The Winter's Tale escrita por Nymeria


Capítulo 1
The winter's tale


Notas iniciais do capítulo

The winter's tale é uma peça de William Shakespeare, onde uma das personagens se chama Hermione. Na peça, Hermione é casada com um rei ciumento que, quando desconfia que ela o trai, manda prendê-la numa torre. Ela fica presa lá por muito tempo e só consegue escapar fingindo a própria morte. Anos depois, o rei, já muito arrependido, descobre que ela está viva e a quer de volta. Hermione o perdoa, apesar de tudo, e os dois acabam no melhor estilo "felizes para sempre".
Boa leitura! ;)



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- Harry, está tudo bem? – perguntei, vendo-o fechar a porta do quarto de Rony silenciosamente. Continuei encarando-o com preocupação, mesmo quando ele se voltou para mim e fez um gesto para eu me sentar.

- Está tudo bem. – ele assentiu, enquanto eu me acomodava na ponta da cama de Rony e ele na cama em frente. – Eu só queria... te pedir um favor.

- Claro, qualquer coisa. – balancei a cabeça ansiosamente.

- Bom... – Harry encarou as próprias mãos por um momento, me deixando ainda mais aflita – Como Snape não tinha nenhum parente, depois que ele morreu, seu cofre em Gringotes foi aberto. Em parte, o Ministério tomou essa medida como forma de garantir que não havia nenhum outro objeto das trevas guardado no banco. – ele explicou e eu concordei com a cabeça. Eu sabia daquela história, o conflito que aquela “operação limpeza” estava causando com os duendes ocupava as páginas do Profeta Diário há semanas. – O ouro que havia lá dentro será doado para instituições de caridade e os objetos pessoais, depois de uma inspeção, serão queimados.

- Entendo – murmurei, embora não entendesse muito bem onde ele queria chegar com toda aquela conversa.

 - Ontem à tarde, Kingsley me chamou em seu escritório. Ele me entregou isso... – Harry se inclinou na direção da mesa de cabeceira entre as duas camas e retirou um velho volume encadernado de dentro de uma das gavetas. – Estava no cofre de Snape.

- Isso é...? – comecei, sentindo minha voz trêmula e meu cérebro trabalhando velozmente para tentar absorver a possibilidade de existência de outra horcrux e o que isso poderia significar.

- Não, não! – Harry se apressou em negar – Não é uma horcrux. O pessoal do Ministério já deu uma conferida superficial, e ele não contém nenhum tipo de magia negra.

- Então... o que é? – questionei, o medo dando lugar à curiosidade.

- Parece ser um diário. O motivo de Kingsley ter entregado ele a mim... é que tem o nome da minha mãe.

Harry abriu o volume, de modo que a primeira página ficasse visível. Uma única frase fulgurava no meio da página amarelada, escrita em preto numa caligrafia apertada e pouco legível.

Para e por Lílian Evans, sempre.

Não soube o que responder quando ele voltou a fechar o volume e ergueu a cabeça para me fitar.

- Eu não tive coragem de ler. Foi isso que Kingsley me pediu para fazer. Lê-lo. Conferir se existe alguma informação importante para o Ministério, o nome de algum Comensal desconhecido, destino de alguma pessoa desaparecida. Foi uma gentileza, entende, ele passar essa missão para mim.

- Eu entendo.

- Mas não tive coragem de lê-lo.

- Harry, é compreensível. Tenho certeza de que Kingsley não vai se importar de designar esse serviço para outra pessoa.

- Eu sei. O fato é que... eu não quero fazer isso, também. Isso aqui... é pessoal. Não me sinto confortável com a ideia de um desconhecido lendo o que quer que esteja escrito aqui. É sobre a minha família.

- E então?

- Eu estava pensando se... você não o leria por mim. – ele finalmente fez o pedido, ajeitando os óculos sobre o nariz antes de me olhar diretamente. – Eu confio em você. Você é família também.

Eu sorri, pulando para a outra cama para me sentar ao lado dele. Cobri a mão de Harry com a minha, apertando-a um pouco. Sim, éramos uma família.

- É claro que eu leio por você. – disse, mirando-o – Mas tem certeza de que é isso que você quer? É uma coisa muito pessoal. É sobre a sua mãe.

- Eu tenho certeza. Justamente porque é sobre a minha mãe... – ele afirmou, balançando a cabeça – Eu já tenho tão poucas lembranças dela. Dela com meu pai, deles como um casal. Quero guardar as que eu tenho do jeito que são.

Eu entendi mesmo as palavras que ele não disse. O que quer que estivesse escrito naquele livro, era do ponto de vista de Snape. Podia compreender que Harry não quisesse comprometer suas memórias com a paixão, o ciúme ou o amor não correspondido de outro homem por sua mãe. Talvez eu também não quisesse, em seu lugar.

- Está tudo bem. Eu leio. – garanti, sorrindo – Você tem algum prazo?

- Bom, os pertences de Snape serão queimados dentro de um mês. Se você tiver tempo de lê-lo antes disso, entre todas as suas matérias e provas...

- Eu dou um jeito. – respondi, ignorando o tom de incredulidade que ele e Rony sempre usavam ao falar do meu retorno a Hogwarts.

- Eu acredito. Você sempre dá.  – então ele estendeu o volume na minha direção e entregou-o em minhas mãos abertas.

...

O ressonar das garotas adormecidas era o único som que preenchia o dormitório. Era incrivelmente melancólico estar de volta ao castelo sem Harry e Rony. Se eu estivesse um pouco menos determinada, não teria retornado. Mas terminar meus estudos na escola e depois seguir com um curso profissionalizante de Direito Bruxo era o mais perto que eu chegara de dar continuidade aos meus planos de antes da guerra. Então eu estava ali e ficaria ali por mais um ano. Por mais longo que fosse o ano.

Deslizei meus dedos pelo couro curtido da capa do volume que Harry me confiara apenas alguns dias antes. O tempo tornara o couro macio e desgastara sua cor marrom. Era meu tipo preferido de livro. Abri-o cuidadosamente e me deparei mais uma vez com a primeira página.

Para e por Lílian Evans, sempre.

Fiquei mirando a última palavra por alguns segundos. Sempre achara que escrever era a melhor forma de eternizar alguma coisa. Pelo visto, eu não era a única. Mas aquele livro em particular não seria eternizado, seria? Voltei a acariciar a capa macia. Não, em menos de um mês ele estaria completamente carbonizado. Suspirei antes de virar mais uma página.

Não havia nada.

Virei mais uma. Nada.

Mais uma página, mais dez. Nada.

Aquilo não podia estar certo. Um livro em branco não fazia sentido. Talvez... Peguei minha varinha ao lado da cama, apontando-a para as páginas intocadas. Talvez aquele livro fosse como o Mapa do Maroto. Talvez alguma palavra chave...? Algum feitiço?

Murmurei algumas coisas, sem sucesso. Tentei alguns feitiços de quebra de cadeados, revelação de segredos, amostra de coisas invisíveis. Nada adiantou. Bufei antes me jogar para frente, a testa apoiada no livro aberto.

- Droga. – praguejei baixinho para não acordar as outras garotas. Então estreitei os olhos quando a sombra do meu cabelo contra a página fez algo se delinear.

Voltei a me sentar, dessa vez trazendo o livro para bem perto dos olhos. Eu me enganara. As páginas não estavam em branco. Ou melhor, estavam em branco. E eu fiquei procurando pela tinta preta que rabiscara a frase na primeira página. Não havia tinta. Nas páginas seguintes, todas as palavras pareciam ter sido escritas por uma pena seca. Ela apenas arranhara as páginas, deixando cada palavra marcada sobre o papel. Como leves cicatrizes que, por muito pouco, podiam passar despercebidas.

Como eu conseguiria ler aquilo? Rabiscar a página inteira com grafite para enxergar as ranhuras me parecia um verdadeiro vandalismo. Tinha que haver outro jeito. Suspirei, voltando os olhos para o topo da primeira página. Distraidamente, toquei, com a ponta dos dedos, o que imaginei serem as primeiras palavras – era realmente difícil enxergá-las – e, de repente, as letras pareciam claras diante dos meus olhos. Afastei a mão, subitamente, e as palavras sumiram mais uma vez.

Arqueei uma sobrancelha, mirando o livro seriamente, como se pudesse interrogá-lo. Sim, é claro que o livro poderia me dar todas as respostas, mas, para isso, eu precisaria lê-lo. Ou, naquele caso, tocá-lo, revirá-lo e descobri-lo. Voltei as pontas dos dedos para o início da página. Lentamente, deslizei o dedo pela primeira linha. Não, as letras não ganharam cor, nem contornos, nem sombras, nem nada. Mas, conforme eu passava os dedos pelas ranhuras das palavras, elas se tornavam claras em minha mente e eu podia lê-las. Como um cego tateando um livro em braile, embora fosse mais complexo do que isso. Eu não estava lendo as palavras através do tato, não, não era isso. Mas o fato de tocá-las tornava-nas legíveis. Eu... aquilo era possível?

Fechei os olhos e continuei tateando o livro.

Amor não é amor se quando encontra obstáculos se altera, ou se vacila ao mínimo temor.

Shakespeare

Reabri os olhos, assustada. Fechei o livro e o joguei sobre minha mesa de cabeceira. Estava tarde, eu estava cansada. Ou era isso ou aquele livro não deveria ser, de nenhuma maneira, lido.

Deveria ser sentido.

...

A sala de aula estava vazia. Nem o professor Binns tinha aparecido ainda para dar início à lição do dia. Bom, eu estava mesmo adiantada. Tinha encurtado meu horário de almoço para fazer um pequeno intervalo. Cogitei ir até a biblioteca, depois me ocorreu que nenhum lugar do castelo estaria tão deserto quando a própria sala de aula. Pelo menos pelos próximos quinze minutos.

