As Cores da Liberdade escrita por Ryskalla


Capítulo 6
Sexta Carta - Somos Todos Crianças




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Caro Charles,

Será que ainda devo começar assim? Talvez não, mas eu poderia começar de algum outro modo? Escrever tornou-se uma necessidade, mesmo que agora eu já não tenha alguém para escrever. É estranho, eu sei, de qualquer forma...

Estou trabalhando para Myra agora. Eu posso sentir minhas pernas novamente, contudo ainda não consigo andar. Quando tenho tempo livre, tento reaprender a andar e Hexabelle observa com um misto de alegria e pena. Sei perfeitamente que ela não está satisfeita com o acordo que fiz com Myra, porém pretendo manter a promessa que fizemos.

— Você não devia ter aceitado! Ela oferece a saída mais fácil, sempre! Até que você não queira optar por nada além! Você vira dependente da facilidade, ela te vicia até que você tenha apenas sua alma para oferecer. — Por mais que eu estivesse cansado de ouvir Hexabelle dizer aquilo, não podia culpá-la. Sabia que ela estava desesperadamente preocupada comigo.

— Você sabe que eu não poderia recusar... É como... é como se ela te oferecesse a oportunidade de voltar a viver. — Eu tinha conhecimento de que estava tocando no ponto errado, Charles, que aquilo não era algo que pudesse ser dito. Mas... como eu poderia fazê-la entender? Como ela entenderia que voltar a andar era tudo para mim? Como ela saberia quão miserável é a vida de alguém condenado a uma cadeira de rodas. — Belle...

— Eu jamais aceitaria voltar a viver. — Eu a observava, em silêncio. Não conseguia entendê-la e isso de algum modo me machucava. Era como se ela estivesse distante demais para tocá-la. — Meu pai, como todos os ingênuos, acreditava que, se ele se esforçasse de verdade, poderia alcançar a felicidade. E assim como os ingênuos, ele não sabia que correr atrás da felicidade só o levaria para o caminho contrário. Quando eu tinha quinze anos, meu pai perdeu o emprego. Isso o destruiu, de algum modo. Eu não o entendia, não entendia a felicidade. Por que tudo o que importava era estar vivo, não era? A tristeza e o sofrimento faziam parte. Foi no ápice de seu desespero, que meu pai fez um contrato com a Myra. E ela o viciou, o viciou a ponto de torná-lo egoísta. Quando não havia mais nada que ele pudesse oferecer a ela, ele olhou para mim. Soube naquele momento que ele me venderia e por isso subi para meu quarto. Claro que trancar a porta não adiantaria, eu sabia que ele iria derrubá-la. Eu não poderia fugir pela janela sem correr o risco de torcer o tornozelo. Então eu lembrei... Havia um punhal na minha cama, meu pai sempre dizia que eu deveria ter algo para me proteger. Eu não queria morrer e não queria ser vendida. Eu segurava o punhal apontado para meu coração, minha mão tremia tanto que eu temia que o deixasse cair. Tudo o que eu pensava era que eu não queria morrer, eu não podia morrer, por que aquilo estava acontecendo? Quando meu pai finalmente conseguiu abrir a porta, eu cometi suicídio.

Nenhuma palavra chegou a minha mente. Havia apenas a dor e o medo. Medo de desapontar Hexabelle outra vez, dor de não poder abraçá-la, por não possuir nenhuma palavra de consolo a lhe oferecer.

— Eu não irei cometer o mesmo erro que seu pai... — Ela me olhava com descrença e eu balancei a cabeça negativamente enquanto sorria. — Você não irá deixar. Se ela me oferecer algo e eu parecer estar pensando em aceitar, você deverá me possuir. Você me obrigará a recusar

Ela quase não aceitou minha proposta, entretanto acabou cedendo. Nós dois sabíamos que aquela era minha única esperança. E essa foi a primeira promessa que fizemos.

O projeto de Myra era surpreendentemente complicado, por mais que a mesma tivesse elaborado-o bem, havia determinados componentes que eu não conhecia, o que me obrigava a pesquisar sobre e descobrir os possíveis perigos que ele poderia oferecer.

— Enfrentando muitas dificuldades? — O demônio perguntava, com um sorriso. Myra estava sempre sorrindo e eu me perguntava se era natural um demônio sorrir tanto.

— Algumas. Digo, o tamanho desse capacete não lhe parece muito pequeno? Talvez caiba em uma criança, mas... — Eu direcionei minha cadeira de rodas para perto do Vício. Havia muita coisa naquele projeto que me intrigava.

— É para uma criança. Ao menos, têm a aparência de uma. O tamanho está perfeito, não o altere. — Eu a encarei por alguns minutos e ela apenas brincava com suas cartas, cantarolando alegremente.

