As Cores da Liberdade escrita por Ryskalla


Capítulo 11
Décima Primeira Carta - Batimentos Descompassados




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Caro Céu,

Não lembro o momento em que adormeci. Os dias passam e eu sinto-me cada vez mais cansado. Quando acordei naquela manhã, era como se eu não tivesse dormido um segundo sequer. Busquei lembrar-me de alguma outra situação em que isso me ocorrera, porém minha memória me desapontou.

— Você mudou bastante, garoto... — Pulei na cama e Charles começou a rir, lancei um olhar zangado a ele. Que reação ele esperava? Sua risada rouca imediatamente cessou, entretanto aquela expressão de divertimento sarcástico não abandonou seu rosto. — Talvez nem tanto assim, ainda é um menino assustado.

— O que você quer? — Indaguei enquanto pressionava a ponte do meu nariz. Eu nunca sabia se de fato queria falar com Charles.

— Quero falar sobre sua mãe... e sobre seu pai. — Nossos olhos se encontraram e eu fiquei em silêncio, esperando que ele continuasse a falar. Charles retirou um papel de suas vestes e me entregou, seu rosto exibia um pesar pouco característico dele. — Desenhei isso quando ela ainda era viva... o nome dela era Vivian.

— Não sabia que você desenhava. — Ergui uma sobrancelha sem deixar de encará-lo, ele deu um sorriso como se dissesse: Você não sabe muitas coisas sobre mim, garoto. Desenrolei o papel e contemplei pela primeira vez o rosto de minha mãe. — Você desenhava bem...

— Ela também dizia isso. Sua mãe, seu pai e eu éramos amigos de infância. Tínhamos o sonho de abandonar a Fenda, assim como você e tal como você, nós conseguimos. Iniciamos a vida em uma pequena vila. Riley, que era seu pai, sempre foi um homem de coragem admirável... ele pediu a mão de sua mãe antes que a coragem se manifestasse em mim. Aceitei, claro, porque ela estava tão feliz... nunca quis destruir a felicidade de sua mãe. — O rosto de Charles estava apontado para baixo e eu não conseguia ver a expressão em seus olhos. Ele poderia estar chorando? Remexi-me desconfortável na cama, dividido entre o medo e a vontade de descobrir sobre meu passado. — Foi então que os ataques começaram.

— Ataques? — A pergunta soou vazia, apenas um leve olhar de Charles foi necessário para que eu entendesse o que ele dizia. Após isso seu rosto voltou a mirar algum ponto perdido em suas mãos.

— Primeiro foi em uma vila distante, até que foram se aproximando. Quando os demônios chegaram à vila vizinha, Riley partiu. Disse que deveria impedi-los antes alcançassem nossa vila. Você estava para nascer quando ele partiu e eu fiquei junto de sua mãe. Eu a ajudei no seu parto. — Seu rosto elevou-se o suficiente para que eu visualizasse um sorriso tímido. Indagava-me se havia alguma expressão em meu rosto, porque eu não conseguia encontrar nenhum sentimento naquele momento. — Lembro-me que você quase não chorou, Vivian ficou preocupada, achou que você poderia estar doente... depois descobrimos que você seria um bebê calmo, quase preguiçoso. Sempre foi muito fácil lidar com você, garoto.

Permaneci calado, as palavras pareciam desaparecer da minha mente, por mais que houvesse diversas perguntas que eu gostaria de fazer.

— Seu pai não retornou. Cada dia de sua ausência parecia deixar o estado de sua mãe pior. Vivian nunca mais sorriu e eu me arrependi de nunca tê-la desenhado antes. O sorriso dela era absolutamente lindo. — Meu olhar recaiu sobre o desenho outra vez, absorvendo os detalhes até o ponto que bastaria fechar os olhos para contemplá-lo. — Sua mãe começou a ouvir vozes... Conversava com pessoas que eu não conseguia ver. Ela olhava para mim, os olhos carregados de desespero... Você não os vê? Ela perguntava e eu apenas balançava a cabeça negativamente. Estava ficando preocupado com ela... eu sabia que ela continuava vendo aquelas coisas, entretanto... ela tentava ignorá-los, provavelmente para não me preocupar. Escondia-se debaixo das cobertas, tampava os ouvidos enquanto fechava os olhos com força. Assisti a tudo aquilo com um pavor mudo. Vivian só ficava bem de fato quanto você estava nos braços dela. Era como se você conseguisse afastá-los.