Capturei o livro de Snape em minha mochila, decidida a continuar a leitura, ou o que quer que fosse aquilo. Abri o volume e me deparei novamente com aquela primeira página branca, embora não em branco. Como na noite anterior, coloquei os dedos sobre a primeira linha. As palavras, embora continuassem descoloridas, transpareceram em meu cérebro com facilidade.

Amor não é amor se quando encontra obstáculos se altera, ou se vacila ao mínimo temor.

Shakespeare

Depois disso, não havia nada escrito por duas linhas. Então, mais abaixo, li/senti: Dezembro, 1974. Em seguida, mais uma linha em branco. E...

O susto foi tão grande que me fez pular na cadeira e olhar em volta, por cima dos ombros. Mas não havia mais nada de estranho, é claro. Não havia mais nada de estranho porque, ao levar o susto, eu deixara de tocar o livro. Voltei a mirar a página, hesitante. Mas o que...? Bem lentamente, estiquei a mão e toquei a frase mais uma vez.

Não foi como das outras vezes. As palavras não simplesmente apareceram diante de mim. Bom, elas apareceram. Mas foi mais que isso. Muito mais que isso.

“Era inverno, a neve cobrira todo o chão do parque e fizera um pequeno poço de lama abaixo do balanço...”

Eu podia ler o que estava escrito, mas, ao mesmo tempo, no momento em que minha mão encostava naquelas palavras, a sala de aula ao meu redor desaparecia. O que passava a existir era um pequeno parque, típico dos subúrbios trouxas, com o chão coberto de neve. Repeti o gesto de tirar e recolocar a mão da frase mais algumas vezes. O efeito se repetia. Eu estava em sala, o livro aberto sobre a mesa, e, logo depois, estava de pé naquele parquinho infantil.

De certa maneira, era como ler um livro extremamente envolvente. Daqueles que te arrastam pra dentro da história e você se sente um dos personagens, partilhando cada cheiro, cor e som descritos. Mas também era como mergulhar em uma penseira – eu imaginava, pelo que havia lido a respeito – e estar vivenciando de fora as memórias de alguém, sem fazer parte da cena. A diferença era que eu não havia sido sugada para dentro de nada. Continuava consciente do meu corpo sentado na cadeira da sala de aula. Embora também estivesse consciente do chão úmido do parque e do vento frio que soprava. Percepções o bastante para me deixar tonta.

Quis sair correndo para a biblioteca e revirar aquelas estantes até descobrir como aquilo era possível. Tive que reunir toda minha objetividade para me lembrar de que aquilo não era o principal. O principal era o conteúdo. E havia páginas inteiras na minha frente, como um filme em um projetor engatilhado, pronto para rodar. Voltei ao parque.

Era um inverno particularmente rigoroso. Parecia ter nevado a noite inteira, uma vez que o chão estava coberto por uma geada de uns quinze centímetros. As árvores estavam nuas e fantasmagóricas e o sol não dera o ar da graça naquela tarde. Dois velhos balanços pendiam alguns metros à frente. Um deles rangia dolorosamente enquanto uma garota se balançava. Eu havia visto algumas fotos dela, embora naquela cena ela estivesse bem mais jovem. De qualquer maneira, não era difícil presumir quem era. E, mesmo que fosse, um detalhe a fazia imediatamente reconhecível. Os olhos. Eram os olhos de Harry.

Mesmo à distância, o formato e a cor peculiar daqueles olhos entregavam o parentesco. Mas as semelhanças – físicas, pelo menos – acabavam por aí. Lily Potter – certamente ainda Evans naquela idade – usava uma touca verde que achatava seus cabelos ruivos até a nuca, de onde esvoaçavam desordenadamente enquanto ela ia e vinha no balanço. Suas pernas se esticavam à frente e se encolhiam atrás, dando impulso ao balançar. As correntes continuaram protestando dolorosamente aos ouvidos, quando o balanço foi ganhando mais altura.

Quando chegou ao ponto máximo, ela se lançou para fora do balanço, os braços abertos, os olhos fechados. Minha reação foi um reflexo automático. Procurei pela varinha com a mão livre e a estiquei na direção de Lily, tentando evitar que ela caísse naquele chão cheio de neve e, inevitavelmente, escorregasse feio. Foi besteira, é claro. O feitiço morreu na ponta da minha língua, sabendo muito bem que não poderia interferir na cena. E Lily não caiu no chão, tampouco. Ela flutuou no ar por um momento e então desceu lentamente, firmando os pés no solo com segurança. Só então reabriu os olhos e sorriu.

- Eu sei que devia parar com isso, mas ainda tem a mesma graça de quando eu tinha nove anos. – ela disse, me fazendo olhar ao redor mais uma vez para procurar o destinatário do diálogo. Não havia ninguém. Lily era a única personagem daquela cena.

Ela caminhou mais uma vez para o balanço, sem se importar que seus pés afundassem alguns centímetros na terra molhada e remexida. Fiquei observando enquanto ela refazia todo o ritual de pegar velocidade e deixar que o balanço atingisse o ponto mais alto do círculo antes de se atirar no ar de braços abertos e olhos fechados. Mais uma vez, ela levitou por alguns momentos antes de voltar lentamente ao chão.

- Você acha que posso receber uma carta do Ministério por isso? – questionou e eu franzi a sobrancelha.

Com quem ela estava conversando? Certamente não era comigo. Tinha certeza de que minha presença ali era completamente despercebida para ela. Eu era uma espectadora, apenas isso.

- Quer dizer, sei que não deveríamos usar magia fora da escola... – Lily comentou, sentando-se mais uma vez no balanço. Apesar do comentário, sua voz não parecia preocupada de modo algum – Mas não é como se eu estivesse fazendo um feitiço de levitação nem nada do tipo, não é?

Bom, na teoria, ela podia sim receber uma carta do Ministério por causa daquilo. Estava fazendo uso consciente de magia fora dos limites de Hogwarts e isso era proibido. Harry recebera uma carta por inflar a própria tia e aquilo nem fora intencional.

Mas, ao mesmo tempo, eu duvidava muito que ela sofresse sérias consequências por causa daquele pequeno abuso. A garota – era estranho pensar na mãe de Harry nesses termos, mas naquela lembrança ela não passava mesmo de uma garota – não estava realizando nenhum feitiço. Não, aquele salto para o além e o fato dela não cair eram simplesmente a manifestação natural da magia dela. Magia da forma mais pura, muito diferente da contida em um vingardium leviosa. Quando eu tinha nove anos costumava fazer a luz do meu quarto ficar acesa por quase uma hora inteira depois do horário de dormir. Não importava quantas vezes meus pais apertassem o interruptor. Eu nunca havia dito nada, mas sabia que a luz ficava lá porque eu queria. Podia sentir isso em mim. O poder de fazer aquilo acontecer.

- Eu gosto de sentir a magia. – Lily disse, parecendo acompanhar meu fluxo de pensamentos – De senti-la como eu sempre senti, desde que era criança. Criança... – ela balançou a cabeça e riu – Todo mundo fica dizendo que sente saudade daqueles tempos, que tudo era mais fácil. Eu não.

Ela parou o balanço e virou o rosto para cima, os olhos abertos fixos no céu nublado. O nariz estava vermelho do tempo frio e as sardas pálidas sobre seu nariz.

- Eu nasci mágica. Você entende, não entende? O que é saber que nasceu assim? Com magia no sangue. Que nasceu pra isso, pra esse mundo, que não se encaixaria em nenhum outro?

- Entendo. – murmurei, embora ela obviamente não pudesse me ouvir.

- E, se vai mesmo haver uma guerra, como todo mundo diz que vai... Então eu não queria estar em nenhum outro tempo. Porque se alguém vai dizer que meu sangue é menos mágico, que eu tenho um sangue ruim, então que diga na minha frente.

Lily tomou impulso no balanço novamente e se lançou no ar uma última vez. Quando seus pés tocaram o chão, ela respirou fundo e pareceu olhar diretamente nos meus olhos ao completar:

- E eu vou mostrar que eles estão todos errados.

- Hermione? – levei um susto ao sentir o toque em meu ombro e minha mão empurrou o livro para o chão em um espasmo.

O parque sumiu, Lily sumiu, e a sala de aula estava de volta, dessa vez com alguns alunos tomando seus assentos, enquanto o professor Binns fazia algumas anotações no quadro. Eu não percebera a entrada de ninguém.

- Desculpe, eu não queria te assustar. – Hannah Abbott disse, pegando o livro que eu derrubara e o estendendo para mim. Peguei-o e o apertei junto ao peito de forma protecionista. – Eu te chamei algumas vezes, mas você estava lendo tão concentrada...

- Está tudo bem. – balancei a cabeça, finalmente me assentando de novo na realidade.

- Se importa se eu me sentar aqui?

- Não, claro que não.

Hannah sorriu e eu fiquei olhando enquanto ela retirava seu material da mochila. Não era minha intenção ficar encarando, mas meus olhos foram imediatamente atraídos para sua mão esquerda. Faltavam dois dedos. Dali meus olhos pularam automaticamente para a aliança que Hannah trazia pendurada no pescoço, como um pingente. Engoli em seco, com uma pontada de amargura no peito. Tanto aquela mão quanto a aliança eram duas marcas da mesma guerra. As feridas e os medos. A pressa. Ela e Neville haviam se casado no verão. Como se o fim da guerra não tivesse garantido um futuro, mas apenas assegurado que nada podia garantir um futuro.

Ron também falara em casamento. E eu empurrei o assunto para fora da nossa pauta, delicadamente. Não era falta de amor. Não era falta de certeza. Sabia muito bem que ficaríamos juntos para sempre. Mas não queria me casar por medo, por pressa, por essa necessidade quase física que todo mundo parecia sentir de dar um jeito de esquecer os horrores e ser feliz. Não. A felicidade viria, o futuro, uma família, tudo em seu tempo. Porque teríamos tempo.

Diferente dela. – pensei, ao guardar o livro cuidadosamente dentro da mochila.

