As Cores da Liberdade escrita por Ryskalla


Capítulo 10
Décima Carta - Guerras e Risos




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Caro Céu,

Hexabelle não quis me contar o significado das palavras da garota, disse que queria ter certeza e que me contaria assim que fosse possível. Ela desapareceu e tudo o que me restava era esperar... pensei em encontrar Alice, contudo eu não sabia ao certo se deveria incomodá-la. Eu não queria que ela se sentisse pressionada ou que acreditasse que eu não possuía esperanças de que ela fosse capaz de quebrar o contrato sozinha.

Lembrei-me de Brooke e senti receio, como ele estava? O que diria se me visse em um lugar como esse? Varri todos esses pensamentos da minha cabeça, eles de nada contribuiriam. E reencontrá-lo poderia me poupar do tempo de espera, quem sabe quanto tempo Hexabelle demoraria a voltar?

Achar Brooke não era um algo realmente trabalhoso, certamente ele era uma figura notável. Poucas pessoas possuíam um braço de metal e a personalidade dele era algo... peculiar.

Ele estava sentado em uma viela, seu braço metálico segurava um saco de doces que ele parecia comer animadamente. Fiquei parado observando-o sem saber como me aproximar. Talvez seu braço não funcionasse mais, pensando agora... o prazo já deveria ter acabado.

O olhar levemente avermelhado de Brooke encontrou o meu e seus olhos se tornaram alegremente surpresos. Ele levantou-se rapidamente, bagunçando seus pálidos cabelos e acenou com seu braço mecânico para mim.

— Cedric! Que surpresa te ver! Gostaria de um doce? — Eu obviamente não esperava uma recepção dessas, também não esperava que Brooke pudesse mover seu braço. Peguei-me sorrindo enquanto me aproximava da área sombreada em que ele se sentava, eu ainda me lembrava do pequeno problema que ele tinha com o Sol.

— Digo o mesmo! Fico surpreso por seu braço estar funcionando ainda. — O rosto sorridente de Brooke tornou-se sério por um momento enquanto olhava para minhas pernas.

— Vejo que Myra conseguiu te buscar... — Seus olhos tornaram-se culpados e eu pude sentir meu sangue gelar. Então não havia sido Charles que falara a meu respeito para o Vício. — Ela me encontrou poucas semanas depois da energia dele se esgotar. Disse que poderia mantê-lo funcionando eternamente desde que eu lhe contasse quem o havia construído e onde ela poderia encontrá-lo. Nunca imaginei que ela conseguiria te alcançar naquele buraco.

— Ela conseguiu, mas não sem certa ajuda. — Expliquei. Não havia raiva, nem tristeza. Eu me sentia como... se aquilo fosse algo que não pudesse ser evitado de uma maneira ou de outra. Ninguém era culpado e talvez fosse o único meio de me tornar realmente livre. Narrei a Brooke todos os acontecimentos que ocorreram até então e a razão de eu estar naquela cidade. Nada revelei sobre Hexabelle, seria algo difícil de explicar e a omissão da existência dela não prejudicou a história.

— Entendo... Estou aqui apenas de passagem. Irei partir amanhã. Uma guerra está se aproximando, você deveria fugir dela também. — Ele abria um pequeno embrulho prateado, colocando o conteúdo dentro da boca. — Aceita uma bala?

— Guerra? — Indaguei enquanto rejeitava a bala com um aceno negativo. Aquilo era preocupante, o mundo fora da Fenda era cheio de complicações.

— Os demônios estão se rebelando... alguns Caídos também, os anjos estão tentando lidar com a situação só que não conseguem impedir as mortes humanas. Ataques de demônios em quase todas as cidades. Ouvi dizer que a Cidade Catedral é um ponto seguro e por isso estou indo para lá. — Sua expressão era soturna e seus olhos distantes. Eu nunca havia enfrentado uma guerra antes, porém pelo olhar de Brooke eu podia ver que aquilo não era uma novidade em sua vida. — Há boatos de que os anjos estão construindo uma fortificação... para proteger os humanos. Entretanto ninguém sabe onde fica, talvez isso seja apenas uma falsa esperança. Os demônios logo estarão aqui, seria sensato deixar esse lugar o quanto antes.

