O Chamado das Borboletas escrita por Ryskalla


Capítulo 11
Capítulo 10 - A Heroína




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Aquele lugar era claro demais. As pálpebras de Leharuin relutavam em deixar que sua íris caramelada fosse exposta. Quando por fim elas cederam, o jovem conseguiu contemplar o ambiente. Um quarto com proporções espaciais completamente desnecessárias, possuía quatro janelas em formato de arco cujas cortinas eram de um tom pálido que ele não saberia identificar muito bem. O ladrão estava deitado em uma cama estranhamente macia e dali via os diversos móveis que decoravam o lugar. O conforto lhe era estranho, por muitas vezes dormiu embaixo de pontes ou ao relento, em raras ocasiões se abrigava em uma casa abandonada. Nunca conseguiu se firmar em um único lugar. Sempre estava mudando.

Suas borboletas voavam tranquilamente acima dele, porém ele queria sair dali. Tentou se levantar e uma súbita dor embaralhou-lhe a visão. Um sentimento de vertigem nunca sentido antes o dominou. Soltou um gemido baixo e pouco depois uma porta pintada de branco se abriu, revelando a figura de Analiese e dois homens desconhecidos, sendo um deles um jovem alto de cabelos dourados e o outro um homem que aparentava estar na faixa dos cinquenta anos. Logo após dois guardas apareceram.

— Graças a Moros! Meu pai começava a acreditar que você não acordaria. — A voz da garota era genuinamente preocupada. Leharuin olhava inexpressivamente para todos. Tentou se lembrar do que aconteceu… encontrou a sereia de Henry, a luta, tiro e novamente um tiro. Também caiu do telhado, isso explicava a dor em cada parte do seu corpo. Recordava-se vagamente de ter se arrastado até a rua principal e do barulho de um animal seguido por uma voz feminina. — Está melhor?

Ele cogitou o que deveria fazer. Ser cortês seria a saída mais inteligente, embora aquilo pudesse trazer-lhe complicações futuras. Seu corpo machucado não lhe atribuía uma aura assustadora… optou por uma cortesia inicial com uma falta de confiança evidente. Bancar o burro não funcionaria ali.

— Devo estar, vossa Alteza. No entanto, ainda sinto muitas dores. — Uma súbita preocupação invadiu sua mente. Há quantos dias estava ali? — Dormi por quanto tempo?

— Quatro dias. — O homem mais velho informou. Sua expressão era dura, contudo não devido a um sentimento de desgosto e sim devido à personalidade rígida e implacável. O tipo de pessoa que jamais voltaria atrás após uma palavra dada. — E provavelmente ficará aqui por mais sete dias, segundo as curandeiras.

— Presumo que eu não possa ficar aqui por tanto tempo, majestade. — Pouco a pouco Leharuin ia perdendo sua cortesia. Talvez Henry já estivesse morto! Levou uma mão ao rosto, tentando pensar. A sereia provavelmente não o mataria de imediato… e talvez levasse algum tempo para encontrá-lo. A única esperança de Henry seria a criatura querer fazê-lo sofrer antes de tirar sua vida.

— Não há escolhas para você em relação a isso. Não conseguiria dar um passo sem cair no chão. O que me leva à curiosa pergunta… — Seus olhos tempestuosos faiscaram como um relâmpago por um momento. — Como conseguiram capturar o quase lendário Leharuin?

— Na realidade, não conseguiram. Eu consegui escapar de meus perseguidores. Os machucados são apenas uma triste consequência. — O rei e o ladrão se encararam por um longo instante. Era como se Sol e Lua se enfrentassem. Para a infelicidade do nosso querido ladrão, a Lua derrotava o Sol tal como o rei o derrotava.

