As Cores da Liberdade escrita por Ryskalla


Capítulo 8
Oitava Carta - Campos Dourados




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Caro Céu,

Passei semanas sem escrever... não conseguia compartilhar nada mais com Charles, não era correto. Estou muito longe do esconderijo de Myra e sinto orgulho em dizer que não precisei da ajuda de Hexabelle para negar a proposta do Vício. Eu só queria ir para longe dali. Perguntava-me se eu não havia pagado um preço muito alto, que talvez passar a eternidade numa cadeira de rodas fosse melhor do que todo aquele conhecimento.

Sinto-me estranho, escrevendo para o Céu, contudo... para quem mais eu poderia escrever? Pensei em Theodore e tive medo, e se ele estivesse vivo também? Acreditava que Charles estava morto e ele apenas estava escondido como um rato assustado, livre da culpa, livre de mim.

Voltando ao esconderijo de Myra...

Como eu havia pensado, o novo projeto do Vício foi encerrado em pouco tempo. Não pretendo descrever todos os processos e cálculos que necessitei fazer para terminá-lo, acredito que esse não seja o objetivo e se mais alguém ler essas cartas… não, é melhor que esse conhecimento não seja compartilhado. De todo modo, assim que terminei, o Vício veio me parabenizar. Ela carregava o corpo de uma criança e ao seu lado havia o fantasma de uma menininha. Quando percebeu meu olhar o Vício indagou em uma voz carregada de curiosidade:

— Consegue vê-la? — Desviei o olhar da criança para encarar Myra, minha capacidade de ver pessoas mortas era algo tão impressionante assim?

— Quem? — Charles perguntara enquanto se aproximava da gente e então viu o que Myra segurava. — Ah, ela. Por que ele não conseguiria vê-la, mestre?

— Não estou falando do demônio. — Sua voz aumentara ligeiramente, fazendo com que Charles se encolhesse e se afastasse. — Desde quando você consegue vê-los, querido?

— Desde que Charles me abandonou no Campo. Depois dali passei a notá-los, porém eles não falam comigo. — Eu apenas queria sair daquele lugar, existia alguma coisa ali que estava roubando algo de mim, algo que eu sentia que era demasiadamente precioso. — Posso ir embora?

— Ainda não, querido, preciso ver se funciona. — O Vício abriu a estrutura oval e colocou a criança-demônio repousada ali. Em seguida, apontou para uma pequena caixa que se abriu, revelando a peça que faltava: um retângulo negro. Para meu completo espanto, o espírito foi capaz de segurá-lo e encaixá-lo no lugar devido. — Alguns ainda não perderam a capacidade de manipular estruturas sólidas.

Myra afastou-se por um tempo e então voltou com uma grande jarra, onde eu supunha estar o sangue humano. Um enjoo repentino me acometeu e precisei levar minha cabeça aos joelhos.

Não vi como o processo aconteceu, algo me impedia de olhar. Apenas esperei que tudo terminasse logo e que eu pudesse finalmente ir embora.

— Congratulações, Cedric, seu projeto funcionou. — E quando finalmente consegui erguer a cabeça vi a imagem de Myra segurando uma criança. Uma criança que estava na base de seus seis anos e que dormia tranquilamente nos braços do Vício. — Seu nome será... Amy.

— Agora eu posso ir? — Perguntei com a voz cansada, o enjoo havia passado, mas aquela estranha sensação de roubo ainda permanecia.

— Em um minuto, gostaria de lhe fazer outra proposta. Imagino o quão triste seria vagar por essas terras perigosas sozinho. — Myra começara a falar com sua voz sedutora, uma voz que me fazia pensar que talvez um novo contrato seja uma boa ideia. — Eu posso libertar seu pai. Posso permitir que ele vá com você, em troca...

— Não estou interessado. — Os olhos do Vício se arregalaram, aposto que aquela não era uma resposta que Myra esperava.

— Que espécie de filho não está interessado na liberdade de seu pai? — Seu tom estava levemente exasperado, numa tentativa de me fazer sentir culpado. Charles olhava para mim com uma expressão soturna.

— Ele não é meu pai, por isso não tenho interesse em salvá-lo. — Era como se Charles tivesse levado um soco, eu pude ver em seus olhos a incredulidade e então o desespero. Quase podia ouvi-lo pensar: Como ele sabe? Uma pergunta que se repetia infinitas vezes. — Eu quero ir embora.

— Tu me serviste bem, não te privarei deste desejo. Veja, se você seguir rumo ao leste, eventualmente chegará à Fenda, contudo... Se for em direção contrária, encontrará Alice. Em uma pequena cidade chamada Rosária. — Não tive muito tempo para me perguntar a razão de Myra estar dizendo aquilo, pois aos poucos, experimentei pela segunda vez uma sensação de sonolência.

 

Sabe quando, de alguma forma, você se sente bem em acordar? Quando o canto dos pássaros te dá uma sensação de alegria e até mesmo a luz do Sol parece ser mais pura? Isso é algo que nunca senti na Fenda. Entretanto... observei o lugar onde eu estava, era um belíssimo campo aberto que, timidamente, era tingido de dourado pelos raios solares. Respirei profundamente, pensando que eu talvez pudesse ficar ali para sempre, afinal, eu não gostaria de voltar para a Fenda, tão pouco gostaria de encontrar com Alice... não agora, havia muita coisa na minha cabeça que eu gostaria de colocar no lugar.

