O Chamado das Borboletas escrita por Ryskalla


Capítulo 16
Capítulo 15 - Remendos e Lembranças




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Sua vida era um poço de escuridão. No entanto havia uma luz e essa luz era sua irmã. Não aquela irmã mentirosa. E sim aquela irmã que fora há tempo muito perdida. Quando a dor ficava insuportável, ele protegia essa pequena chama. Tão frágil e poderosa... o pequeno rei ponderava quando ela se apagaria.

— Querido irmão, Chloe está com você? — Um leve arrepio percorreu o corpo do rei. Com um maneio de cabeça, negou. Se havia alguém temesse mais que sua irmã, esse alguém era Chloe, sua pequena sobrinha. Apenas a lembrança daquelas tesouras era o suficiente para tirar seu sono por noites a fio. Sim, ele conseguia dormir. Ou acreditava conseguir. Não precisava, de fato, porém era uma forma de ser deixado em paz... nem Chloe e nem sua falsa irmã o perturbavam quando ele dormia. — Se a vir, avise-a que estou procurando por ela, está bem?

Observou a figura ameaçadora desaparecer com passadas graciosas pelo corredor e soltou a respiração, aliviado. Houve um tempo em que acreditou que a princesa Gisele era a mais bela jovem que já vira. Seus cachos castanhos que lhe cobriam a cintura, os doces olhos amarelados e o cheiro de flores campestres. Uma aparência encantadora que escondia uma personalidade manipuladora e perversa. No sentido literal e metafórico da palavra, Thierry era seu boneco.

— Ela já foi? — O pobre boneco virou-se rapidamente, buscando a origem da voz. Sabia que pertencia à Chloe e tê-la fora de seu campo de visão o amedrontava. Foi surpreendido quando a menina saiu de dentro do armário. — Ora, o que é isso, titio?

— Não é nada, apenas fiquei surpreso. Eu devo sair agora, há algo que gostaria de fazer. — Falou apressadamente enquanto se dirigia para a porta. Não deveria ficar sozinho com ela... não queria que ela o transformasse em um de seus bonecos.

— Ela me contou o seu segredo, sabe? Eu já desconfiava e por isso ela acabou contando. É por isso que tem tanto medo de tesouras? — Uma sensação de frio súbito tomou conta do rei. Chloe deu um pequeno sorriso sádico, ele quase podia ver os pensamentos da garota. — Não deveria ter medo. Não odeio você, titio... o alvo do meu ódio é ela. No fim somos duas bonecas daquela mulher, não é? E meu pai também era uma boneca, uma boneca que ela se cansou de brincar… e pensar que ela me condenou a viver nesse corpo infantil. Imagino que ela tenha esquecido que eu deveria ter vinte anos. Para ela sempre serei sua garotinha de seis aninhos.

Thierry permaneceu em silêncio, sem saber o que dizer. Era a primeira vez que Chloe expressava seu ódio pela mãe, mesmo que Thierry soubesse disso há muito e muito tempo. Aquilo o levava a questionar se a paciência da sobrinha estaria se esgotando… ele temia o que aconteceria quando ela chegasse ao fim.

— Um dia ela irá se arrepender de tudo o que fez. Talvez um dia ela seja uma de minhas bonecas... e é bom que não diga nada a ela, titio, caso contrário você será minha boneca. E, sabe, seu tempo aqui não vai durar muito... — Todo o seu corpo tremia, saiu cambaleante do quarto e correu levemente pelo corredor, porém as palavras de sua sobrinha ainda conseguiram alcançá-lo. — Eu tomaria cuidado, se fosse você!

Seus pés sabiam onde levá-lo, sabiam exatamente para onde ir. O subterrâneo do castelo era o único lugar que estava a salvo de sua falsa irmã. O único lugar onde ela temia estar e era lá que ele encontrava a paz. Ali não havia cores fortes, apenas o triste tom de cinza das rochas. Gisele nunca decorou aquele lugar, nunca o carregou com luxo. Estando ali, Thierry podia sentir-se distante de tudo. Como se tudo que havia lá em cima fosse apenas um pesadelo.

Caminhou lentamente, contou três túmulos até parar. Era sempre assim, sempre o mesmo caminho para conversar com o verdadeiro Thierry.