- Hermione? – Hannah voltou a me chamar e eu pisquei, desviando rapidamente os olhos de sua mão mutilada.

- Desculpe, eu não queria...

- Está tudo bem. – ela balançou a cabeça – Todos nós ficamos com algumas cicatrizes.

Já estava pensando com uma culpa desmedida no meu corpo inacreditavelmente, milagrosamente intacto, quando ela completou:

- Visíveis ou não.

...

Um fogo baixo crepitava na lareira da sala comunal. A calma da madrugada era reconfortante, embora acentuasse a ausência dos garotos. O livro de Snape estava aberto sobre o meu colo e a luz das chamas fazia sombras em suas páginas brancas. Toquei a folha. A aconchegante sala comunal desapareceu.

Dessa vez foi mais fácil reconhecer o cenário ao meu redor. Havia caminhado por ele centenas de vezes. A grama debaixo dos meus pés pertencia aos jardins de Hogwarts, a luz da cabana de Hagrid brilhava ao longe. O lago refletia a luz de uma lua crescente quase inteira no céu. E apenas alguns passos adiante, uma garota ruiva andava apressada e sorrateiramente.

- Vem logo! – ela apressou, olhando por cima dos ombros. Mais uma vez olhei ao redor, procurando por mais alguém, qualquer pessoa a quem ela pudesse estar se dirigindo. Não havia ninguém.

Ela continuou andando e sequer precisei me mover para acompanhá-la. O cenário a seguia. Eu estava onde ela estava. E logo nós duas estávamos à beira do lago negro. Era noite e, pelo breu do céu, eu podia apostar que já passara em muito do horário do toque de recolher. A postura furtiva de Lily também denunciava um ato potencialmente fora das regras do castelo. O que ela estava querendo?

- Não vou voltar atrás, não importa o que você diga. – ela decretou, estreitando aqueles olhos verdes com determinação. Então, para minha total surpresa, começou a tirar a roupa.

- Mas o que...?! – murmurei, aturdida. Mas Lily não foi muito longe, livrando-se apenas da capa e do cardigã para revelar um short preto justo e uma t-shirt azul.

Meu primeiro impulso foi avançar e impedi-la quando ela colocou os pés na água, mas é claro que isso não era possível. O que é que ela estava fazendo? Por que ela estava fazendo? Era noite, o ar estava frio e úmido. O céu estava escuro e nublado, com raios espaçados ao longe que prenunciavam chuva. 

- Pode ser a nossa última chance! – ela disse em tom abafado, antes de se jogar na água de braços abertos, sem hesitar.

Mirei o lago por um momento, chocada. Então ela ressurgiu na superfície, os cabelos ruivos escorrendo ao lado do rosto e um sorriso inegavelmente satisfeito curvando seus lábios.

- Não gosto de perder oportunidades! – Lily murmurou na minha direção e eu balancei a cabeça, sem saber o que me deixava mais frustrada; a insensatez dela, ou o fato de eu não poder fazer nada a respeito. – Agora eu já não morri sem nadar no lago negro.

Revirei os olhos para aquele argumento. Lily, é claro, não viu o gesto, e não sei se teria ligado se tivesse visto. Ela apenas voltou a afundar na água e bateu os pés para longe. Alguns quilômetros além, a Lula Gigante bateu um de seus tentáculos, criando uma pequena onda, mas não fez nada para expulsar Lily dali.

- Sente esse cheiro! – ela quase gritou, sem se importar em ser flagrada – Sabe o que é? Liberdade! Você devia experimentar. O que foi? Você pode deixar o manual de bom comportamento aí na grama, ele não vai molhar, e você o guarda de novo quando voltamos para dentro. – provocou, com uma risada sonora. Era estranho que ela parecesse estar falando tão diretamente comigo.

Então mais um raio cortou o céu e a chuva finalmente caiu. Gotas grossas e firmes logo formaram grandes poças na grama do jardim. Deixaram o lago borbulhando como um caldeirão. Isso só pareceu aumentar a diversão de Lily.

- Está caindo uma tempestade! – disse, entredentes, só Merlim sabe por que e pra quem. Eu podia sentir as gotas contra a minha pele, mas duvidava muito que estivesse me molhando. A tempestade, como tudo ao redor, não era real.

- Entra logo na água! – Lily mandou, bufando – Você ainda vai me agradecer por isso.

Meu dedo escapou pela margem do livro quando a página chegou ao fim. Voltei à sala comunal, seca, aquecida, sentada em frente à lareira. A ponta do dedo que estivera tocando o livro formigava insistentemente enquanto eu encarava as chamas fracas. Revirei os olhos para a cena que havia acabado de assistir. Todo mundo sempre pareceu acreditar que o desamor de Harry pelas regras havia sido herdado do pai. Eu já não tinha tanta certeza.

Não queria ser hipócrita – eu mesma já havia quebrado os regulamentos mais vezes do que podia contar. Mas sempre por um bom motivo. Por um bom motivo. Suspirei ao pensar nisso. Não era verdade. Sempre tinha sido por péssimos motivos. Por motivos horríveis. Motivos que envolviam filhotes de dragão, pedras filosofais e beijos de dementadores. Eu, Rony e Harry tínhamos arriscado nossas matrículas em Hogwarts e nossos pescoços dezenas de vezes. E nenhuma dessas vezes merecia ser lembrada. Nenhuma merecia ser escrita em um diário. Nenhum bom motivo.

E ali estava eu, no meu último ano, depois de ter vivido mais coisas e conhecido mais lugares naquele castelo do que centenas, milhares de outros alunos. Ali estava eu que nunca havia simplesmente nadado no lago negro – porque servir de refém dos sereianos no Torneiro Tribruxo dificilmente contava.

E eu não sei e provavelmente não conseguiria explicar o impulso que me fez subir correndo as escadas para o dormitório. Abri a porta sem me importar com o rangido e joguei o diário em cima da minha cama antes de puxar o dossel da de Ginny e sacudi-la pelo ombro.

- Ginny, acorda! – chamei, fazendo-a abrir os olhos em uma pequena fresta – Acorda!

- Mione... o que houve?

- Levanta, nós vamos sair.

- Hem?

- O que está acontecendo? – Parvati, na cama ao lado, se ergueu nos lençóis e nos encarou preocupadamente.

- Nós vamos sair, então acordem vocês duas! – insisti, enquanto rabiscava um bilhete e entregava para Lucile, minha nova coruja. – Entregue à Luna, por favor. – pedi, soltando-a pela janela.

- Mione, você está bem? – Ginny havia se levantado e agora esticava a mão na minha direção, como se quisesse conferir minha temperatura.

- Eu estou bem. – balancei a cabeça – Eu só... Tem uma coisa que eu quero fazer.

- Agora? São duas horas da manhã, Hermione. – Parvati sinalou.

- Sim, agora.

- E o que seria?

- Nadar no lago negro.

- O que?

Suspirei, desistindo da discussão e rumando porta afora. Foi bem mais eficiente, visto que Ginny e Parvati me seguiram.

- Hermione! – Ginny me chamou, a voz abafada me seguindo pelos corredores vazios do castelo – Por que, diabos, nós vamos fazer isso?

- Porque pode ser a nossa última chance!

- Nós podemos ser flagradas e...

- Levaremos uma detenção, grande coisa. – revirei os olhos com desdém. – Já passamos por coisas piores.

- Eu não estou te reconhecendo. – ouvi a voz de Patil murmurar e meneei a cabeça antes de responder:

- Nem eu.

- Hei! Onde nós estamos indo? – Luna perguntou assim que se juntou a nós, na entrada do salão principal. Sabia que ela não pediria explicações.

- Nadar no lago negro.

- Oh! Devia ter trazido meus óculos de sol.

- É madrugada, Luna! – Ginny pontuou e a loira deu de ombros.

Empurramos todas juntas a pesada porta de madeira e despontamos no jardim. A relutância das garotas cedera espaço à agitação. Era uma noite clara e abafada. Hesitei um pouco a uns dois metros da margem do lago. Então Luna gritou:

- Quem chegar por último vai casar com a Lula Gigante!

E todas nós caímos na gargalhada e saímos correndo. Pulamos na água sem ligar para o estardalhaço, afundando uma à outra e atirando os sapatos para a grama, encharcados. Só algum tempo depois a euforia acalmou e ficamos em silêncio, ouvindo os ruídos da noite do lado de fora do castelo. Um pouco adiante, Ginny boiava na água escura e seu cabelo ruivo ondulava sobre a superfície. Sorri, lembrando-me do cabelo molhado de Lily escorrendo por seu rosto confiante. Ergui a cabeça e mirei o céu pontilhado de estrelas.

- Obrigada.

...

Descolei a mão da página, fazendo o mundo real se revelar diante dos meus olhos como a cortina de um teatro que se abria. O latejar na ponta dos meus dedos estava mais forte agora e eu bocejei, mirando o relógio ao lado da cama. Era madrugada novamente, eu teria que acordar dentro de poucas horas. Meus olhos pesavam, embaçados pelo cansaço e pela escuridão do dormitório. Eu tinha que parar de ler até tão tarde... Mas... Mirei o diário por um momento. Aquelas lembranças me atraíam de forma quase inescapável.

- Está tarde, Hermione. – murmurei para mim mesma.

Mesmo assim, virei mais uma página e mirei a folha. Branca. Mas não vazia. Naquela página, na minha frente, havia algum lugar, algum tempo, algum momento capturado no espaço. Algum momento de Lily. Aquela história sem cronologia, sem começou ou meio, de fim indefinidamente definitivo, me amarrava todas as noites como um ser cheio de tentáculos. Eu estava cansada. Era madrugada.

- É a última. – me garanti. E toquei a página.

- É claro que eu adoro ler livros. – Lily estava dizendo.

