e, para o espanto do rapaz, a caixa que ele acreditava estar firmemente presa deslizou pelo chão. Ele saltou no susto, o que se provou um grande erro. Não conseguiu apoio e caiu estatelado no chão. Outra caixa veio em sua direção, porém desta ele conseguiu desviar. Seguiu o exemplo de Enzo e agarrou uma daquelas argolas.

— Um aviso cairia bem, sabe? — Enzo nada respondeu. O barulho dos trovões, o desespero das galinhas e o arrastar de madeira contra madeira quebravam o silêncio entre os dois. Leharuin sabia a razão para Enzo odia-lo agora, mesmo que fosse infundada. — Não entendo o seu ciúmes. Não serei eu quem irá impedi-lo de conquistar Liese, mesmo que eu duvide que seja capaz de tal feito.

— Porque deve ser tão mais fácil simplesmente seduzir o seu alvo de desejo da mesma forma que a mamãe faz... — Se não fosse tão difícil manter-se em pé ali embaixo, Leharuin certamente teria se jogado contra Enzo. Ele sequer tinha o direito de falar tal coisa.

— Se você conseguisse conquistar o coração dela, o que faria depois? Iria devorá-lo? — Com grande satisfação, Leharuin assistiu a expressão do garoto congelar. Aquilo confirmava todas as suas suspeitas.

— Acho que quem tem sangue de sereia aqui é você, não eu. Sua mamãe comeu o coração do seu papai? — A guerra havia se iniciado e Leharuin não estava disposto a perdê-la. Soltou uma curta risada enquanto fungava e desviou o olhar, as borboletas voavam desconfortáveis ao redor dele.

— Há lendas, sabe? De uma ilha próxima ao território do Kraken. Dizem que ela é habitada por canibais. E que você não se torna homem até vencer um duelo e devorar o coração do perdedor. — O garoto o encarava friamente, ele podia sentir. Foi você quem quis brincar com o passado dos outros, moleque, o ladrão pensava, foi você quem resolveu me odiar. — Eu me pergunto se eles tomam gosto pela coisa. Comer outras pessoas. Devia tirar essa pena do cabelo, falam que todos os que venceram o duelo usam uma. Para provar que são homens. Eu odiaria ser confundido com um canibal.

— O engraçado sobre as lendas, é que raramente contam a verdade. Há lendas em que você é um demônio, que pode desaparecer e reaparecer em qualquer lugar. E também que enfeitiça garotinhas surdas para que elas continuem te esperando enquanto você as abandona continuamente. — Os trovões se tornavam mais frequentes agora e, para o espanto do ladrão, o navio balançava ainda mais. Mesmo Enzo encontrava certa dificuldade em se segurar. Entre gritos, o pequeno pirata retirou Leharuin de suas preocupações. — Mas essa parte não é uma lenda, não é?

— O quê? — O rapaz questionou, confuso. Talvez vocês pensem que o ladrão tem uma memória muito ruim ou mesmo que não sabia como ganhar aquela guerra. Bem, isso é porque vocês não estavam no navio naquela noite. As caixas arrastavam-se pelo porão e vez ou outra se chocavam contra as pernas de ambos. As galinhas faziam um som insuportável e quando, em um solavanco brusco, elas escaparam de seus gradis, Enzo moveu-se habilidosamente por entre as armadilhas de caixotes quebrados e os inteiros que ainda moviam-se como fantasmas furiosos de um lado para o outro. A visão na parte de cima do navio era ainda mais assustadoras. Ondas enormes que engoliam até mesmo o mastro da proa! Os alimentos que se encontravam no convés já estavam completamente perdidos.

Leharuin tentou impedir que um dos tonéis de água se estourasse, mas tudo o que conseguiu foi um corte feio no braço, vítima de um caixote destruído cuja madeira se transformou em uma estaca. Nem mesmo as borboletas estavam a salvo, por mais alto que voassem, por vezes eram atingidas por algo quando uma onda jogava todos para o alto.

Derrotados, tanto Enzo quanto Leharuin se viram obrigados a protegerem a si mesmos e deixar os recursos à própria sorte.

Por duas vezes o ladrão acreditou que iria morrer e até mesmo pediu para que Moros poupasse sua vida... porque ele tinha uma promessa a cumprir. Porque ele tinha que voltar vivo para se casar com Clara. Frequentemente seu olhar recaía sobre o jovem pirata. Não havia temor em seus olhos celestes e aquilo lhe deixava envergonhado. Como poderia ter mais medo que aquele garoto?

Dormir era impossível, mesmo que estivesse terrivelmente cansado. Bastava um piscar de olhos para ser jogado para algum lugar com os movimentos bruscos do navio. Sua vida dependia inteiramente do capitão Sendulum e de sua tripulação agora. O ladrão jurou agradecer ao pirata caso saíssem vivos dali.

O tormento durou até o raiar do dia.

Quando saíram do porão se deparam com um navio sem velas e com o grande mastro partido. Os homens já estavam fazendo os consertos necessários e Sendulum exibia uma expressão arrasada.