— Sabe, Thierry... às vezes me pego desejando que você nunca tivesse falecido. Mesmo que isso custasse minha existência. Acho que as coisas seriam melhores lá em cima. — O olhar do boneco se desviou para a esquerda, observando os incontáveis túmulos da família Ananke. Qual história estava escondida em cada um deles? Aquilo não lhe interessava, na verdade. Apenas o Thierry humano lhe despertava alguma atenção. — Eu sou você e você sou eu. Tenho certeza de que seria um rei bondoso. Sinto muito por sujar seu nome, mas tenho tanto medo! Um dia, Thierry... um dia.

Nunca demorava muito tempo com seu eu humano, tanto porque não havia muito o que dizer quanto por temer que sua falsa irmã descobrisse e questionasse porque conversava com um cadáver. Aquele era o segredo que o impedia de enlouquecer. Era seu forte seguro, assim como a lembrança da sua verdadeira irmã.

 Subiu os degraus sem nenhuma pressa, passando pela prisão... Existia outro alguém que gostaria de visitar. Era parte de sua rotina. Primeiro Thierry e depois o prisioneiro mudo. Precisava dar esperanças aos dois, pois era isso que o fazia suportar.

Os guardas se afastaram no momento que o viram se aproximar. Aquela era uma ordem pré-estabelecida. Assim como a proibição de que contassem para a princesa Gisele.

Dentro de uma das celas, um homem de capuz trabalhava. O rei nunca vira seu rosto, aquilo nunca lhe passara pela cabeça e mesmo que tivesse tal ideia, sabia que sua falsa irmã o castigaria severamente, por mais que seu tecido houvesse sido remendado e estivesse com a aparência de novo, Thierry ainda era capaz de sentir o pavor de ter seu tecido queimado.

 Observou atentamente as hábeis mãos do prisioneiro manusearem os diversos vidros com líquidos das mais variadas cores. Era fantástica a maneira que aquele estranho fazia surgir ouro de coisas tão distintas. Uma pequena pedra cor de sangue que lembrava vagamente um coração estava pendurada em seu pescoço. Aquela pedra sempre atraiu Thierry de algum modo que ele não poderia explicar. Era quase como uma lembrança.

O rosto encapuzado mirou o pequeno boneco por alguns segundos. Thierry sempre imaginava lágrimas naquele rosto oculto. Lágrimas de cristal que rolavam obscuras pelo rosto escondido.

— Ela irá voltar... irá salvar a todos. Porque ela é a mais valente de todas as criaturas e porque ela prometeu que viria. — As mãos macias do rei agarraram a grade enquanto suas pernas perdiam as forças. Podia sentir todo o seu corpo tremer, aquela sensação de medo que o dominava pouco a pouco. Sua salvadora viria, ela certamente chegaria. — Ei, sabe uma coisa engraçada? É que eu não lembro mais o nome dela... mesmo que eu tenha certeza de que um dia ela virá, não consigo me lembrar de seu rosto... não gosto de pensar nisso, mas... e se ela não se lembrar de mim também?

O homem silencioso parou de trabalhar por algum tempo. Segurava uma barra de ouro em suas mãos enluvadas e parecia encarar o vazio. Será que Thierry havia destruído as esperanças dele? Tudo porque se mostrara tão fraco! Tornou a se erguer, por mais que suas pernas desejassem permanecer no chão. Deveria passar uma imagem de força, deveria falar palavras tranquilizadoras, porém antes que pudesse falar qualquer coisa, o prisioneiro voltou a trabalhar. O cenho do rei se estreitou quando viu o que o homem estava fazendo. Não era muito cedo para começar a desenhar o emblema real? A barra sequer estava completa ainda, estava muito fina e torta em algumas partes.

— Não está certo! A princesa Gisele brigará com você se entregar essa barra defeituosa! — Evidentemente, caros amigos, o nosso querido prisioneiro não tinha a intenção de mandar aquela barra para a princesa. Não, não. Aquele pequeno tesouro defeituoso seria um símbolo de esperança para os dois, principalmente para Thierry. Quando o frágil rei segurou aquele pequeno tesouro que havia sido jogado para ele... quando leu o nome que estava gravado... uma lágrima imaginária rolou por seu rosto.

E agora, companheiros, irei levá-los para fora do castelo... irei levá-los até nosso adorado tesouro. E essa história, inicia-se assim…

 

—:-:-:-:-

 

Os dias estavam sendo horríveis para a pobre Cecille.

Claro que isso não era totalmente verdade. Cecille sentia-se infeliz por ter tais pensamentos ingratos. Contudo, seus dias estariam melhores se ela e Rick não houvessem brigado.

