As Cores da Liberdade escrita por Ryskalla


Capítulo 3
Terceira Carta - Um Brilho de Esperança




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Caro Charles,

Acabei adormecendo em minha cadeira enquanto redesenhava o projeto do elevador. Era um projeto particularmente difícil, mas muito bem-vindo, era de conhecimento geral os perigos que a Subida carregava, como se sobreviver fora da Fenda já não possuísse perigo o bastante.

Claro que eu não me importava com esses perigos, nem mesmo um dragão furioso diminuiria minha vontade de sair desse lugar.

Alice voltou algumas vezes aqui, mesmo após descobrir que o problema fora realmente o vento, como eu previra. Contudo, nossas conversas eram extremamente formais, não queria cometer o descuido de falar mais do que deveria novamente. Devo dizer, Charles, que Alice é melhor do que eu imaginava no quesito de descobrir o íntimo das pessoas. Pouco a pouco nossas conversas deixavam a formalidade para trás, talvez porque eu realmente sentia falta de conversas como as que eu tinha com Hexabelle, talvez porque estávamos virando amigos de fato. Não sei dizer ao certo, Charles, acho que sou uma pessoa muito confusa.

— Ela apareceu? — Essa pergunta demorou um tempo razoável para aparecer em nossas conversas. Em geral, nossas conversas eram a respeito de mecânica, projetos para alguma possível melhora no balão ou até mesmos debates sobre o futuro elevador.

— Ela quem? — Era óbvio que eu sabia a quem ela se referia, mas sempre havia esperança de que aquela pergunta a fizesse voltar atrás. Esperança que na maioria das vezes se mostrava falsa, já que pessoas têm a tendência de se mostrar corajosas quando menos esperamos.

— Sua amiga... Que desapareceu. — Sua fala era lenta, como se estivesse calculando exatamente onde pisar. A irritação começava a chegar e eu tentava controlá-la da melhor forma que eu conseguia.

— Não. Provavelmente não irá voltar, ela deve ter coisa melhor para ocupar sua mente. E eu também. — Deixei escapar um longo suspiro, aquele assunto era cansativo. Ter esperanças era cansativo. Era mais fácil aceitar que ela jamais voltaria.

— Como você passou a usar cadeiras de rodas? — Outra pergunta que demorara para aparecer em nossas conversas. Porém, agora eu já não estava surpreso.

— Deixou para fazer as perguntas problemáticas no seu último dia de estadia? Soube que conseguiram consertar seu balão. — Permiti que um sorriso calculado se formasse em meu rosto enquanto a encarava intensamente.

— Sim, deixei. Achei melhor, não me pareceu educado perguntar para os outros. — Ela retribuiu meu olhar com um levemente desafiador. Reparando agora, seus olhos possuíam uma cor distinta. Eram castanhos, como o cabelo da garota, porém havia pequenas manchinhas verdes espalhadas por sua íris. — Você não concorda?

— O quê? Ah, sim. — Fiquei distraído com aquelas manchinhas, Charles, elas faziam os olhos de Alice parecerem tão inocentes. O olhar da garota ficou mais intenso e vi que seria melhor contar de uma vez. Afinal, não era algo que eu fazia muita questão de esconder. — Eu tinha dez anos, queria sair da Fenda e fui tentar fazer a Subida sozinho... Estava anoitecendo e eu sabia que não conseguiria ver o céu azul, mas havia as estrelas que pareciam ser igualmente belas. Quando cheguei lá fora o grupo de exploração estava sendo atacado. Tentei voltar correndo, para buscar ajuda, porém um dos atacantes me viu e veio montado em seu cavalo atrás de mim. Fiquei suspenso enquanto ele carregava, lutando para me soltar. Foi aí que fui salvo, atacaram o cavalo e o homem me largou e caiu do cavalo, tentei me arrastar só que o animal acabou pisoteando minha coluna.

O silêncio se fez presente e permiti que minha mente entrasse no labirinto das lembranças. Naquele dia, eu vi as estrelas e elas eram mais maravilhosas do que você me descrevera, Charles. Foi nesse dia também que conheci Hexabelle. Enquanto a batalha terminava, ela segurou minha mão enquanto dizia para eu olhar para o céu. Que aquilo era uma aposta, que eu ganharia se ficasse olhando para o céu até o socorro chegar. Enquanto pessoas morriam ao meu redor, eu olhava para o céu, tentando vencer a aposta. E quando os gritos cessaram, as estrelas já estavam desaparecendo e eu já não conseguia mais olhar para o céu, mesmo sob os apelos de Hexabelle.

Quando o socorro chegou, eu já havia perdido a aposta há muito tempo.

— Deve ter sido difícil... — Eu a ouvi murmurar e apenas dei um breve aceno com a cabeça. Não havia o que falar e lembrar daquilo só fez a dor da ausência de Hexabelle ficar mais forte. — E você nunca conseguiu ver o céu azul? Ou as estrelas novamente?

— A poluição da Fenda nunca permitiu. E se antes eu já estava preso a esse lugar, agora estou preso à cadeira de rodas. Ninguém me levaria lá em cima, dizem que é muito perigoso, mas sei que eu seria um peso para eles. Eles ficariam em perigo por causa da minha condição. — Falei em tom amargurado, sei que estou sendo egoísta, Charles, isso é algo que Hexabelle provavelmente diria. Diria que se tivesse um sonho que colocasse em risco a vida dos outros, ela estaria feliz em não realizá-lo.

— Meu balão é grande... — Ouvi a voz de Alice começar a dizer e franzi o cenho. Um belo sorriso se formou no rosto bronzeado da garota, talvez minha expressão fosse algo realmente engraçado para ela. — Posso te levar para ver o céu azul, poderá ver as estrelas outra vez... E, dependendo do vento, posso levá-lo para ver o mar.

Até agora não consigo acreditar nessa proposta, Charles, é algo além da realidade. Entretanto, imediatamente comecei a me preparar para a viagem. Terminei o projeto do elevador e organizei minhas coisas. Esperava nunca mais ver esse lugar novamente, que as coisas pudessem dar certo e, mesmo que isso seja ambicioso demais, que eu pudesse ser feliz.

— Você não pode... Não pode sair daqui... — Fui pego de surpresa, devo admitir. Imaginei que fosse Alice, contudo...

— Belle? — A surpresa e a raiva estavam mescladas em minha voz. Ela estava sentada em seu lugar de sempre e evitava me olhar nos olhos.

— É perigoso, você não sabe como é lá fora. Charles certamente não iria querer que você saísse daqui. — Acho que você jamais poderá ter idéia, Charles, de quanto aquelas palavras me irritaram. Ela sequer te conhecia! Como ela poderia saber o que você iria querer?

— Como você pode saber? Você nunca o conheceu! E quem você acha que é? Que pode desaparecer e voltar quando achar que deve? Você sabe como isso é importante para mim! — Guiei a cadeira para perto de onde ela estava sentada, ela mantinha o rosto escondido e ainda evitava me olhar e isso só fazia com que eu ficasse ainda mais nervoso.

— Eu me preocupo com você. Você não sabe como é lá em cima, mas eu sei... Eu não quero que você morra, Cedric....

— Se eu morrer, você não terá tanta dificuldade em lidar com a situação, não é? — Sei que foi um comentário maldoso, mas não pude evitar. Hexabelle desapareceu sem dizer uma única palavra e eu busquei me manter ocupado, esperando que a culpa jamais conseguisse me alcançar.

Mas não importa o quanto a gente corra, ela sempre consegue.


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