— Não posso... não posso sair daqui sem Alice. — Agora eu estava correndo contra o tempo. Alice estava correndo contra o tempo. Senti tentado em buscar auxílio de Myra, mesmo que aquilo não fosse uma atitude inteligente.

— Espero que ela consiga quebrar o contrato antes que seja tarde demais. — Brooke sorriu sutilmente e piscou para mim. — Você escolheu uma péssima hora para se apaixonar.

— Imagino que tenha razão... — Não que eu estivesse de fato apaixonado por Alice... eu apenas não sabia o que responder. Os meus sentimentos por Alice em geral são muito conflitantes e aquela repentina declaração de Hexabelle... era como se todos soubessem que eu amava Alice, todos... menos eu. O que era o amor, afinal?

— Tenho que começar a organizar algumas coisas, não que haja muito que organizar. Pretendo partir antes do nascer do Sol. — A alva mão de Brooke segurou a minha e nela depositou um doce com embalagem dourada. Ambos sorrimos tristemente, tendo consciência de que aquilo era uma despedida. — Guarde o papel, para você se lembrar de mim. Quero agradecer outra vez pelo braço, é um trabalho fantástico.

— Tentarei ir para o refúgio que você falou. — Não podia me permitir perder as esperanças. Iria sair dali e levaria Alice e Hexabelle para um lugar seguro. Reencontraria Brooke e ficaríamos todos juntos, esperando a guerra acabar. — Irei guardar e não precisa agradecer. Fico feliz em saber que ele não tenha se tornado um peso morto.

Separamos-nos com aquele gosto amargo que em geral as más notícias possuem. Desanimadamente decidi retornar para a pousada. Um súbito medo de encontrar Alice caso continuasse a caminhar sem rumo pela cidade foi a razão para que eu voltasse tão cedo.

Quatro horas de espera até que Hexabelle tornasse a aparecer. Ela exibia um olhar preocupado e assustado.

— A garota que eu possuí se chama Naina... Eu consegui possuí-la outra vez, enquanto ela dormia e então vi certas memórias que ela tinha. Quando ela acordou, a alma dela me expulsou. — Um breve silêncio se seguiu após a sua explicação. Hexabelle praticamente flutuava de um lado para o outro e eu começava a ficar nervoso com a inquietação dela. — Foi o suficiente... eu já suspeitava que ela estivesse se referindo à Nyx... Sabe, a Nyx é bastante conhecida entre os espíritos porque algumas crianças gostam de atormentá-la... espíritos de crianças. Aquela garota perdeu a sanidade há um tempo.

Continuei encarando Hexabelle, a curiosidade aflorando dentro de mim em uma velocidade absurda. Tentava imaginar a garota Nyx sendo atormentada por crianças mortas... Será que ela sabia o que aquelas crianças eram? Minha atenção voltou para Belle quando ela pareceu querer continuar.

— Nyx tem um problema desde a infância... ela sempre ri. Nas situações mais inesperadas uma súbita crise de riso toma conta dela. Isso sempre irritava o pai dela e ele a agredia por causa disso. Só que ela continuava rindo e ele desistia de castigá-la. A mãe se afundava em um mar de depressão e o pai dizia que Nyx era a culpada, porque ela era enviada do demônio. — Uma nova pausa, os olhos de Hexabelle se enchiam de tristeza a cada palavra e eu me peguei desejando que ela parasse. Não queria mais saber da história daquela garota risonha. Não queria conhecer sua loucura. — Certa noite, Nyx pegou uma faca. A mãe dela sempre falava no paraíso e que, quando morremos, vamos para lá. Ela era apenas uma criança que queria acabar com o sofrimento dos pais. Queria libertá-los e enviá-los para o paraíso. Porque sua mãe sempre falava tão bem daquele lugar...

— Ela matou os próprios pais... — Hexabelle deu um aceno angustiado. E ficamos em silêncio, absorvendo toda aquela história. — Como conhece a história dela?

— Às vezes Nyx conta para as pessoas. Ela contou essa história para Naina, contudo eu já sabia... os espíritos que atormentam aquela garota espalham sua história. Acham graça. — Fitei o chão por vários minutos. Não conseguia encontrar nenhum vestígio de graça no passado daquela garota. Não conseguia entender como alguém poderia encontrar. — Nyx matou os pais sorrindo. Naina estava fugindo de casa, havia brigado com os pais e Nyx interpretou de forma errada os lamentos da garota. Disse para Naina que poderia libertá-la, que ela e seus pais jamais iriam brigar novamente e que ela já havia feito isso na sua família.