Tudo começou, queridos amigos, quando Richard levou Cecille para a casa de um velho amigo: Frank. O homem era gentil e por vezes engraçado, sua barriga era realmente muito grande e faltava-lhe cabelo no topo da cabeça. A boneca nada possuía contra ele, muito menos contra a sua governanta: a senhorita Pérola. A mulher sempre fora muito amável e por duas vezes presenteara a boneca com belíssimos vestidos. A única coisa que a boneca não gostava, era das brincadeiras entre Pérola e Richard. Aquilo de algum modo a incomodava... por quê?

O grande problema ocorreu em uma noite, quando Cecille perambulava pela casa silenciosa, infeliz com sua incapacidade de dormir. Adoraria presenciar aquela coisa da qual todos os humanos falavam, aquela que eles têm todas as noites... qual era a palavra? Cecille não lembrava... 

No entanto, naquela ocasião Cecille não era a única acordada. Uma luz bruxuleante saía do quarto de Rick. Dentro do cômodo, o homem e a governanta faziam sons esquisitos enquanto estavam na cama. Estariam roncando? O som era tão diferente! E por que Pérola estava ali? Estavam se movimentando demais para estarem dormindo... a pobre boneca não conseguia entender.

Mas que coisa feia ela estava fazendo! Bisbilhotar não era uma atitude digna de uma dama! Não, não! Certamente que não! Deveria ter aprendido, sim, quando Rick ficara extremamente zangado com ela por ter lido aquela carta. E agora estava cometendo o mesmo erro outra vez! Afastou-se da porta entreaberta, mas, para sua completa infelicidade, Pérola a viu e soltou um grito assustado. Que grande confusão havia feito! Rick correu até ela e parou por um momento, confuso, como se esperasse outra pessoa.

— Por Moros, Cecille! Achei que fosse um ladrão. E o que você está fazendo aqui? Nunca pensei que você pudesse ser tão repugnante a ponto disso! — Ora, por que ele estava agindo daquela forma? Por que ele a estava ofendendo? Ela não era repugnante! Mesmo que sua aparência não fosse como outrora... mesmo que ela já não fosse tão bela... repugnante era uma palavra forte demais, sim, era sim!

— Eu... eu... — As palavras não conseguiam tomar forma, por mais que a boneca desejasse se defender. Estava completamente assustada, pois o rosto de Rick estava vermelho de tanta raiva. Ele era um verdadeiro idiota também! Não precisava ser tão cruel... Pérola se aproximara da porta e colocou a mão no ombro esquerdo de Richard, tentando acalmá-lo.

— Não acredito que você tenha um hábito tão desprezível... — Cecille desejou que seus olhos de vidro se enchessem de lágrimas, queria mostrar o quanto estava magoada com aquela atitude. Sabia que era errado bisbilhotar, contudo... Rick não estava exagerando? Ela o odiava e por isso correu de volta para seu quarto, trancando a porta logo em seguida. Nunca mais veria nenhum deles, ficaria ali para sempre. Rick fora terrivelmente grosseiro e ela o detestava por isso. Será que ele não podia ver que não foi sua intenção? Que ela estava arrependida? Não poderia imaginar o quão tedioso era não ter sono para dormir? Ninguém a entendia, ninguém nunca a entenderia...

Cecille entregou-se ao seu choro sem lágrimas durante toda a noite. Recusava-se a olhar para o espelho, com medo de ver uma boneca repugnante refletida nele. Ela era muito bonita! A mais bela das bonecas! Apenas estava velha e remendada... Porque não havia ninguém que pudesse cuidar dela, porque Cecille não tinha mestre... A boneca estava sozinha e nunca mais seria feliz... Seria repugnante e ninguém a amaria outra vez. Talvez fosse melhor se toda a sua existência queimasse... talvez fosse melhor que ela desaparecesse do mundo.

Não, não, não! Olhe o que aquele humano cruel estava fazendo-a pensar! Era um absurdo, sim, que ela se deixasse abalar daquela forma. Era uma bela boneca e iria provar. Pintaria um quadro de seus templos gloriosos e mostraria para todos eles.

Eu era assim, eu sou muito bonita, apenas preciso de alguém que me ame!

E por que deveria pintar um quadro, quando poderia pintar a si mesma? Ora, que ideia magnífica! Todos eles levariam um susto tremendo quando a vissem e todos ficariam encantados com sua beleza! Mesmo Rick e ele ficaria tão arrependido de tê-la tratado de forma tão má!