O cenário que a emoldurava, daquela vez, era meu conhecido; a sala de aula de História da Magia. Ainda estava vazia, as cadeiras desocupadas, inclusive a do professor. Era por ali que ela estava caminhando, perto do quadro negro. Sobre a mesa do Professor Binns, dezenas de livros se empilhavam, e Lily deslizava as mãos por suas capas empoeiradas, sonhadoramente. Desceu uma das mãos até um pequeno estojo de madeira, ao lado dos grossos volumes, e capturou um pedaço de giz branco.

- Adoro cada página que já passei, mas agora eu quero outra coisa. – ela disse, girando o giz entre os dedos. – Quero escrevê-los. Sobre o que eu vou escrever? – Lily riu como se aquela fosse uma pergunta ingênua. Ela se voltou para o quadro negro atrás de si e começou a rabiscar sua superfície. – Vou escrever sobre a cor do sol! Assim que eu conseguir olhar pra ele e descobrir de que cor é, exatamente. Vou escrever sobre a cor dos seus olhos.

- Dos meus? – perguntei, tolamente. Lily se esticou na ponta dos pés para acrescentar sombras e detalhes ao sol que havia desenhado no canto superior do quadro e às palavras que o rodeavam, como raios lançados ao longe.

- Vou escrever sobre gatos, dias de chuva, esse medo que a gente tem do fim de tudo, mais do que do começo. Sobre como é raro se encontrar, mas que se desencontrar é divertido. – ela continuou, ainda de costas, suas mãos voando pelo quadro freneticamente, deixando rastros de giz e ecos das suas palavras. – Vou me escrever pra não me esquecer, como sou hoje e nunca vou ser amanhã. Vou escrever sobre tudo que eu sentir e inventar o que eu não sentir, assim sempre vai parecer melhor do que a vida real. Vou escrever só verdades, e até quando eu mentir será verdade porque esse é o poder de uma fantasia, não é?

Ela já preenchera mais da metade do quadro negro com palavras e desenhos, se esticando e abaixando para completar cada espaço em branco. Sua voz ecoava pela sala vazia, contínua e firme, mesmo quando ela ofegava. Sua empolgação era uma espécie de transe envolvente, e eu me vi mergulhada em cada palavra e pendurada a cada frase que ela tão inconsequentemente jogava no ar.

- Vou escrever sobre todas as pessoas que eu não sou e experimentar ser cada uma delas, página por página. Vou ser como eu quiser e como alguém me interpretar. Vou escrever sobre como é ter seis anos e descobrir que “amor” se fala com quatro letras, mas que, com 4 mil letras se fala amor mais bonito. Com 4 mil palavras se fala amor infinito. E se eu escrever 4 mil páginas...

Lily rabiscou o último pedaço do quadro e eu olhei, fascinada, para o mosaico de palavras, pontos, setas e desenhos que ela havia feito. Um caleidoscópio de suas ideias.

- Se eu escrever 4 mil páginas... – ela repetiu, virando-se novamente de frente para onde eu estava – Vou estar falando amor de verdade.

Lily, seus desenhos, suas palavras, o latejar nos dedos – tudo isso ficou em mim muito tempo depois do livro escorregar para fora do meu colo. Minhas pálpebras cederam ao sono um segundo depois de eu me decidir a descobrir como aquilo era possível.

...

- Ginny está te procurando. – Parvati disse, puxando a cadeira ao lado da minha, na biblioteca.

- Ah, ok, obrigada. – respondi, sem muita atenção.

- Você terminou o exercício de Trato das Criaturas Mágicas? Eu comecei a pesquisar sobre os unicórnios, mas...

- Hm, eu tenho que ir. Até mais, Patil. – me despedi, apressadamente, fechando o livro que tinha nas mãos e carregando-o para fora da biblioteca. Não tinha tempo para conversar.

A verdade era que, por mais que eu tentasse me disciplinar, o resto da semana estava sendo uma maratona. Ainda me sentia impelida para aquele diário, sugada para suas lembranças íntimas e agridoces, até tarde da noite. Ficava pulando de uma cena à outra. Gastando uma hora inteira apenas em observar uma Lily concentrada escrevendo uma tese sobre literatura bruxa, rodeada por livros imensos. Consegui ler um pouco da tese e não consegui conter um pouco de inveja. Tinha sido apenas um rascunho – e tinha sido brilhante. Gastando bem mais de uma hora vendo a mesma Lily perder toda a compostura para chorar copiosamente a morte do filhote de pelúcio que ela vinha cuidando na aula de Trato das Criaturas Mágicas. Pelas palavras que eu entendera, entre seus soluços, ele nascera com má formação cardíaca e não havia nada que ela pudesse fazer – o que não a impediu de se martirizar por horas.

Isso tudo se uniu à necessidade de começar a estudar para os N.I.E.M.s e à pesquisa que eu iniciara para destrinchar a magia por trás daquele diário. O resultado era fazer as refeições em 20 minutos, dormir menos de 4 horas por noite e recusar categoricamente qualquer convite para passear em Hogsmeade, pegar um pouco de sol ou visitar Hagrid em algum tempo livre entre as aulas. Meu tempo e minha energia estavam contados e se esgotando rapidamente.

A pesquisa já tinha rendido algumas respostas. Ou, pelo menos, algumas teorias. O fato era que lembranças eram materiais muito voláteis. Podiam ser muito difíceis de recolher, ou podiam fluir sem esforço ou sem controle, dependendo de quão vivas estivessem na memória de alguém. Snape parecia tê-las mantido muito vívidas, tanto que conseguira usar suas lembranças como teria usado tinta. Um feitiço simples em uma pena comum, eu acredito, e ele havia transcrito para o papel toda sua narrativa usando suas lembranças. Por isso eu podia ler e enxergar cada uma daquelas cenas. Também era por isso que Lily parecia se dirigir a mim. Snape havia escrito em primeira pessoa. Naquelas lembranças, eu estava sempre olhando do ponto de vista dele. Era bem mais restrito e pessoal do que analisar uma lembrança dentro de uma penseira. Muito mais direcionado. Era sobre ela.

- Ginny está te procurando! – Luna anunciou, quando nos cruzamos em um corredor.

- Obrigada, Luna. – respondi, sem diminuir o passo. Eu sabia o que Ginny queria, ela vinha insistindo sobre o mesmo assunto há dias. Queria escapar para Hogsmeade naquela noite e que eu a ajudasse a aparatar n’A Toca, para visitarmos Rony e Harry. A ideia seria ótima. Se eu tivesse tempo. Ou energia.

O que eu precisava era de um lugar silencioso para estudar. Ok, para ler o diário. Eu não o tocara durante o dia inteiro. Ainda assim, a ponta dos meus dedos continuavam a formigar de leve. Já estava começando a entender o motivo daquilo também...

Ajeitei melhor a mochila no ombro e ergui a cabeça. Visualizei o perfil de Ginny, no fim do corredor, antes que ela me visse também. Praguejei baixo, pensando por onde escapar. Não daria tempo de retornar antes que ela me flagrasse. Olhei ao redor e tentei a primeira porta que encontrei. Um armário de vassouras. Perfeito. Fechei a porta e larguei a mochila no chão, antes de me sentar, de joelhos encolhidos, no fundo úmido do armário. Pronto, aquele era um lugar silencioso.

- Lumus. – sussurrei e a ponta da minha varinha se acendeu. Peguei o diário e o abri em cima dos joelhos.

Demorei a me ambientar naquela lembrança. Era diferente de todas as outras. Para começar, pela primeira vez, Lily não era a única em cena. Pelo contrário. Havia muita gente cruzando o caminho diante dos meus olhos. Levei um tempo para reconhecer a arquitetura do castelo por trás de toda aquela decoração e somente quando enxerguei o professor Slughorn, conversando com algum aluno mais adiante, foi que entendi completamente do que se tratava. O antigo Clube do Slug.

Pelo visto, era uma festa de Halloween. Uma festa a fantasia. E, embora houvesse muita gente disputando atenção naquela sala, Lily ainda era o foco onipresente da lembrança. E, daquela vez, mais do que todas, eu entendi o motivo.

Reconheci de imediato a fantasia que ela estava usando. O vestido amarelo e azul de mangas bufantes, a capa e o laço vermelho no cabelo. A maçã reluzente segura firmemente em uma das mãos. Mas podia apostar que a maioria dos outros convidados não fazia ideia do que se tratava. O que, é claro, não impedia que cada um deles virasse a cabeça para olhá-la quando ela passava. Era uma visão impressionante.

Lily estava diferente, muito diferente, da garota das outras lembranças. Em algumas, de fato, não parecia passar de uma menina. Não ali. Aquela era uma Lily mais velha, mais mulher, em cima de seus saltos altos, com o cabelo cacheando até o meio das costas. A maquiagem escura ao redor dos olhos lhe dava uma seriedade confiante, uma sobriedade inegável. E, para completar, usava um batom vermelho sangue que fazia com que todos mantivessem os olhos cravados em seus lábios, estivessem eles se mexendo ou não.

Não estou exagerando se disser que, em poucos segundos, formou-se uma rodinha ao redor dela, de pessoas atraídas como mariposas para a luz. A cena, entretanto, não se aproximou. Eu não tinha como me mover dentro da lembrança. Estava cravada no ponto onde, provavelmente, Snape tinha estado. E, naquela noite, ele não havia chegado perto de Lily. Fiquei, como ele certamente tinha ficado, observando-a de longe. 

Vez ou outra, um sonserino cruzava o caminho, parava por perto, fazia algum comentário que eu não podia ouvir. Não importava a presença de todas as outras pessoas. Aquela lembrança continuava a ser uma lembrança sobre Lily e o foco não se desviava dela por um momento sequer. Meus olhos permaneceram cravados naquela menina-mulher que deslizava pelo salão como a dona da festa, tão imponente em sua autoconfiança, tão inexplicavelmente atraente. Não que eu não tivesse reparado antes. Quer dizer, sim, ela era uma garota bonita. Mas eu nunca havia reparado antes. Não daquele jeito.