Meus dedos repuxaram o lençol. Minha mãe também os via... porém não era como eu, ela não tinha Hexabelle... ela era como Nyx com suas crianças fantasmas malditas. Eles a perturbavam, eles a enlouqueciam pouco a pouco... Charles continuava seu relato, sem parecer notar meu estado de espírito.

— Certo dia, eu resolvi ir atrás de seu pai. Parti após sua mãe adormecer. Não queria que ela soubesse, porque tinha medo do que eu pudesse encontrar. Eu sempre dizia a ela que ele estava bem, que sua demora era devido aos feridos que ele estaria cuidando e protegendo. Dizia-lhe para não se preocupar, que Riley matara um número incontável de demônios e que logo estaria de volta... — Ele parou por um momento, ainda sem olhar para mim. — O corpo dele estava quase que inteiramente destroçado... Foi difícil reconhecê-lo. Demorei certo tempo para me recuperar, mesmo depois de ter voltado para sua mãe eu ainda podia sentir o gosto de vômito. Tentei ao máximo parecer que estava bem... ela percebeu, ela sempre percebia... quando anoiteceu ela me chamou até o quarto dela. Pediu para que eu me deitasse com ela. Nossas testas se tocavam e você estava entre nós, completamente adormecido. Charles, ela iniciou, preciso que você tire Cedric daqui... Leve-o de volta para a Fenda. Eu a fitava sem compreender, perguntei: Mas e você? E tudo o que ela me respondeu foi que precisava esperar por Riley. Naquele momento senti vontade de contar tudo, dizer que Riley estava morto e eu teria contado se ela não tivesse colocado o dedo em meus lábios para que eu silenciasse. Há sacrifícios que as mães têm que fazer por seus filhos, por favor, Charles...

— E desde então você tem me criado... por que nunca me contou a verdade? — Levantei da cama, queria lavar o rosto. Fui ao banheiro e Charles ficou parado próximo à porta. O contato com a água fria acalmou um pouco minha mente. Ela parecia mais clara agora, menos confusa.

— Porque eu nunca consegui reunir forças para contar... pelo menos não até agora. — Eu o compreendia, de certo modo. Nunca poderia imaginar que Charles carregasse tanto sofrimento. Eu era tão cego! Tantas pessoas sofrendo ao meu redor e eu não conseguia enxergar. Estava apenas focado em meu sofrimento como um menino mimado e egoísta.

Alguém batia na porta, eu e Charles trocamos olhares por alguns instantes. Quem poderia ser? Fechei a torneira andei até a porta. Não poderia estar mais surpreso ao encontrar Alice atrás dela.

— Cedric... E-eu posso ficar aqui um pouco? — Os olhos castanhos de Alice pareciam passarinhos assustados, dei um aceno mudo e permiti que ela entrasse. Charles a observava com um olhar divertido e não pude evitar ficar preocupado.

—Você deveria tomar cuidado, mocinha, ele pode acabar roubando um beijo seu. — A desgraça estava feita. Senti um calor subir pelo meu rosto ao passo que Charles estava rindo abertamente. — Ora, então vocês já se beijaram!

— Pare de ser inconveniente, Charles... — Murmurei sem ter coragem de encarar Alice. Imaginava se ela estaria tão sem graça quanto eu.

— Charles? O seu pai? Ele não estava... — Suspirei profundamente e imediatamente cortei a fala de Alice. Não podia evitar agir dessa forma, a vergonha me deixava desse jeito.

— Sim, também achei que estivesse, contudo ao que parece ele é cheio de surpresas... — Ambos me lançaram um olhar constrangido e me senti um verdadeiro idiota. — Desculpe.

— Eu cheguei em um momento ruim? É que Klaus... ele está um pouco chateado e... — Seu tom de voz era como quem quisesse se desculpar. Alice torcia as mãos nervosamente eu notei os hematomas em seus braços.

— Ele bateu em você. — Charles a encarava friamente, o que a assustou. Instintivamente me aproximei dela, como se Charles fosse algum tipo de ameaça. — O contrato de Myra ainda não foi quebrado.

— Não há contrato... e-ele realmente me ama é que... — Mesmo ela não sabia como terminar, as desculpas iam sumindo de sua mente. Eu segurei a mão dela levemente e observei melhor o seu braço. Além dos hematomas, havia algumas escoriações e um sentimento de ódio rapidamente tomava conta da minha alma.