Na manhã seguinte, o senhor Frank tentou falar com ela. Sua voz estava carregada de doçura e ele implorava para que ela abrisse a porta, mas a boneca não abriu. Não queria encarar Richard até que fosse bela outra vez. Não poderia suportar aquele olhar carregado de... nojo? Desgosto? Faria Rick se desculpar e então... como deveria agir? E se ele não quisesse se desculpar? O desespero tomou conta novamente do coração da boneca enquanto ela pintava seu corpo. Havia decidido que sua pele teria cor de porcelana, porque sempre admirava as mulheres que possuíam esse tom de pele. Pareciam bonecas perfeitas! E assim Cecille pareceria uma humana perfeita. Seria uma brincadeira secreta que apenas ela teria conhecimento. Deu o seu melhor para esconder as costuras, fazendo com que elas se tornassem apenas sutis cicatrizes. Só um olhar atento iria notá-las. Deu às suas bochechas um tom corado e aos seus lábios um tom vermelho. O grande problema estava em seus cabelos e em seus olhos. O que faria com eles?

Imaginou que deveria cortá-los, no entanto era um desastre com a tesoura... A senhorita Pérola também fora falar com ela, pediu para que ela saísse e até mesmo pediu desculpas. Por que ela estava se desculpando? Cogitou deixá-la entrar, talvez ela pudesse lhe ajudar com seu cabelo... Não, teria que ficar bonita sozinha. Richard também viera pedir desculpas e tudo o que recebeu foi um gélido silêncio da boneca.

O que faria? O que faria? Tentou iniciar com algo que saberia fazer. Sim, iria pintar seus cabelos. Lembrou-se da ocasião em que achou tinta preta na casa de Richard, mas se esqueceu completamente dela. Agora tinha pincel e todos os materiais que precisava, afinal, Frank amava seus quadros e sempre pedia para que ela lhe pintasse novos. Richard também pedia e os vendia, voltando sempre com algum presente novo para a boneca.

Há quanto tempo estava trancada ali? Não conseguia dizer, sabia que Frank tentava convencê-la a sair constantemente e que Pérola viera duas vezes, na segunda trouxera um vestido amarelo que a boneca julgou ser muito gracioso. Iria usá-lo quando saísse de seu quarto e anunciasse sua decisão...

A resposta chegara à Cecille havia algum tempo. O fato é que a boneca estava trancada há uma semana e decidira ir atrás de Thierry há dois dias. Ele era o único que poderia entendê-la e se ele era injusto como Aubrey alegara, então ela iria guiá-lo para o caminho da justiça outra vez. Era seu dever, como irmã mais velha, impedir que seu irmãozinho se tornasse algum tirano. Sim, sim, iria ler para ele as histórias que seu mestre lia e então ele veria o quão bobo estava sendo! Seria o rei bondoso que ambos sonharam no passado.

A boneca desistiu da ideia de cortar seu cabelo e resolveu arrumá-lo na forma de uma trança, pois ela esconderia sua irregularidade tal como a franja esconderia seu pálido olho esquerdo. Aquilo era o máximo que poderia fazer. Ao encarar seu reflexo no espelho sentiu-se satisfeita. Estava bonita, bem bonita. Sua pele parecia real e aquilo era o que mais lhe deixara contente. Respirou fundo e destrancou a porta. Não havia razão para ficar nervosa. Iria mentir, é claro, dizendo que voltaria a buscar seu mestre quando na realidade tentaria salvar seu irmão. Contaria uma mentira! Uma atitude péssima da qual ela se envergonhava, entretanto... a vida de Thierry dependia disso.

Caminhou lentamente até a luxuosa sala de estar. Frank estava sentado em sua poltrona costumeira, de costas para ela e Pérola estava de pé. Ambos conversavam em um tom baixo até que o olhar da mulher recaiu sobre a boneca. Inicialmente ela ficou confusa até que, pouco a pouco, sua boca ia abrindo-se em um ‘O’. Será que estava feia? As mãos da boneca mexeram-se desconfortavelmente. Tivera tanto trabalho! O homem levantou-se da poltrona para encarar o alvo do espanto de sua governanta.

— Cecille! Você está magnífica! — Que alívio! Sim, um grande alívio, afinal não estava feia e aquilo a enchia de alegria. — Richard, Cecille saiu do quarto! Venha vê-la!