Eu estava longe demais, na maior parte do tempo, para ouvi-la falar. Eu tinha tido amostras de Lily, de sua imprudência, de sua personalidade forte, de sua delicadeza nata. Eu assistira a lembranças de todo tipo, mas aquela era de um tipo diferente... Era visual, intrinsecamente visual. Ricamente visual.

Eu posso lidar com isso.

Certo. Lily era ruiva. Daquela cor flamejante que eu achei que só os Weasley tinham. Ela tinha sardas no rosto todo, mas usava maquiagem para disfarçá-las. Apareciam apenas bem clarinhas sobre seu nariz empinado. Tinha aqueles olhos verdes – os olhos de Harry. Os mesmos cílios longos, embora os dela fossem tão claros que eram quase transparentes. Ela era alta e magra, mas não magrela como eu sempre tinha sido. Era o tipo de magra que você deseja ser desde que se entende por garota, com todas as curvas nos lugares certos. Ela tinha pés pequenos que a equilibravam perfeitamente em cima dos saltos. E tinha aquela boca carmesim que podia falar qualquer coisa, sorrir para quem fosse, pronunciar os feitiços mais complexos, sem maiores dificuldades – a boca de uma veela. De uma princesa. Era isso que eu via.

Nada disso explicava o que eu estava sentindo. Racionalizar a imagem dela não explicava a compulsão que me fazia tentar mover os pés em sua direção, mesmo sabendo que não podia me aproximar. Acho até mesmo que aprendi leitura labial, bebendo das palavras que ela dizia e eu não podia ouvir. Ou talvez – e isso era absolutamente estranho de admitir – eu simplesmente não conseguisse parar de olhar para aquela boca vermelha.

Muito tempo pareceu se passar até que as circunstâncias da lembrança me permitissem chegar mais perto dela. Não achei que fosse coincidência, quando reparei na rodinha de sonserinos próxima de onde eu estava – de onde Snape tinha estado. Reconheci Mulcilber, Macnair e Goyle. Uma rodinha de futuros Comensais.

Lily estava apenas a dois passos de distância, entre seus amigos grifinórios. Fácil reconhecer a fonte de 80% do DNA de Harry – James Potter estava parado ao lado de Lily, os óculos tortos sobre o nariz. Por perto, Sirius, Remus, Alice e Frank Longbotton. Uma rodinha de futuros aurores.

- Qual é sua fantasia afinal, Lily? – Remus perguntou, correndo seus olhos castanhos pela roupa extravagante dela.

- Estou vestida como Branca de Neve. Uma princesa de contos de fadas trouxas. – ela esclareceu, alto o bastante para que eu ouvisse de onde estava. Pelo esgar no rosto dos sonserinos ao redor, eu não era a única prestando atenção.

- E o que significa essa maçã? – Sirius insistiu, arqueando uma sobrancelha.

- Hm... significa tentação. Perigo. – ela curvou seus lábios rubros em um sorriso quase indecente – No conto, uma bruxa má oferece a maçã envenenada à Branca de Neve.

- Por quê? – James questionou.

- Por inveja. – ela respondeu, erguendo a maçã e olhando de lado para James – Mas eu não tenho medo da bruxa má. Sabe por quê?

- Por quê? – ele voltou a questionar, completamente, obviamente seduzido por ela.

- Porque eu sou uma bruxa também.

E mordeu a maçã.

...

Eu andava tão atordoada que levei algumas visitas para perceber que aquele armário de vassouras era, na verdade, a Sala Precisa. Depois disso, tentei imaginar um lugar mais confortável, mais iluminado, talvez com algumas poltronas. Não adiantou. Bastava eu aparecer naquele corredor, o diário nas mãos, e a porta do armário de vassouras se materializava na parede. Desisti. Talvez a Sala Precisa entendesse melhor das minhas necessidades do que eu.

Estava tão cansada, na maior parte do tempo, que às vezes passava horas no armário – aos sábados e domingos, geralmente – sem realmente ler coisa alguma. Dava um descanso aos meus dedos latejantes, tentava recuperar um pouco de energia. Energia. Era isso que fazia minha mão formigar, era isso que estava se esvaindo de mim a cada nova lembrança. Energia. Eu tinha, finalmente, chegado àquela conclusão.

Uma penseira, por exemplo, era um receptáculo mágico que se encarregava de viabilizar a visualização da lembrança. Aquele livro não. Nele, eu viabilizava. Era minha energia que fazia tudo aquilo ser possível. Que fazia cada lembrança ganhar vida. Era cansativo. Pra leitora ávida que eu tinha me tornado, era quase extenuante. Mas também era envolvente.

Sentei no fundo do armário e acariciei o livro fechado por alguns momentos. Eu tinha enviado uma carta a Harry, pela manhã, com um resumo do que havia descoberto até então – um resumo propositalmente impessoal. Mas sugeri que talvez ele quisesse ver uma cena ou outra, afinal, era a mãe dele. E Lily era... Ela devia ser... Imperdível.

A impressão que eu tinha era de que as duas últimas semanas haviam sido de convivência intensa. Era como se, de alguma maneira, eu a conhecesse. Lily era inteligente, inteligente daquela maneira intelectual, que retém informação de todo tipo, de todo lugar. Nunca hesitava ao expressar suas opiniões. Era segura de si, 100% segura de si. Mas nunca esnobe, de nenhuma maneira. Ela era firme, sem medo de dizer as verdades mais duras, sem medo de ser ferida. E também era doce. Com uma sensibilidade de menina que não cresceu completamente e ainda liga para as coisas pequenas da vida.

Eu... Eu tinha aprendido os detalhes dela. Absorvido cada um deles quase sem me dar conta. Segurava aquele diário quase como se fosse uma obra minha. Porque talvez pudesse ser uma obra minha. Talvez eu sentisse a mesma necessidade de eternizar alguém como ela. Porque... ela era...

Não. Não era nada. Eu só estava cansada demais. Cansada demais, empenhada demais em terminar a tempo o favor que tinha prometido a Harry. Precisava terminá-lo. Tirar isso da minha cabeça, do meu corpo, do meu sistema. Terminar e desintoxicar.

Abri mais uma vez o diário e passei suas páginas lentamente. Me detive um pouco em algumas páginas diferentes da maioria branca. Ainda não tinha compreendido do que se tratava. Olhei mais uma vez para uma folha específica do diário. De cima a baixo da página, havia um finíssimo fio branco fazendo relevo. Ele parecia mais do que colado, verdadeiramente fundido à folha. Ao lado, rabiscada em tinta preta, havia a fórmula de um feitiço complexo. Eu já o estudara algumas vezes, sem compreendê-lo de fato. Já tinha tentado realizá-lo, também, mas nada tinha acontecido. Eu tinha passado por quatro páginas iguais àquela, espalhadas entre as lembranças. Ainda não tinha descoberto sua função.

Folheei o livro, procurando por páginas similares. Havia uma mais à frente, com uma diferença. Naquela, o fio não era branco. Era ruivo. Só então percebi que eram fios de cabelo. E, depois daquelas semanas, eu podia reconhecer aquele tom de ruivo, mesmo que em amostra tão pequena.

Dedilhei o fio de cabelo ao longo da página. Fios de cabelo de Lily. Quão doentio era aquilo? Balancei a cabeça. Não, não fazia sentido aqueles fios estarem ali pra servirem de suvenir. Tinha que ser mais do que isso. O feitiço estava rabiscado ao lado, em toda sua complexidade e inutilidade. Fios do cabelo de Lily. Por que os outros fios eram brancos? Ela certamente não chegara a ter fios brancos. Vinte e um anos. Esse tinha sido todo o tempo que... Engoli em seco. Tinha certeza de que eram fios de cabelo de Lily. Lily. Peguei minha varinha. Lily. Fechei os olhos. Murmurei o feitiço.

A sensação foi parecida com a de viajar com uma chave de portal. Como se um gancho me puxasse pela barriga e me arremessasse no ar. Meu corpo foi sacudido sem destino certo até aterrissar, mais suavemente do que eu esperava, em cima de um sofá vermelho. Sentei, assustada, olhando ao redor para tentar me localizar. Mexi a mão, tentando retirá-la da página do livro. Mas não havia mais página de livro. Não havia duas realidades coexistindo. Eu fora arrastada para fora do armário de vassouras. Para onde?

O susto nublou o reconhecimento imediato, mas o local não era nada misterioso. A sala comunal da Grifinória. Estava vazia. Levantei do sofá, olhando ao redor. Onde estaria todo mundo? Como eu aparatara ali? Onde estava o diário? Onde estava o diário?! O pânico já estava cravando as garras em mim quando ouvi o rangido de uma cadeira girando.

- Oi. – ela disse quando a cadeira parou seu giro de frente para mim. Ofeguei, quase cambaleando com o susto.

Calma, pensei, respirando fundo. Aquele diário era cheio de surpresas, essa era apenas mais uma delas. Mas Lily estava ali e isso era normal. Certo? Uma lembrança sobre Lily. Eu só precisava esperar que chegasse ao final, como todas as outras. Ela estava usando o uniforme da Grifinória, embora a gravata estivesse desamarrada ao redor do pescoço. E usava o batom vermelho, aquele mesmo da festa, aquele mesmo que atraía todos os olhos do mundo para sua boca.

- Oi? – Lily repetiu, se levantando da cadeira. Continuei parada onde estava, observando. Ela franziu as sobrancelhas, dando um passo na minha direção.

Foi minha vez de franzir a testa quando ela repetiu o cumprimento, dessa vez na linguagem de sinais. Hesitei, imaginando que ia fazer papel de idiota, antes de perguntar:

- Você está falando comigo?

- Não tem mais ninguém aqui, tem? – ela respondeu e então eu realmente cambaleei até cair sentada de novo no sofá. Aquilo não era possível. Não era possível. – Você está bem?

- Eu... eu... – balbuciei, piscando várias vezes. Será que eu estava sonhando? Respirei fundo. Era provável que estivesse sonhando. Andava tão cansada que pegar no sono sem me dar conta era completamente plausível. Será que era um sonho?