— Você se encontra cativo… no meu castelo. Não cegarei meus olhos aos seus roubos, Leharuin. Você é um ladrão. Mesmo que minha filha tente provar o contrário…

— Engraçado, acreditava que eu era um hóspede querido. Tendo em vista todo esse conforto. — Seus olhos percorreram todo o quarto. Poderia ter feito um gesto amplo, entretanto seus braços doíam demais. — Imagino que ladrões não sejam tratados de maneira tão afetuosa, caso contrário todos seriam.

— Terá grande utilidade para mim, garoto, assim que seus ferimentos sararem. Se eu lhe trancasse em uma cela, seria obrigado a esperar o dobro do tempo. — Um bom ponto de vista que fez Leharuin se calar. Mais uma semana naquele estado… não conseguiria ficar ali enclausurado, ainda por cima com o pensamento do perigo iminente que Henry corria. — Iremos deixá-lo agora, Leharuin. Apreciaria se melhorasse logo.

— Papai, eu gostaria de conversar com o ladrão. — Analiese deu um passo à frente, as mãos juntas na frente do corpo. Os olhos do rei se franziram, Leharuin não tinha certeza se era devido a princesa se referir ao rei de maneira tão íntima na frente de estranhos, ou se era por causa do pedido atrevido.

— E por que gostaria disso, Analiese? — Por um momento, Leharuin acreditou que ela perderia a coragem e desistiria. Porém, sua intrepidez pareceu retornar, fazendo-a dar mais uma passada para frente com o rosto erguido.

— Quero conhecê-lo, saber de suas histórias. O senhor não permite que eu saia, ele é uma das poucas maneiras que tenho para descobrir como é o mundo lá fora. — Leharuin segurou o riso e passou a dedicar sua atenção à borboleta que voava próxima ao seu braço esquerdo. Ah, então foi ali que levou o tiro.

— De fato não permito, mas não é como se você obedecesse minhas ordens, é? Faça da maneira que achar melhor, deixo nas mãos de Moros… Alexis,  por favor, aguarde-a do lado de fora. Se ouvir qualquer barulho suspeito deverá entrar imediatamente, embora eu duvide que ele vá fazer algo. — O rei deu um último olhar à Leharuin e saiu do local, seguido pelo jovem Alexis que olhou um segundo para Analiese antes de sair.

— Fiquei tão preocupada! Eu fugi novamente… queria ver o mar, talvez ver alguma sereia, sabe? Convenci o cocheiro a me levar e então encontrei você. Papai ficou zangadíssimo comigo, porque eu fugi. Ele me proibiu terminantemente de sair outra vez. — A garota se sentou na ponta da cama e lhe explicava a situação com grande energia, como se a presença do ladrão a deixasse feliz de algum modo.

— Escute, princesa. Preciso de um favor seu. — O rosto dela assumiu uma expressão confusa por alguns instantes. — Quero que me liberte.

— Eu não posso fazer isso… — Seus lábios se comprimiram dando-lhe uma expressão preocupada. — Sinto muito.

— Meu amigo… ele precisa da minha ajuda, isso se já não estiver morto. — Tentava convencê-la com um tom triste de voz. O próprio Leharuin não sabia exatamente porque sentia aquela necessidade de ajudar Henry… ou talvez entendesse, só não quisesse admitir.

— O que houve com ele? — Por um momento Leharuin se odiou. Era tão fácil para ele convencer uma mulher…

— Fez uma sereia chorar… agora ela quer se vingar dele. — As pequeninas mãos da garota elevaram-se à altura dos lábios, numa demonstração de surpresa. — Imagino que ela tenha se apaixonado por ele. Entretanto… Henry tem um pequeno problema.

— Qual?

— Ele já ama uma mulher.

— E por que isso seria um problema? — Seu tom era confuso como a inocência de uma criança. Analiese não parecia saber como uma sereia se sentia ao ser rejeitada. Embora, é claro, aquele fosse apenas um dos problemas…

— Porque ela morreu há muito tempo. Henry se recusa a deixá-la ir. — Leharuin se perguntava se parte da culpa fosse dele. Provavelmente se tivesse tido coragem… se houvesse explicado seus motivos… se não fugisse da culpa ou se escondesse de seu amigo… talvez Henry não fosse atormentado pelo fantasma daquela que um dia foi Evangeline.