— Finalmente, eu ia pedir sua autorização para arrombar a por... — E petrificou na entrada da sala. Sua boca não se abriu na forma de um 'O', como a de Pérola, mas seus olhos estavam arregalados. Finalmente, o homem conseguiu se controlar. — Então era isso que estava fazendo? Achei que estivesse zangada comigo po...

— Eu estava zangada com você. — Cecille cortou friamente as palavras seguintes de Rick. Como ele poderia ter dúvidas? Aquilo a encheu de tanto desgosto! Richard evidentemente não entendia as coisas como deveria. — Saí para anunciar que irei partir.

— O quê? — Os três perguntaram em uma só voz.

— Irei em busca do meu mestre. — Pela primeira vez, Cecille descobriu que mentir não era algo tão difícil. Sim, falar a mentira em si não era algo difícil... o grande problema estava em sustentá-la e nas consequências que seguiriam depois.

— Mas Cecille, você mesma disse que tem procurado pelo seu mestre há bastante tempo. — Richard iniciou em um tom cauteloso. O homem sabia que a boneca era como uma frágil peça de porcelana que se partiria com a palavra errada. O problema era que ele nunca fora bom em lidar com palavras. — Aqui você é querida. Não acha que se seu mestre quisesse realmente vê-la, ele nunca teria a abandonado?

E o estrago fora feito. Aquelas palavras acertaram Cecille como punhais. E se Rick estivesse certo? E se seu mestre tivesse se cansado dela? E se... mas aquilo não era sobre seu mestre. Porque a boneca poderia ser sua própria mestra, não poderia? Contudo, não havia argumentos para contra-atacar Richard... mesmo Cecille havia perdido a fé em seu mestre.

— Irei atrás da única pessoa que me ama verdadeiramente... peço, por favor, que me deixem partir. — Por que tudo era tão difícil? Talvez devesse ter fugido. Seria mais fácil, claro, porém não seria correto.

— Cecille, todos aqui a amamos. Não há razão para ir embora. Não há necessidade de uma decisão tão drástica. — As palavras de Frank não a abalariam. Não eram verdadeiras, pois ninguém amava uma boneca para sempre. Com o tempo, humanos se cansavam de brincar com bonecas e as abandonavam. Ou pior, as destruíam.

— Não. Eu irei partir. Irei buscar o único que realmente se importa comigo! E quando eu for amada outra vez, ah, quando me amarem de novo... eu serei novamente bela, a mais bela de todas as bonecas viventes!

— Minha querida, você está deslumbrante agora. Não será porque todos aqui a amam? — O olhar da boneca recaiu sobre Pérola e com um único sorriso, a boneca respondeu.

— Não, Pérola. Nenhum de vocês me ama, apenas gostam de mim. O amor é algo muito mais profundo... estou bonita agora, pois descobri algo importante. Algo que eu havia esquecido. Você deve se amar primeiro, para depois permitir que os outros te amem. Eu nunca seria amada, pois nunca me acharia digna. — Com um sorriso triste, Cecille continuou. — Nenhum de vocês é capaz de se amar... logo, não são capazes de amar também. Eu sou uma boneca velha e remendada, mas posso ver isso. Vocês, humanos, não poderiam me amar. Mas eu conheço alguém que pode e eu irei atrás dele até meus tecidos ficarem gastos, mesmo se isso me impedir de andar. Irei me arrastando, porque sei que por ele valeria a pena. Vocês não se amam, muito menos amam a mim.

— Cecille... — Richard tentou dizer, no entanto sua voz falhou. Cecille sabia, de todos eles, Rick era o que menos se amava. Talvez até mesmo se odiasse. A boneca caminhou até ele e segurou sua mão com carinho.

— Você não deve se odiar, Rick. — Ambos se abraçaram. Aquele seria o último abraço deles. Não valeria a pena mentir... ele tinha tanto para procurar, tanto para descobrir sobre o amor! — Sabe, você fez coisas maravilhosas e você deveria se amar um pouquinho por causa disso. Eu vou contar-lhe um segredo... lembra-se daquela carta? Havia um nome nela... Thierry. Lembra-se? Sabe, Rick, eu não recordava até aquele momento, mas eu tenho um irmão. E toda irmã mais velha deve orientar seu irmãozinho. Ah, Rick, me deixe ir... somente eu posso guiar Thierry e meu irmãozinho esteve perdido por tanto tempo!

Depois de mais algumas tentativas e impedí-la, eles finalmente cederam. E com aquele segredo sussurrado no ouvido do humano, a boneca partiu para nunca mais retornar.


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