- Eu não tenho como saber se você está sonhando, mas eu, com certeza, não estou.

- Você pode ouvir meus pensamentos?

- Posso, se você pensar em voz alta, como agora. – Lily respondeu, dando mais alguns passos e se sentando na outra ponta do sofá.

- Ah... – murmurei, constrangida – Não percebi que tinha dito em voz alta.

- Está tudo bem. Você parece assustada.

- Desculpe. É só que... – balancei a cabeça – Não estava esperando por isso.

- Isso o que?

- Bom... você. – respondi e ela riu.

Lily não parecia assustada ou surpresa. Parecia confortável, as costas apoiadas no encosto do sofá, as pernas cruzadas comportadamente.

- Meu nome é Hermione Granger, eu sou...

- Eu conheço você. – ela me interrompeu e eu arqueei uma sobrancelha.

- Conhece?

- Sim. Das outras páginas.

- Você... podia me ver?

- Não. – Lily sacudiu uma das mãos e hesitou um pouco antes de completar: - Mas eu podia te sentir.

- Hm... – engoli em seco.

Me sentir. As pontas dos meus dedos ainda formigavam. Ela podia me sentir. É claro que podia me sentir. Não era eu quem vinha alimentando toda a vida daquele diário? Aquelas lembranças?

- Isso não é uma... lembrança?

- Você está perguntando ou afirmando? – Lily enrugou a testa.

Eu estava conversando com Lily. Eu. Com Lily. Obviamente Snape não podia ter uma lembrança de algo que nunca acontecera. Muito menos eu.

- Estou afirmando. – respondi, por fim – Não é uma lembrança.

- Não, não é.

- E o que é?

- Acho que isso depende de você. O que é?

- Eu não sei.

- Eu também não. – Lily deu de ombros – Mas gosto daqui.

- Como você veio parar aqui? Como eu vim parar aqui?

- Hermione, diferente do que você pensa, eu não tenho acesso ao seu cérebro. E acho que a maioria dessas perguntas você está fazendo para si mesma. – ela respondeu, se levantando do sofá.

Meu coração não tinha se acalmado nem um pouco. Continuava retumbando dentro do peito, fazendo um eco surdo nos meus ouvidos. Meus olhos seguiram os passos lentos de Lily pela sala comunal. Ela deslizou as mãos pelas mesas de madeira e pelo estofado das poltronas, sem dizer nada. Estava me dando tempo para absorver o que eu não compreendia. Para absorvê-la.

- Como é possível que estejamos aqui? – insisti. Era difícil demais não fazer todas aquelas perguntas borbulhando no meu cérebro.

- Provavelmente porque você tem uma grande imaginação.

- Quer dizer que eu estou imaginando tudo isso?

- Talvez.

- Estou imaginando você?

- Talvez.

- Então você não é você, apenas uma projeção de mim?

Lily riu e eu não consegui desviar os olhos de sua boca vermelha se curvando tão naturalmente. Ela sacudiu a cabeça.

- Não, eu sou eu. Tenho bastante certeza disso. Sem querer desmerecer as projeções de você. – brincou e eu sorri também, soltando o ar.

O fio de cabelo. O fio de cabelo de Lily, de alguma maneira, a evocava para ali. Mas onde era ali? Fazia alguma diferença?

- Como você veio pra cá?

- Não acho que eu vim. – ela disse, sentando-se na poltrona perto da lareira, onde eu já havia passado muitas noites, tantas noites, terminando exercícios – De certa maneira, eu sempre estou aqui. Talvez sempre vá estar.

- Você está presa?

- Lembrar-se de alguém é prender essa pessoa? – Lily questionou e eu suspirei, me forçando a desviar os olhos daquela boca.

- Acho que é mais uma forma de prender a si mesmo.

- “O verdadeiro nome do amor é cativeiro.” – ouvi-a recitar e mordi a boca por dentro.

- Shakespeare.

- Sim. Hermione. – ignorei o arrepio que subiu pela minha nuca ao ver seus lábios se movendo para formar meu nome – Você conhece The winter’s tale?

- Conheço.

- Pois é. Ás vezes eu me sinto um pouco Hermione também. Mas eu...

Não consegui ouvir o final da frase. O mesmo gancho que me levara até ali voltou a me sugar inexoravelmente. Quando dei por mim, estava novamente sentada no fundo do armário de vassouras, o diário aberto sobre o colo, exatamente como estava antes. Como se nada tivesse acontecido. E eu podia facilmente acreditar que tudo não tinha passado de um sonho, não fosse um único detalhe: o fio, na página do livro, ficara completamente branco.

...

O mar estava revolto. As ondas chiavam, quebrando com força contra a areia, cada vez maiores. A espuma tomava conta da orla, espalhando gravetos, pedras e plantas pelo caminho. Talvez tivesse chovido na noite anterior. Isso explicaria a areia escura e molhada. O céu completamente nublado. E a ressaca tão profunda do mar. Eu não saberia dizer, nunca saberia dizer, porque, para mim, o dia anterior nunca tinha existido. Tudo que existia era aquele momento, naquela lembrança, naquela praia, com Lily.

Ela estava sentada na areia, abraçando os joelhos. Eu estava sentada bem ao lado dela. Desde que aquela cena começara, ela não dissera uma palavra sequer. Não era a primeira vez que isso acontecia. Já tinha passado por páginas daquele diário que se contentavam em assisti-la estudar, ouvir música ou caminhar sem destino por Hogwarts ou Hogsmeade. Não era a primeira vez que eu e Lily dividíamos um momento de silêncio. Mas era a primeira vez que estava me incomodando.

Havia algo de profundamente constrangedor naquele silêncio. Na verdade, talvez o mais constrangedor de tudo fosse a minha vontade de falar com ela. A vontade premente, que ardia na minha garganta, de simplesmente falar com ela. Não adiantaria. Aquela era apenas uma lembrança comum, onde ela não tinha consciência da minha presença. Não me ouviria. Não me responderia. Mas talvez, apenas talvez, ela estivesse me sentindo.

Os únicos sons continuaram a ser o ruído do vento e o ir e vir das águas. Eu não conhecia aquele lugar. Não fazia ideia de onde estávamos. Não que fizesse diferença. Já tinha compreendido que o plano de fundo, fosse qual fosse, era apenas isso: plano de fundo. O que importava era Lily. Apenas ela. Cada uma daquelas palavras, todas aquelas memórias, tantas páginas, suor, lágrimas, energia, tanta vida e tanto tempo... Só para que ela fosse lembrada.

Por isso meus olhos estavam fixos nela, embora os dela estivessem cravados no mar. Novamente, eu não estava encarando uma menina. Aquela era uma Lily mulher. Seus olhos estavam mais fundos do que eu me lembrava, e havia uma expressão tensa ao redor de sua boca. Nenhuma sombra de sorriso. Ela arranhava o tecido da calça que usava, suas unhas raspando o jeans em um ritmo robótico. O mar revolto revirava em suas íris verdes. Havia algo naqueles olhos tão revolto quanto o mar.

Ela abraçou mais forte os joelhos e o silêncio entre nós – como se existisse um “entre nós” – atingiu o auge da perturbação. Eu queria ir embora e abafar aquela fome insaciável da presença dela. Porque, depois te tê-la visto e ouvido, de provar do seu humor leve e irônico, aquele silêncio plácido me arranhava por dentro. Me constrangia. Bastava retirar a mão da página e voltar ao mundo real. Mas eu não conseguia. Desviei os olhos por um momento, mas foi besteira. Fui atraída de volta para ela e tudo ficou ainda pior...

Ainda pior porque aqueles olhos haviam se enchido de lágrimas. Quando as lágrimas escorreram pelo rosto, avermelhando aqueles olhos verdes, meu coração contraiu dolorosamente. Respirei fundo. Aquilo podia ser explicado. Eram olhos parecidos demais com os de Harry, era apenas isso. Olhar para Lily chorando me remetia a Harry sofrendo. E eu amava Harry. Vê-lo sofrer mexia comigo, é claro.

Quem eu quero enganar?

Primeiro ela chorou baixinho, as lágrimas pingando por suas bochechas ou escorrendo pelo pescoço até sumirem pela gola da camisa. Meu desespero só foi aumentando. Quando Lily se abraçou com força, controlando a custo os soluços, foi difícil não chorar com ela. Queria poder dizer que estava tudo bem. Que tudo ia ficar bem. Mas eram mentiras. Eu sabia disso e talvez ela também soubesse, já naquela época. Porque nós éramos mágicas, éramos especiais, tínhamos o sangue mais puro de todos os sangues. O sangue de onde brota magia.

Eu nunca havia compreendido como isso podia dar origem a uma guerra. Mas o fato é que houvera uma guerra e ela fizera vítimas. Lily desistiu de se segurar e começou a chorar convulsivamente. Eu chorei com ela. O que eu podia dizer?

Você é forte, você vai passar por tudo isso.

Mas eu não podia mudar o passado, eu não podia apagar aquele sofrimento. Nem amenizar seu medo. O que eu podia fazer para que ela não chorasse e não sofresse? O que eu podia fazer para protegê-la? Nada. Eu não podia fazer nada.

Harry está bem. Ele está feliz.

Acho que ela gostaria de saber disso. Porque ela era forte o bastante pra lutar até o fim, e mais forte ainda para saber quando o fim pedia uma rendição. E porque ela se rendera, tudo estava bem agora. Harry estava bem agora. Eu estava bem agora. Por causa dela, por ela. Eu não queria vê-la chorar. Eu faria qualquer coisa, como tinha feito por Harry. Porque, de algum jeito, Lily me envolvia da mesma maneira e ainda mais.

Ela se ergueu da areia, subitamente, e correu na direção do mar. Eu gritei o nome dela, mesmo que ela não pudesse ouvir. Era loucura entrar na água, ela tinha que saber disso. O mar estava agitado demais, ela seria sugada pela correnteza. Meu coração quase saiu pela boca enquanto ela corria na direção das ondas.