— Oh, você acordou. — Tive um leve sobressalto ao avistar uma garota que aparentemente possuía quatorze anos. Sua pele era morena e seus cabelos negros estavam presos em uma única trança. Suas vestes eram... exóticas. Era como se ela houvesse vestido um lençol florido e enfaixado seu busto para que ele não ficasse a amostra. Ou ela estaria machucada? — Cedric, sou eu, Belle.

— Qual é a necessidade de possuir alguém agora? — Perguntei contrariado, não gostava daquilo. Deveria ser... desconfortável. Hexabelle lançou um olhar ressentido e colocou no chão uma bacia cheia d’água que carregava.

— Ora, como eu poderei te ajudar sem um corpo físico? E bem, essa menina... acho que ela não se importará se eu usar o corpo dela por um tempo. — Seus olhos negros fitaram o chão por um longo momento, até que ela finalmente encontrou palavras para continuar. — Ela está ausente... ela deve ter visto algo, que mandou a mente dela para longe. Não havia ninguém na casa dela. Fico me perguntando quando ela irá voltar e o que a fez partir...

Seus finos lábios se comprimiram em uma expressão preocupada enquanto ficávamos em silêncio por um período. Bom, se a história era desse jeito... talvez fosse melhor para aquela menina que Hexabelle cuidasse de seu corpo por alguns dias.

— Essa água é para mim? — Era uma pergunta numa tentativa de amenizar o clima e para minha sorte Hexabelle entendeu imediatamente.

— Sim, para você lavar seu rosto. Não é muito, mas foi o máximo que consegui, quando voltarmos para a Fenda você ficará mais confortável.

— Eu não vou voltar para a Fenda. — Disse em tom duro e o sorriso de Hexabelle se desmanchou. Um misto de raiva e preocupação tomou conta de seu olhar.

— Acho que a essa altura você já deve ter percebido que a Fenda é o lugar mais seguro para você ficar! Aqui é perigoso, Cedric. Tenho certeza de que o Vício não desistirá de você tão facilmente. — Revirei os olhos. Era incrível como Hexabelle me conhecia há tanto tempo e não me entendia! Não adiantaria nada explicar, logo eu teria que pensar em uma desculpa plausível para não voltar para lá.

— Eu entendo seu ponto, Belle... É que eu gostaria de ajudar Alice. Digo, ela parece estar em apuros. — Não consegui visualizar um sentimento nos olhos dela e aquilo de algum modo me incomodou. Não que eu fosse algum tipo de especialista em descobrir o que as pessoas estavam pensando, porém eu sempre tinha alguma ideia. Mesmo que uma ideia equivocada. Uma ideia errada era melhor do que não ter nada.

— Ela te vendeu, Ced. Ela te arrastou para o inferno e você quer ajudá-la? — Provavelmente eu não consegui disfarçar minhas emoções com tanta eficácia como Hexabelle, pois ela percebeu. Pude ver a pena em seu olhar... eu aparentava estar tão assustado assim? — Você não percebeu? Por que achou que lá era tão desconfortável? É um lar de demônios, se um humano permanece lá por um tempo maior que o necessário, bem... ele começa a perder um pouco da sua humanidade.

— E você não me disse nada? Digo, eu poderia ter virado um demônio? — Tudo o que eu ganhei foi o silêncio dela. Aquela sensação de que algo estava sendo tirado de mim invadiu meus pensamentos e uma ânsia incontrolável ascendeu pela minha garganta. Caí no chão de joelhos enquanto colocava para fora... o quê? Há quanto tempo eu havia comido? Eu estava tremendo e fraco. A ideia de me tornar um demônio me assustava e eu sequer sabia a razão. Ser um demônio era algo tão repulsivo assim? — Sabe, eu não sei o que significa ser um demônio!

Hexabelle tinha a mão pousada em meu ombro e aos poucos o tremor foi passando. Lavei o meu rosto e tentei ao máximo me livrar daquele gosto horrível de bile que impregnava minha boca.

— Cedric... — Ela começou a dizer, entretanto eu prontamente a interrompi.

— Eu irei atrás dela. Vou encontrar Alice. Myra disse que ela estaria em Rosária, isso fica a quanto tempo daqui? — Sentia minha voz fraca e minha cabeça parecia girar um pouco.

— Parece que o Vício queria que fôssemos até lá. A plantação de centeio fica logo à frente... acho que em cinco horas chegamos até lá. — Dei um leve aceno com a cabeça. Cinco horas. Em cinco horas eu conheceria um lugar novo e talvez... talvez pudesse resgatar Alice. Ou ter o coração quebrado outra vez. Não importava, qualquer coisa era melhor que a Fenda. — Você deveria sentar na sua cadeira... Não vai conseguir ir muito longe nesse estado.

Olhei ao redor e lá estava ela: minha prisão. Parecia que nem mesmo com a capacidade de andar ela me libertaria. Limitei-me a concordar com um olhar resignado. Lá vamos nós de novo, velha amiga, eu pensava, você me carregará outra vez.

Hexabelle me amparou até que eu pudesse sentar na cadeira de rodas. Fechei os olhos e deixei a brisa morna acariciar meu rosto enquanto minha única amiga naquele vasto mundo me guiava rumo aos campos dourados de centeio.


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