— Irei ajudá-lo. — Aquelas palavras o assustaram, até que ele se lembrou com quem estava conversando. Analiese, a inocente. A que acreditava em soluções simples. Aquilo quase o comoveu. — Voltarei ao Porto, vou resgatar Henry.

— É uma bela proposta, princesa. Apenas não entendo como conseguirá fazer isso. — A garota soltou uma límpida gargalhada, fazendo com que as sobrancelhas de Leharuin se erguessem.

— Por favor, Leharuin, não duvide do poder que uma princesa possui. — Com aquelas palavras saiu do quarto, deixando um crédulo Leharuin para trás e encontrando um entediado Alexis esperando na porta. Não devemos culpá-la por seus impulsos insensatos, muitos de nós, apesar de sabermos a verdade, acredita viver a facilidade que um conto de fadas nos proporcionaria. 

— Você demorou! — Analiese o ouviu reclamar e sorriu, ficando na ponta dos pés para bagunçar os cabelos dourados de seu irmão caçula. Aquilo era tão injusto! Ele era mais novo e, no entanto, era mais alto que ela.

— Foi uma conversa importante, Alexis. Nós temos uma missão! — Palavras carregadas de excitação eram trocadas no corredor enquanto andavam. — Resgataremos um rapaz da ira mortal de uma sereia!

— Por Moros! E como faremos isso? — Ele era um bom garoto e se encantava com facilidade, era nessas horas que Analiese sentia o orgulho em seu peito. Sentia o orgulho daquele jovem tão gentil ser seu irmão.

— Veja, você criará uma distração. Lembra-se que papai me proibiu de sair? — Agora os dois falavam em não mais que um cochicho. Os olhos prateados de Analiese sempre atentos a qualquer espião do seu pai que poderia haver ali. Alexis deu um breve aceno, com uma expressão contrariada. — Eu resgatarei o homem.

— Mas… Liese, será que Moros quer que você faça isso? — Os passos pararam, ela não poderia dizer o quanto desprezava Moros e suas injustiças. Não poderia descrever como era a verdadeira miséria. Aqueles eram os únicos segredos que guardava de seu irmão. Não queria corromper-lhe a inocência.

— Certamente, Alexis. Caso não quisesse, Moros não teria me feito uma princesa. E há poucas coisas que uma princesa não é capaz de fazer. — Deu um largo sorriso, na esperança de passar aquele sentimento tão importante para seu irmão: a esperança. Por fim, o príncipe acabou retribuindo o sorriso.

— E quando você partirá?

— Agora mesmo. Falarei com Darin. Preciso que faça com que papai se esqueça de mim por algumas horas. Tentarei voltar o mais rápido possível. — Analiese deu um longo abraço no irmão, que retribuiu imediatamente. — Conto com você, está bem?

— Por favor, tenha cuidado... — O jovem sussurrou no ouvido da irmã. 

Logo se separaram e ela seguiu rumo aos seus aposentos, precisava buscar seu manto. Acreditava que deveria ficar inicialmente escondida, que sua verdadeira identidade poderia atrapalhá-la e atrasá-la.

Se não fosse a pressa que tinha em ajudar, Analiese talvez esperasse até o Sol se pôr. A manhã ainda não terminara e aquilo poderia colocá-la em risco. Seria bem mais fácil escapar do castelo pela manhã se estivesse sozinha, já fizera isso um número razoável de vezes. Agora, sair do castelo com uma carruagem… Aquilo chamava muita atenção. Foi exatamente por isso que seu pai a descobriu e mandou seus guardas buscá-la. Pegou algumas jóias que possuía e moedas de ouro que pedira ao seu pai, alegando que damas precisavam comprar certas coisas sem necessitar falar com homens. Colocou tudo em uma bolsa de couro e saiu rumo aos estábulos do castelo, onde sabia que encontraria Darin.