- Lily, por favor! – eu gritei de novo, mas não podia me aproximar.

Ela parou quando a água batia em seus joelhos e se dobrou pra frente, como se fosse vomitar. Mas tudo que fez foi respirar fundo e erguer o corpo.

- Não. Não... – ela sacudiu a cabeça e o vento espalhou seus fios ruivos pelo ar – Isso seria fácil demais. – disse, olhando as ondas quebrando violentamente logo adiante – E eu não gosto de fácil demais.

A página chegou ao fim e meu dedo escorregou, formigando, para fora do livro. Toquei meu próprio rosto e senti a umidade das lágrimas. Minha pele não estava pegajosa da maresia, nem meu cabelo bagunçado pelo vento. Mas já tinha passado da hora de admitir que todas aquelas lembranças eram mais do que reais para mim. Aquela angústia desmedida continuou fazendo peso em meu peito, acompanhando cada um dos meus passos para fora do armário e de volta à sala comunal da Grifinória.

Durante todo o tempo, eu batalhei com a tentação de mergulhar em um novo encontro com Lily. Não podia. Tinha folheado o diário até o final e só existiam mais duas páginas com o cabelo ruivo fundido. Não precisava ser muito esperta para concluir que, uma vez que o cabelo estava branco, o feitiço não funcionava mais. Ou seja, só mais dois encontros. Isso era tudo.

Eu tinha feito o que tinha que fazer. Enviara uma segunda carta a Harry, contando, da melhor maneira que pude, sobre aquele encontro. Era a família dele, a mãe dele. Era um encontro com a mãe dele. E só existiam mais duas oportunidades disponíveis. Pertenciam a ele, não a mim. Por isso, estava empurrando aquele desejo para o fundo mais afastado da minha mente. Não havia nada que eu pudesse fazer a não ser terminar a leitura daquelas lembranças. Eu estava mais do que certa de que não haveria nada no resto do diário que fosse de interesse do Ministério. De que adiantaria fingir para mim mesma que o motivo de eu querer terminar de ler era cumprir o favor prometido a Harry?

Não. Agora era bem mais do que isso. Lily era uma história em constante fluxo dentro da minha cabeça. Uma história que terminara antes de começar. Mas eu... Eu precisava de um ponto final. E, com um pouco de sorte, ele estaria na última página daquele diário. Quando eu a esgotasse, de todas as maneiras. Quando eu me esgotasse também. Era por isso que precisava terminar.

Estava tarde, então não me surpreendi com o silêncio sonolento do dormitório. Havia um envelope em cima do meu travesseiro e eu o peguei e reconheci a letra de Harry no remetente. Respirei fundo e rasguei o lacre. Meus olhos correram rapidamente a resposta dele, suas letras apertadas e suas frases objetivas. Harry não se estendeu muito, mas o bastante para me surpreender.

Ele não estava interessado nas lembranças ou nos encontros com Lily.

Não é a minha mãe, Hermione. No máximo, é como Snape via minha mãe. E sobre os encontros, eu já tive os meus. São mais dolorosos do que reconfortantes, no fim das contas. Eu não posso trazê-la de volta. E não vou ficar tentando subterfúgios para isso.”

Agradecimentos e um lembrete da cremação dos pertences de Snape, então a carta chegava ao fim. Harry não estava interessado nos encontros. Ele não os queria. Harry abrira mão dos encontros. Então eu...

Minhas mãos buscaram o diário com tanta pressa que quase o deixei cair. As folhas passaram velozmente pelos meus dedos até que eu encontrasse o que estava procurando. Ofegando, parei na página onde um longo fio ruivo fora unido ao papel. Tracejei o desenho do fio, esperando um segundo para acalmar meu coração. Busquei a varinha na mesa de cabeceira e nem precisei pronunciar para que o feitiço fosse realizado. Um momento depois, eu estava sendo lançada no infinito.

Dessa vez aterrissei em um gramado macio e olhei rapidamente ao redor, tentando me localizar. Hogwarts, novamente. Estava nos jardins, debaixo da sombra de um dos grandes carvalhos, a menos de dez metros do lago negro.

- Lily? – chamei, hesitante.

- Hermione? – a voz dela respondeu, de algum lugar próximo. Levantei e olhei ao redor.

- Lily?

- Hermione? – ela repetiu e eu franzi a testa. Comecei a rodear o carvalho até chegar do outro lado. Nada.

- Você está aí?

- Estou, e você? – ouvi-a mais uma vez, sua voz límpida e próxima. Sorri e adiantei os passos, rodeando o carvalho de novo. Vi um flash de seus cabelos ruivos escapando para o outro lado da árvore.

- Lily!

- Hermione! – dessa vez a exclamação foi feita bem atrás de mim. Pulei de susto e me virei rapidamente para me deparar com uma Lily risonha.

- Engraçadinha. – resmunguei e ela riu mais ainda.

- Você voltou.

- Voltei...

- Ainda tem muitas perguntas para fazer?

- Centenas delas. Você tem respostas?

- Centenas delas. – Lily pronunciou, seus lábios tingidos por aquele onipresente batom vermelho – Para cada uma das suas centenas de perguntas.

Eu sorri e me deixei escorregar de volta para a grama, sentando com as costas apoiadas no carvalho. Mirei o lago demoradamente.

- Eu vi você entrando no lago.

- Ficou indignada, aposto.

- Um pouco. – admiti, desviando os olhos do lago para ela – Mas depois fiz o mesmo.

Lily pareceu surpresa, depois sorriu.

- Bom pra você, Mione! Não é bom perder oportunidades.

- Não, acho que não. – murmurei, vendo Lily caminhar ao meu redor. Ela se aproximou de alguns arbustos floridos e acariciou uma das flores delicadamente.

- Não me lembro desses lírios aqui nos jardins. – Lily comentou e eu apertei os olhos para analisar melhor as flores.

- Também não me lembro.

- Isso quer dizer que eu te faço pensar em lírios. – ela balançou a cabeça e suspirou – Que clichê!

- Como assim?

- Bom, é você quem está no comando desse show, não é?

Arqueei uma sobrancelha, mas não precisei perguntar nada. Compreendi o que ela queria dizer. De alguma maneira, era o meu subconsciente que fazia as escolhas. O lugar, se era dia ou noite, se fazia frio ou calor. Tudo estava, teoricamente, sob o meu controle.

- Desculpe. – disse, por fim – Pensarei em tulipas da próxima vez.

- Não se dê ao trabalho. Lírios são minhas flores favoritas. – ela disse e deu de ombros – O que eu posso dizer? Sou clichê.

Eu joguei a cabeça para trás e ri. Era tão simples conversar com Lily. Sentia como se já a conhecesse há muitos, muitos anos. Talvez eu realmente tivesse conhecido muitos anos dela em pouco tempo. Mas ela...

- Por que você fala comigo desse jeito? – questionei, voltando a fitá-la.

- Que jeito?

- Com... intimidade.

- Ah... – Lily encolheu os ombros e então se sentou ao meu lado na grama. Seus olhos encontraram os meus e ela ficou quieta por um longo momento, como se estivesse tentando formular suas ideias. – Eu não sei explicar. Você sabe que você é o único motivo de estarmos aqui. Eu existo, você também sabe disso. Existo tanto quanto uma memória pode existir. Sua vontade de que eu esteja aqui e... algo mais... não sei bem o quê...

O fio de cabelo.

- Nos traz para cá. Hermione, é verdade quando digo que esse show é seu. Você alimenta tudo isso. Quando você faz cada uma dessas lembranças girar, eu posso sentir você. Sua energia, sua vida, às vezes até mesmo seu humor.

- Como isso é possível? – balbuciei, rouca.

- Magia. – foi tudo que ela respondeu, antes de relaxar a postura e se recostar no carvalho também.

- Essa não é uma boa explicação. – resmunguei.

- É claro que é.

- Não, não é.

- Tudo bem. Então vamos tentar outra resposta para sua pergunta. – Lily se levantou mais uma vez e passou a caminhar em círculos ao redor do carvalho – Por que eu falo com você desse jeito, certo?

- Certo.

- Porque você é amigável.

- Amigável?

- Ok, resposta número 3. Porque você me trata assim também...

- Mas eu... – comecei.

- Resposta número 4! Merlim, é difícil te agradar! Porque você é doce, e me olha como se nunca mais fosse me ver e precisasse me absorver toda de uma vez.

- O que? – engasguei, ficando de pé também e barrando o caminho de mais uma volta de Lily ao redor da árvore.

- Fui direta demais? – ela questionou e eu engoli em seco, me odiando por não conseguir desviar os olhos daquela boca-morango-maduro.

- Por que você está sempre de batom vermelho, afinal?

- A pergunta correta seria: por que você me quer sempre de batom vermelho, afinal? – Lily retrucou e eu senti meu queixo caindo, minhas bochechas corando. Ela apenas riu, divertida com a situação, embora eu não tivesse uma palavra sequer para respondê-la.

- Eu... eu preciso testar uma coisa... – sussurrei, dando um passo na direção dela. Será que...? Seria possível que...?

Tenho certeza de que meu cérebro não estava funcionando direito quando estiquei o braço na direção dela. Ouvia as batidas retumbantes do meu coração e hesitei antes de aproximar mais a minha mão. Nem precisei, porque Lily deu o passo que faltava e meus dedos tocaram seu rosto. O estremecimento percorreu meu corpo inteiro.

- É real o bastante para você? – Lily perguntou e eu sequer tive tempo de formular uma resposta, antes que ela avançasse ainda mais e cobrisse minha boca com seus lábios vermelhos.

Sim, era real. O calor de sua pele. A textura sedosa de seus cabelos. A maciez torturante de sua boca. Eu ofeguei quando ela passou os braços ao redor da minha cintura, trêmula, assustada e entregue. Lily mordiscou meu lábio e eu gemi baixo. Ela enfiou a mão pelo meu cabelo e eu me rendi, entreabrindo a boca.