— Nyx matou os pais... ela matou os pais daquela garota? — Não havia sentimentos que eu pudesse sentir naquele momento. Pena? Raiva? Nenhum deles parecia correto. Nenhum se encaixava... apenas a perplexidade pairava no ar.

— Naina tentou impedir, porém acabou assistindo a morte dos próprios pais. Eu não quero descrever a cena... — Não a obriguei que Belle descrevesse, eu também não queria ouvir. Minha cabeça estava pesada e minha garganta apertada. Deitei na cama e levei minhas mãos ao rosto... se fora difícil ouvir a história de Nyx... como teria sido para Hexabelle? Ela que havia visto toda a cena através das lembranças de Naina?

— Acho que não consigo acreditar que ela tenha feito isso... imagino que as crianças tenham participado. — Meu olhar estava perdido em algum ponto do teto e, portanto, não conseguia ver a expressão de Hexabelle, mas ao julgar pela voz eu acreditava que ela estava carregada de tristeza. Havia muita tristeza no mundo, mais do que eu poderia supor. A pobre garota louca que apenas ria... ela conseguia enxergar a tristeza? Talvez Nyx achasse graça da própria miséria e agora uma pergunta inquietante perpetuava em minha mente... a felicidade poderia enlouquecer? Não, não era isso... aquela garota não era feliz... ela apenas ria.

— Naina... ela disse que Nyx vestia o arco-íris... O que ela quis dizer com isso? — A súbita lembrança da cena que ocorreu na noite anterior reviveu minha curiosidade. Não havia motivos para eu ter me lembrado de tal detalhe, ele apenas estava lá.

— Nyx tem uma forma estranha de se vestir. Ela mistura todas as cores e parece usar algum tipo de tinta no cabelo. É incomum... e por causa da sua aparência colorida algumas pessoas se referem a ela dessa forma. A garota que veste o arco-íris. — As palavras seguintes de Hexabelle vieram carregadas de desagrado. — Essa nomeação é mais rara... muitos preferem chamá-la de louca risonha, lunática das gargalhadas...

— Você parece nutrir um certo afeto por ela... — Afirmei enquanto observava fixamente Hexabelle.

— Como não poderia? — Ela exclamou, contrariada. Conforme as palavras saíam mais nervosas elas se tornavam. — Quando ela mais precisava do apoio... ele lhe foi negado. As únicas pessoas que poderiam ajudá-la se recusaram a isso... os pais sempre devem olhar por seus filhos...

— A razão de seu afeto é que você se identifica com ela... a única saída que vocês puderam encontrar foi a morte. Você causou a morte a si mesma e ela aos pais dela. — Hexabelle não olhava para mim, ela vagava pelo quarto sem saber ao certo onde fixar seu olhar. — Você nunca falou sobre sua mãe.

— Porque nunca houve o que falar sobre ela. Eu nunca fui bem-vinda para ela, na realidade... ela tentou me matar quando eu era um bebê... — Era como se meus batimentos houvessem cessado. Eu sabia tão pouco sobre Hexabelle... apesar de tantos anos de convivência, dar-me conta disso apenas naquele momento me pareceu algo pateticamente ridículo. — Meu pai a viu e a matou. Ele dizia que nunca se arrependeu de ter feito isso, mesmo que ele amasse minha mãe... ele dizia que nós só tínhamos um ao outro e que sempre seria assim... como ele poderia querer me vender se ele era a coisa mais importante que eu possuía?

Nada poderia ser dito naquele momento e nós dois sabíamos disso. Era um entendimento que nós possuíamos. Quando a camada de tristeza era tão densa e inatingível, nós nada dizíamos. Porque nenhuma palavra poderia levar a luz para aquela tempestade de dor. Ficávamos em silêncio esperando que a tempestade passasse, esperando que as lágrimas lavassem nossas almas.

Mas os mortos não podem chorar... por isso eu chorava por Hexabelle.


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Notas finais do capítulo

Desculpem a demora para postar esse capítulo! Estive muito doente esses dias e muito atarefada também. Quase não tive tempo de entrar no computador, ainda mais de escrever a fic! Bem, aí está a nova carta do Cedric, espero que continuem gostando da história! Beijinhos.



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