— Darin! Preciso de sua ajuda. — Não era preciso que ela explicasse, apenas em olhar para a princesa o velho cocheiro era capaz de saber o que ela queria.

— Vossa Alteza, já não encontrou confusões demais? Saiba que seu pai só não a castigou porque trouxe com você o filho de sereia. — Os olhos escuros de Darin estavam carregados de medo, era verdade que ele era conhecido por ser um homem muito medroso. Analiese, porém, acreditava decididamente no contrário, porque por mais medos que ele possuísse, Darin sempre buscava enfrentá-los se assim ela ou seu rei desejassem.

— Eu preciso ajudar um homem, Darin! Uma sereia quer matá-lo. Não posso lhe explicar agora. Escute, eu fugirei e alugarei uma carruagem lá fora. Ou irei comprá-la, o que for. Preciso que você venha comigo, que conduza a carruagem para mim. — O homem estava bestializado. As palavras da princesa eram rápidas demais para que ele pudesse compreendê-las. — Encontre-me lá fora!

Um sentimento de agitação fazia o coração da garota bater mais depressa. Sentia-se como uma heroína em um livro e ela adorava sentir-se daquela forma. Era muito melhor que a sensação de inutilidade que, com o passar dos anos, se tornava cada vez mais crescente em seu coração, tornando-a constantemente irritada e frustrada. Aquilo era como se ganhasse a liberdade. Tudo graças ao ladrão Leharuin.

Mal se deu conta de ter passado pela saída secreta dos jardins, ou de ter caminhado pela breve trilha da floresta até chegar à cidade. Apenas quando encontrou Darin percebeu onde estava.

— Sabe onde podemos comprar uma carruagem? — Ela quis saber e o cocheiro deu um breve aceno. Pediu para que ela esperasse ali e afirmou que logo voltaria com a carruagem. Analiese lhe ofereceu a bolsa de couro, mas ele a recusou e desapareceu em seguida. Após um tempo torturantemente longo, uma carruagem hackney preta parou próxima a ela e Darin desceu para abrir a porta, permitindo que a princesa entrasse.

— Agora me diga, aonde deseja ir, Vossa Alteza. — O bom homem perguntou antes de fechar a porta. As ruas estavam tão barulhentas que seria quase impossível que eles conversassem pela pequena janela que separava o condutor do passageiro.

— Para o Porto de Telquines. — Sua voz era decidida, embora estivesse relutante. Analiese deduzira que Henry se encontrava no porto de Telquines porque encontrou Leharuin próximo ao porto. E também, sendo o inimigo uma sereia… Bom, nada mais óbvio que ficar em um lugar próximo ao mar, correto? Darin fechou a porta e em seguida o hackney começou a se locomover.

Como seria a aparência de Henry? As falhas do plano começaram a atormentá-la. Fora movida pelo ímpeto de agir heroicamente e agora via como fora tola! De que maneira encontraria um homem sem conhecê-lo? Certamente existiam mais de um Henry no mundo… existiria mais algum que possuía um envolvimento com sereias? Tentou se lembrar da conversa que tivera com Leharuin. Havia uma vaga lembrança de ter falado que iria até o porto buscá-lo… se ele estivesse em outro lugar, Leharuin teria dito, não teria? Lembrava-se que Henry amava uma mulher… uma mulher que estava morta. Henry fizera uma sereia chorar o que significava que os olhos dela possuíam uma cor diferente de quando ele a conhecera. A criatura gostaria de se vingar… como ela faria isso? Tentaria enganá-lo, provavelmente fingiria ser outra pessoa. E se Henry era amigo de Leharuin, certamente reconheceria seu nome, o que limitaria as buscas. Apesar que aquele nome era tão conhecido! A jovem tentou não pensar no que poderia dar errado, nada daquilo ajudaria! Uma nova esperança ia crescendo dentro dela. Talvez não fosse tão difícil encontrá-lo, afinal.


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