— Só há um jeito de quebrar um contrato de Myra... — Charles saiu imediatamente do quarto. O que quer que ele quisesse dizer com aquilo, não era boa coisa. Eu e Alice saímos atrás dele.

Andamos pelas ruas, por mais que o procurássemos, não havia sinal dele. Para nossa completa infelicidade, encontramos a pessoa errada. Klaus nos encarava com uma raiva reprimida fazendo com que Alice se encolhesse como um animal amedrontado.

— Então você estava aí! É isso que você faz quando eu não estou por perto? Fica andando com outros homens? Nunca imaginei que você seria esse tipo de mulh... — Encontramos Charles. Ele olhava furiosamente para Klaus com seus olhos vermelhos. O pobre homem parecia não ter notado a presença do demônio atrás de si. Quando notou era tarde demais.

— Você me enoja... — Alice olhava a cena com um espanto petrificado. Charles deferiu um soco no rosto de Klaus, que caiu no chão completamente apavorado. — O que você acha disso, seu merda? O que você acha de apanhar de alguém mais forte que você?

— P-por favor... pare... — Contudo Charles não parou, mesmo com Alice suplicando para que ele parasse. Charles continuou a surrar o humano a sua frente com um prazer doentio. As pessoas que assistiam a cena estavam horrorizadas e cheias de medo. Não era todos os dias que se via um demônio arrancando os braços de um humano.

— Você acha que é durão? Olhe só pra você, seu desgraçado, olhe só! — Klaus berrava por perdão em meio aos gritos de dor. O homem olhou para mim antes de enfim desmaiar e apenas aí Charles pareceu notar o que fazia. O pescoço de Klaus deu um estalo quando Charles aplicou o golpe de misericórdia. Mesmo que não precisasse, considerando todo o sangue... — Que Deus tenha piedade da sua alma...

Alice já não chorava, o contrato havia sido quebrado ou quem sabe ela apenas estava em choque. Eu a arrastei para longe daquela cena, levando-a de volta para a pousada. Não vi para onde Charles foi e aquilo não me interessava. Quando eu acreditei que poderia perdoá-lo, quando pensei que as coisas talvez pudessem encontrar alguma resolução entre nós… ele mostrou sua verdadeira natureza. Eu não conseguia ver aquela atitude como algo que ele tivesse feito por mim, ele era um demônio no fim das contas...

— Você está bem? — Era uma pergunta idiota, no entanto eu não sabia o que dizer e o silêncio me guiava para pensamentos que eu desejava evitar.

— Eu não sei, digo, estou… aliviada? Aliviada por me ver livre daquele monstro... só não queria que fosse daquele modo, não... — Nenhum de nós sabia como conseguimos assistir àquela cena. Fora... irreal demais. Sabia que aquela cena iria atormentar minhas noites de sono e isso só me fazia perguntar: por que eu continuei olhando? Por que eu não desviei o olhar?

— Desculpe... pelo que o Charles fez. — Pela primeira vez em muito tempo eu vi os olhos de Alice sorrirem. Pouco a pouco ela parecia voltar a ser como antes, mas mesmo aquela constatação me incomodava. Nada deveria ser como antes, não depois de ver uma cena como aquela… talvez tenha sido isso que o inferno roubou de mim, de nós… 

— A culpa não foi sua, Cedric. Você não deve se responsabilizar pelas atitudes de seu pai. Na realidade, você me salvou. — Estávamos perigosamente próximos e eu não sabia se aquilo era o que eu realmente queria. Mas se não era... por que meus batimentos estavam tão descompassados? Por que eu parecia capaz de esquecer coisas que antes acreditei que me atormentariam eternamente? A morte de Klaus parecia pouco menos que uma sombra agora...

— As pessoas dizem que estou apaixonado por você... — Desejava que meu tom fosse mais divertido do que assustado, tê-la tão próxima era intimidador.

— Céus, espero que elas estejam certas... — Nossos lábios se tocaram e tudo o que eu queria era que ela não percebesse como meu coração irregular batia de extrema felicidade.


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Notas finais do capítulo

Queridos leitores! Deixo mais uma carta do Cedric para vocês! Espero que gostem! Peço que se houver algum erro mandem um comentário ou MP avisando, hahaha. Desde já agradeço! Beijinhos ;)



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