— Tivemos sorte. Se a tempestade continuasse provavelmente não teríamos sobrevivido. Infelizmente, creio que perdemos o rumo. — E aquilo só os atrasaria ainda mais, Leharuin pensou irritado, assim como os estragos do navio... havia prometido a Clara que chegariam em seis meses e agora nem sabiam ao certo onde estavam.

— O capitão fez um grande trabalho ainda assim... obrigado. — murmurou, como havia prometido a si mesmo.

As preocupações, no entanto, se mostraram infundadas. As borboletas sobreviventes apontaram a direção que o navio deveria seguir e os consertos foram feitos. Nenhuma tempestade tão forte quanto aquela os atingiu outra vez, mesmo que ainda houvessem tempestades.

— Eu preferia enfrentar o Kraken a passar por uma tempestade daquelas de novo. — confidenciou um dos piratas certa noite. Um grupo de vigilantes comia uma sopa insossa. As poucas galinhas que sobreviveram já encontraram seu destino na panela semanas atrás. Tudo o que lhes restava eram alguns vegetais e as laranjas. As abençoadas laranjas.

— Nem fale uma merda dessas. — O pirata que atendia pelo nome de Olho Vidrado deu um soco tão forte nas costas do companheiro que o pobre coitado se engasgou, arrancando uma risada geral. Leharuin olhava para todos, enjoado. Não era apenas pelo balançar da embarcação... o próprio gosto dos alimentos parecia deteriorado. Sem contar o cheiro... não poderíamos nos esquecer do cheiro. — O Kraken afundaria esse navio em um piscar de olhos. Dizem que ele possui oito tentáculos, como o polvo. E é isso que falam por aí, que aquele bicho é a merda de um polvo gigante.

— O Kraken não é um polvo gigante. — Enzo comentou entre risos. Os homens olharam para ele com uma expressão carrancuda. Era claro para Leharuin que todos os tripulantes gostavam de Enzo, apenas fingiam que não por ser divertido implicar com ele. O garoto da pólvora, por mais incrível que isso possa parecer, era tão respeitado quanto o capitão. — O Kraken é um dragão marinho.

— Bobagem! — gritaram e logo ficaram em silêncio, um claro sinal para que o jovem continuasse sua história. Por mais que Leharuin tenha passado a detestar o pirralho com o passar dos meses, ele devia admitir: ele contava excelentes histórias.

— Acreditem no que quiserem, mas essa é a verdade. É um enorme dragão que vive no abismo do oceano, mais antigo que o próprio Moros, mais antigos até mesmo que as undines. — Sua fala era lenta e seus olhos azuis fitavam um por um dos presentes. — Ele possui quatro garras que se assemelham ligeiramente a tentáculos saindo de suas costas, assim como espinhos que mais parecem rochas. Seus braços são como espadas afiadas. Ele seria capaz de partir esse navio ao meio apenas com eles.

— Moros me livre se um troço desse me ver. — disse um dos homens enquanto fazia o sinal do pêndulo.

— Ah! Mas o Kraken é cego! Nas profundezas onde ele habita não há luz... mas ele escuta. É capaz até mesmo de ouvir a respiração de qualquer um que tente passar pelos seus domínios. E então os ataca. Bom, ataca os poucos corajosos que não morrem de medo apenas por ver sua imagem. — De onde o garoto tirava essas histórias? Ninguém sabia. Quando o ladrão questionou o capitão sobre a origem de Enzo, o homem não soube responder.

— Ele sempre se recusou a dizer. — respondeu, infeliz. Seus lábios estavam rachados devido ao clima frio. — Nós o encontramos boiando no mar. Quando o resgatei, perguntei seu nome e ele ficou em silêncio. Enzo ficou em silêncio por quase oito meses... acreditávamos que ele era mudo... surdo claramente ele não era. Temperamento meio arisco, ele tinha. Numa noite ele disse que o nome dele era Vinccenzo, mas a tripulação se acostumou a chamá-lo de Faísca. Por vezes o chamamos de Enzo Faísca, como um agrado. Para aceitar o nome que ele nos disse.

— E a pena? — O capitão deu de ombros quando Leharuin perguntou. Suas mãos seguravam firmemente o leme, apesar da fina camada de neve que o cobria. A cada vez que ele girava, ela caía e logo estava com a mesma camada outra vez. Sendulum temia que uma nevasca os atingisse. Chuvas de granizo eram horríveis de se lidar.

— Ele também não fala sobre. Apenas sabemos que é bastante importante para ele. — Foi nesse dia que o ladrão passou a desconfiar da origem do jovem pirata.

No entanto, tais lembranças já não são importantes.

Pois um dos piratas acaba de gritar: terra à vista!

Leharuin finalmente chegou à Delfinos. A espera de sua mãe teria um fim.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Já sabem, qualquer erro: Avisem. Sei que estou demorando para responder os reviews e peço desculpas por isso... Tem muito comentário acumulado x_x Mas responderei todos o mais rápido que puder! Espero que tenham paciência ): Abraços quentinhos!