— O que pretende com isso? — Era uma pergunta idiota, imagino, mesmo que fosse algo totalmente contra minha moral, eu era obrigado pelo contrato a terminar de fazê-lo. Custe o que custasse.

— Pretendo fazer um contrato com um anjo. — Ela sorriu mais abertamente ao notar minha expressão confusa e veio voando lentamente até mim. Seus olhos cor de sangue encaravam meus olhos cor de mel com uma intensidade assustadora. — Eu já fiz contrato com humanos, são os mais fáceis... Com caídos e demônios, mas anjos! Ah! Eles escapam de minhas mãos como a mais pura das águas. Posso sentir sua pureza... porém ela não me pertence. Se for de direito um demônio sonhar, digo-lhe, que meu sonho é ter um anjo. E ei de conseguir, com tua ajuda.

— O que fará depois? — Perguntei, voltando minha atenção para o projeto. Nunca vira um anjo, não sabia de sua natureza, então eles eram algo que não me diziam respeito.

— Divertir-me-ei! Tu sabes, com um único anjo, torna-se mais fácil manipular os demais. Causar o desespero, talvez algumas guerras. Levar todos à loucura! — E ela ria, talvez imaginando aquele futuro que tanto lhe encantava.

— Pretende destruir o mundo? — Não sabia ao certo se aquilo me assustava. Imaginava Hexabelle, milhares de pessoas como Hexabelle vagando pelo mundo. Pessoas que não queriam morrer, que se recusavam a entregar-se para morte.

— Ora, tolo! Claro que não! Que graça teria? Gosto de ver o mundo mudar, acompanhar seu crescimento. Ver até onde vai a capacidade de suportar. O quanto eles suportarão? Será que anjos irão mudar sua natureza? — Myra silenciou-se por um momento, e então voltara a falar em um tom menos animado. Talvez até mesmo amargurado, o que me fez prestar atenção. Era a primeira vez que ouvia a voz de Myra soar daquela forma. — Meus irmãos querem destruir os humanos, acabar com os anjos... Vê o absurdo desse desejo? Humanos são de longe os mais interessantes e é tão divertido brincar com os anjos!

— Não acha que é... solitário? — Pela primeira vez, assisti o sorriso de Myra quebrar. Ela continuou em silêncio, com o semblante sério, como se esperasse uma explicação. — Digo, o que você faz... todos a odeiam por conta disso. E se você resolve ir até mesmo contra seus irmãos, não terá ninguém para apoiá-la no final.

— Então, devo acreditar que você me odeia. — O sorriso voltava a brincar em seu rosto.

— Ora, claro que não. Creio que não nutro nenhum sentimento por você. Se posso dizer que aprendi algo com Charles, é que o ódio de nada lhe adianta. Não podemos evitar sentir raiva, porém ódio... Bom, isso é nossa escolha. Odiava o lugar que eu morava e isso me cegou de muitas formas. Não quero voltar para lá, mas admito que aquele ódio foi um grande motivo para a minha ingenuidade. — Myra voava de cabeça para baixo enquanto me encarava distraidamente, porém era como se ela olhasse algo dentro de mim. Aquilo me deixou terrivelmente desconfortável. — Na realidade, eu a vejo como uma criança. Não importa se tenha centenas de milhares de anos. Não consigo vê-la como nada além de uma criança buscando diversão em seus inúmeros brinquedos, quando na verdade deveria buscar outras crianças para brincar.

O Vício sorriu para mim e se afastou. Havia algo dentro de mim que me dizia que aquilo era um mau sinal. Alguma parte do meu ser podia sentir a dor. Pois Myra era uma criança e crianças são tão infantis...

— Acho, Cedric, que tu precisarás de ajuda. Você não pode carregar peso, não é verdade? Tuas pernas ainda não estão fortes o bastante. — Senti um calafrio percorrer toda a minha espinha. Havia uma maldade na voz do Vício, um prazer oculto. Meu coração começou a acelerar, com medo do que Myra estava para fazer. — Por favor, ajude-o.

— Não tenho conhecimentos para isso, mestre. Por favor, eu imploro que me solicite para uma tarefa diferente. — Imaginei que fosse desmaiar naquele momento. Sentia-me enjoado e naquele momento relembrei como era a sensação de ter suas pernas tremendo.

— Charles? — Perguntei em um fio de voz. Porque não havia possibilidade de você estar vivo. Não quando eu já havia aceitado sua morte.

— Olá, garoto. — Você deu aquele sorriso sarcástico que sempre esteve presente em minha infância e me encarou com seus olhos vermelho-sangue.


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