As Cores da Liberdade escrita por Ryskalla


Capítulo 7
Sétima Carta - Algumas Verdades




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Caro Charles,

Decidi continuar com as cartas como uma forma de registrar os acontecimentos. Não quero que você as leia, entretanto continuarei a destiná-las a você. Acho que isso é o que as pessoas chamam de costume, talvez.

Você me contou sua história que eu desconhecia enquanto me ajudava com o projeto de Myra. Contou-me como foram atacados, sobre o golpe de espada que recebera e de como desejava com todo o seu coração continuar vivo. Contou-me que Myra apareceu e pediu sua alma em troca de sua vida e que você aceitou sem pensar duas vezes, afinal doía tanto... Então você morreu e acordou como um demônio, um demônio escravo do Vício.

— Eu não me arrependo, sabe, garoto? Demônio é algo difícil de matar, se eu possuísse um corpo humano teria morrido oito vezes. A única coisa que me entristece é nunca ter podido voltar para a Fenda. — Lembro-me de como essa informação me surpreendeu e que você riu do meu rosto surpreso. — Queria ter te buscado, ter te mostrado o mundo, porém a Fenda nunca permitiu que eu voltasse.

— O que quer dizer? — Aos poucos eu assistia você se tornar um estranho para mim, um tipo de colega de trabalho. Havia algo, que eu não sabia o que era, que me impedia de te aceitar. Imagino que tenha sido a história de Hexabelle, ela que abrira mão da própria vida para não ser uma escrava do Vício. Você foi um covarde, implorou por sua vida, mesmo que fosse obrigado a ter uma vida medíocre. Aquilo me enjoava.

— Quero dizer que algo na Fenda expulsa criaturas como nós. Anjos e Caídos também. Imagino que tenha sido por isso que a mestre tenha feito um contrato com aquela humana para te buscar. — Você explicava distraidamente enquanto parafusava a cadeira.

— Você falou para ela sobre mim? — Indaguei, com os olhos baixos. A pequena cúpula estava quase terminada. Foi então que a sua resposta fora subitamente interrompida pela entrada de um demônio azul. Não era a pele dele que era azul, na verdade ela era tão pálida quanto uma vela. Era o cabelo e suas asas. Eu não conseguia encontrar sentido para aquela figura, digo, seu coração estava à mostra, além de possuir um olho roxo que brilhava em fúria e duas asas pequeninas. Os olhos que estavam no lugar certo queimavam não como o fogo, mas como o gelo, já que eram de um pálido tom de azul. Quando mais eu lembro, mais detalhes me vêm à mente. A visão era perturbadora, porém bela.

— Maldita mentirosa! Como ela se atreve? Está tudo errado! Enganou-me! Eu irei torturá-la! Matá-la! — E agora o ser gargalhava abertamente, como um louco. Você estava encolhido como um animal assustado. Eu não conseguia fazer nada além de olhar com a mais pura perplexidade. — Não é nada disso! Destruir-te-ei! Desgraçar-te-ei!

Foi preciso algum tempo para que eu percebesse que aquela coisa azul era Myra. E também foi preciso algum tempo para eu entender o que ela estava fazendo.

Em um acesso de fúria, ela estava destruindo tudo o que eu havia construído até agora.

E subitamente me vi compartilhando sua fúria.

Para minha sorte, acredito, Myra ficou realmente confusa e surpresa com minha atitude.

— O que você acha que está fazendo? Só porque você embebeda todo mundo acha que pode chegar e destruir o meu trabalho? Eu passei noites em claro construindo essa coisa! — E seguiu-se uma série de palavrões que tenho vergonha de escrever aqui, embora eu não me importe que você tenha ouvido, Charles.

— Noites em vão! Pois de nada funcionaria! Víbora mentirosa! Disse-me que era desse modo, contudo só fez-me perder tempo! Ela arrepender-se-á! — O dialeto de Myra só fazia me irritar ainda mais, não conseguia entender muita coisa do que ela dizia conforme suas palavras ficavam ainda mais arcaicas. Porém aos poucos, ela voltava para sua forma vermelha de sempre. — E você! Não deve se dirigir a mim de forma tão desrespeitosa.

— E você não deveria destruir o trabalho alheio sem dar um motivo plausível para tal atitude. — Respondi enquanto me largava na cadeira. Sequer havia reparado que eu havia levantado. — O que houve?

— O projeto está errado. Era tão mais simples! Espelhos! Era disso que precisávamos! Apenas de uma incubadora feita com espelhos! — Aquilo me desanimou um pouco. Tanto trabalho para nada! Ao menos o novo projeto, pelo que Myra dizia, seria infinitamente mais fácil que o anterior. Talvez pudesse ser terminado em dois dias. — O novo projeto deverá ser algo parecido com isso.

Encarei o desenho por algum tempo. Li e reli as anotações e tentei pensar em uma forma fácil e eficiente de fazer aquilo. Nem de longe era complicado, talvez a única coisa que pudesse me oferecer algum desafio seria manter uma velocidade constante de... de quê?

— O que exatamente deve circular nessa coisa? — Perguntei, cauteloso. Aquilo certamente não poderia ser o que eu achava que era.

— Sangue humano. — E era exatamente aquilo que eu achava que era. — Anjos têm a capacidade de ver quando um humano fez um contrato comigo, contudo não podem ver se um demônio o fez. Se uma alma humana estiver dentro do corpo de um demônio, eles não saberão que a criança pertence a mim.

— E você acha que isso irá funcionar? — Havia uma perceptível insegurança em minha voz. Tudo aquilo que Myra dizia era algo além da realidade, ao menos além da minha realidade. Eu simplesmente não conseguia imaginar aquilo funcionando.

— Estou mais atenta às linhas. Certamente irá funcionar. — O Vício nada mais disse, apenas saiu do recinto. Um dos escravos de Myra entrou para limpar o local, fiquei sentado observando-o enquanto você lia as anotações do projeto. O escravo finalmente saíra, mas deixou uma folha para trás. Levantei-me e andei lentamente até a folha.

Ele viu você sofrer, e não fez nada para te salvar. Ele não quis te resgatar.

H.

— O que houve? — Você perguntou com uma voz descontraída. Hexabelle deveria ter possuído aquele corpo, talvez ela estivesse vigiando o Vício, queria me impedir de cair em alguma armadilha, ela queria me avisar a respeito de algo. Eu nada respondi inicialmente e isso pareceu te preocupar. — Garoto?

— Nada, Charles. Só preciso de um pouco de ar. — Finalmente respondi, quando consegui reunir confiança o suficiente para que minha voz não falhasse. Dentro de mim, de algum modo, eu sabia disso. Sabia que você havia me visto naquele dia, sabia que você optou por não me ajudar.

Saí do local, queria ver o céu desesperadamente. Queria que ele me confortasse, de algum modo. Meus passos errantes foram acelerando-se, até que eu me desse conta de que os guardas de Myra não me deixariam sair desse corredor. O único lugar que eu estava autorizado a ir era ao meu quarto. O bilhete de Hexabelle... De alguma forma, eu já sabia daquilo. Acho que sempre soube.

E acima de tudo, dentro do meu coração, eu sabia. Sem nenhuma dúvida.

Eu sabia que você, Charles, não era meu pai.


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