Então aquele guindaste me puxou pelas entranhas e me lançou de volta à realidade.

...

- Você está bem? – Ginny perguntou, antes de se deitar ao meu lado na cama. Estava escuro do lado de fora das janelas e só uma vela, na minha mesa de cabeceira, iluminava o dormitório.

- Estou bem... só um pouco cansada. – respondi, sem saber se era exatamente verdade ou mentira.

- Você parece mesmo cansada. – ouvi-a dizer. Ficamos quietas por um momento, mirando o dossel da cama. Havia tanta coisa rodopiando pelo meu cérebro ao mesmo tempo que era como tentar lidar com um enxame de abelhas. Meus ouvidos zuniam.

- Eu preciso...

- De que?

- Não sei. – disse, baixo, e respirei fundo – Eu não sei o que fazer.

- Sabe, Mione, é muito estranho, pra mim, não saber o que está acontecendo com você. – Ginny ergueu o corpo para me olhar nos olhos – Mas não vou forçar a barra.

- Ginny...

- Ei... está tudo bem. – ela balançou a cabeça e sorriu – Você é Hermione Granger. Você sempre sabe o que fazer.

- Nem sempre. – protestei.

- Sempre, sim. Mesmo quando não quer fazer o que sabe que tem que fazer. – Ginny respondeu, me deixando muda. Ela apertou minha mão por um momento, antes de dizer: – Boa sorte, com seja o que for.

- Obrigada.

- Bom, agora eu tenho que ir.

- Ir pra onde? – arqueei uma sobrancelha, vendo Ginny levantar da cama e rumar para fora do dormitório.

- Hogsmeade. Vou encontrar com o Harry. – disse, puxando a capa de invisibilidade de sua bolsa. Eu revirei os olhos e sorri.

- Boa sorte para você também.

Ginny apenas piscou um olho e fechou a porta atrás de si ao sair, deixando o dormitório vazio. Parvati também estava enredada em algum lugar do castelo com o novo namorado. E a noite e o silêncio foram os últimos me fazendo companhia.

Fechei os olhos e respirei fundo algumas vezes. Sem pensar, toquei meus lábios com a ponta dos dedos. Meus dedos não formigavam mais. Três dias sem abrir o diário foi o bastante para que eles parassem de arder, para que eu recuperasse as forças. Mas não o bastante para que eu recuperasse a sanidade. O controle sobre mim mesma. Os dedos não formigavam mais, mas a boca... A cada vez que eu me lembrava...

Eu precisava admitir que Ginny estava certa. Meu problema não era não saber o que fazer. Não, eu sabia. Sabia muito bem, desde o começo. Sabia o que tinha que fazer desde que Harry colocara aquele diário em minhas mãos. Mas depois de tudo que eu havia descoberto nele, aquela tarefa simples tornara-se tão difícil e dolorida...

Levantei da cama, sentindo pouca firmeza em meus joelhos, e revirei meu malão até desenterrar o livro. Voltei a me sentar no colchão e o abri no colo. Eu terminara de ler cada uma daquelas lembranças. Terminara de reviver o que eu nunca tinha vivido. Mas não havia ponto final, não ainda, ainda não. Porque tinha mais uma coisa a ser feita.

Abri o diário e visualizei o último fio de cabelo ruivo. Na última página. Para um último encontro. Não me ofereci tempo para pensar ou tremer. Peguei a varinha e pronunciei o feitiço.

Quando o chão voltou para baixo dos meus pés, eu abri os olhos, assustada, apavorada pela ideia de não ter funcionado. Eu continuava no dormitório, sentada em minha cama, exatamente como estivera antes. Mas o diário... Olhei ao redor, procurando. O diário não estava lá.

- Procurando alguma coisa? – a voz dela flutuou pelo ar e eu virei a cabeça na direção do som. Lily estava do outro lado do dormitório, perto do banheiro.

- Você. – respondi, sinceramente. Ela sorriu, curvando seus lábios sempre delineados por aquele batom tentador.

- Encontrou. – Lily murmurou, caminhando até onde eu estava. Os olhos delas se desviaram de mim para a minha mesa de cabeceira e eu acompanhei seu olhar. Um vaso de plantas tinha aparecido ali. Comportava um buquê de lírios.

- Acho que me esqueci daquelas tulipas...

- Acho que seu subconsciente está tentando me agradar.

- Por que estaria? – questionei, estreitando os olhos quando ela se sentou ao meu lado na cama.

- Você sabe por quê. – a mão dela tocou meu rosto e eu resisti ao impulso de fechar os olhos e deitar contra aquele toque.

- Eu só vim porque...

- Sh. – Lily cobriu meus lábios com a mão, interrompendo minha frase. Seus olhos eram transparentes como um céu de verão – Nós duas sabemos porque você veio.

Então ela afastou a mão e aproximou o rosto, roçando o nariz no meu. Pude sentir seu hálito morno, tão puro, tão real, de encontro ao meu rosto.

- Hermione... – os lábios dela se moveram para pronunciar meu nome e eu não pude resistir.

Nos beijamos sem ninguém tomar essa decisão. Como casais em um filme, naqueles romances mais clichês. Como um rio que flui para o mar. Nos encontramos. Eu teria o resto da vida para pensar na loucura que era aquilo tudo, mas não começaria agora. Não com a língua de Lily pedindo passagem tão suavemente para dentro da minha boca.

Minha pele se arrepiou debaixo dos dedos dela. Quando me dei conta, estava deitada na cama, sentindo o corpo de Lily pesar sobre o meu. Quente e denso, verdadeiro e vibrante como devia ser. Como eu imaginei que fosse. Ela desceu beijando meu pescoço e quando ergueu novamente a cabeça, o batom vermelho havia se espalhado por seu rosto e queixo. Eu sorri, seduzida pelo que aquilo significava. Lily segurou minha mão e beijou-me a palma, o pulso, o braço inteiro. Fiquei olhando o traço vermelho desvanecendo conforme ela subia a trilha de beijos. Minha pele marcada por aquele batom era o bastante para me deixar fora de órbita.

Ela passou uma perna por cada lado do meu corpo e sentou sobre os meus quadris. Suas mãos se ocuparam de desabotoar minha camisa, sem dúvida ou pressa. Sem deixar que fosse um gesto apressado, consumido de desejo. Ela sabia que eu não a impediria, não tinha o menor medo de ser afastada. Lily sabia de mim como eu sabia dela. Com aquela certeza metafísica.

Giramos na cama e eu fiquei por cima. Voltei a lhe beijar a boca, mergulhando nela, nela inteira, língua com língua, lábios com lábios, dente com dente. Desejo com desejo. Pele com pele, quando meus dedos a despiram, sem comando. Tremor com tremor. Eu não sabia o que estava fazendo, mas sabia. Não sabia o que queria, mas sabia.

Rolamos novamente sobre o colchão. Minha pele ardeu quando Lily se abaixou para beijar meus seios. Mergulhei a mão por seu cabelo acaju, puxando-o de leve enquanto ela se divertia em explorar minhas sensibilidades. Sua língua explorou meus mamilos até o arrepio se tornar calafrio e uma quase dor de desejo insaciado. Puxei-a de volta para minha boca, mordendo-lhe os lábios voluptuosamente.

Envolvi-a com braços e pernas, como se eu simplesmente não tivesse pele o bastante para todo o contato que desejava. As mãos dela se espalhavam pelo meu corpo com segurança. Não poderia ser diferente. Porque era ela. Lily. E ela sabia o que lhe pertencia, sem que precisassem lhe dizer. Naquele momento, ela sabia que eu era dela. Eu a desejava, tanto que não poderia expressar. Mais do que corpo, eu a desejava com a alma. Com tudo em mim. Eu a desejava com uma fome que não podia ser satisfeita. Eu a desejava com a pele, a boca, a vida inteira.

Estava ofegando quando ela me virou de bruços e deitou-se sobre mim, colando seus seios perfeitos nas minhas costas já suadas. Eu estremeci e meu tremor se expandiu para ela, como dois universos partilhando energia. Senti as primeiras lágrimas escorrendo pelo meu rosto, até a ponta do nariz, para cair no travesseiro. Junto com as primeiras lágrimas, os primeiros espasmos. A mão de Lily encontrara um dos – incontáveis – pontos do meu corpo que a desejava com desespero. Seus dedos deslizaram por entre as minhas pernas e meus gemidos entremearam as lágrimas, na mesma sensação opressora e indescritível. 

Tremi da ponta dos meus dedos até a ponta dos dedos dela. Deixei o orgasmo tomar conta de cada fibra de mim, sem medo, sem pudor, querendo que me arrastasse para o fim do mundo. E no final do primeiro, começou o segundo e, do segundo, o terceiro. A cada recomeço, eu urgia pelo ápice, pelo fim, e então queria o começo de novo, quando a vontade dela se mostrava ainda ali, insatisfeita.

E quando a eletricidade finalmente se dissipou, ainda havia energia o bastante entre nós para iluminar o mundo todo. Lily escorregou para o meu lado e nossos braços voltaram a se enroscar languidamente. Ela me beijou a testa, os olhos e então a boca.

- Te deixei com marca de beijo. – ela sussurrou e nós duas rimos diante do meu corpo tracejado de cima a baixo por batom vermelho – Espero que nunca saia.

- Não vai sair. – garanti, com voz rouca. Lily sorriu, me abraçando mais forte.

- Você tomou uma decisão.

- Sim...

- E então?

- O diário será queimado amanhã.

- Não vai guardar nem uma página para lembrar-se de mim?

- “Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te.” – recitei e Lily sorriu, tocando meu cabelo, suavemente, e afundando o rosto na curva do meu pescoço.

Fechei os olhos, sentindo formigar cada marca dos beijos que nunca desapareceriam. O hálito dela ardeu em minha pele, quando ela sussurrou:

- Shakespeare.

- Sim.


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