Ébano escrita por Mililika


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Meu presente de aniversário para a querida da Bruna Uzumaki!



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Uma flecha passou zunindo pelos meus ouvidos, tão perto, que senti meus cabelos esvoaçarem para frente, como se quisessem seguir o caminho da maldita.

Besteiro bastardo. Pensei, tentando correr além do que minhas pernas permitiam.

Era difícil acompanhar o ritmo do rapaz que corria à minha frente, guiando o caminho. Ele corria com a mesma velocidade e leveza que minha raposa, ambos lado a lado, desbravando a mata sem medo das pedras, buracos e armadilhas espalhadas por entre as flores secas que permeavam o solo. E se desviavam com reflexos de dar inveja dos galhos das árvores mais baixas e dos cipós que atrapalhavam a vista.

"Volte, em nome do rei, criatura bestial!" Ouvi o líder dos que me caçavam gritar. Seu tom era irritante, como o tom de qualquer homem que se sente dono da lei e do destino dos homens comuns.

Não que eu posso me considerar um homem comum. É por não ser um, que eu fujo.

Virei para trás e atirei uma flecha, mal tendo tempo de mirar, e não pude ver se acertara o alvo antes de voltar a correr. Os cachorros latiam e ladravam ferozmente. Essas sim, eram as verdadeiras criaturas bestiais. E estavam me alcançando.

"John!" Ouvi o chamado e, com um breve arregalar de olhos, vi Buma mirar uma flecha diretamente em meu peito. Ele a soltou do arco, disparando o zumbido característico da ponta afiada que rasga o ar em frente.

Me abaixei instantes antes que a seta atingisse meu peito, enquanto me virava rapidamente para trás, caindo de joelhos. Vi a seta atingir o peito de um dos cachorros que pulara para me abocanhar o pescoço pelas costas. Meu coração batia tão forte, que eu pude escutá-lo bater feito um tambor em meus ouvidos.

"Vamos!" Buma gritou.

Eu levantei e corri seguindo-o. Fuga ou morte. Era o que minha mente dizia-me, e o pensamento me deu forças renovadas para alcançar o rapaz de cabelos negros e pele escura. Minha raposa surgiu apenas para rosnar na direção dos perseguidores, antes de pôr-se a correr, tão covarde como eu.

Se é covardia correr de uma horda de caçadores, então eu sou o maior dos covardes. Pensei, perseguindo a silhueta esguia de Buma, tentando não ficar para trás novamente.

Era incrível. Ele sequer parecia cansado, sua respiração era rápida, mas não exausta como a minha, e parecia que poderia correr por milhas e milhas ainda. Até Escarlate parecia cansada, lutando para impulsionar o corpo para frente, olhando-me vez ou outra para garantir que ainda estava ali com ela.

"Não temos onde nos esconder!" Gritei.

E, para desmentir minhas palavras e testar minha coragem, um precipício abriu-se à nossa frente assim que vencemos as últimas árvores na orla da floresta. Ela continuava à frente, depois do precipício, como se aquela rachadura gigantesca rasgando a terra não existisse.

"Temos de pular!" Buma falou, virando o rosto na direção dos sons que nos perseguiam, deixando seus cabelos longos esvoaçarem contra o vento. Os gritos, os latidos e o sopro da morte fizeram os pelos de meu braço arrepiarem em recusa à ideia suicida de Buma.

"Ficou louco?!" Berrei. Olhei para baixo e vi que um rio serpenteava lá em baixo, um risco azul que estava distante demais para que conseguíssemos sobreviver à queda. Se morreremos de uma maneira ou de outra, prefiro morrer lutando!

Eu mal terminei de falar e um zumbido distraiu-nos de nossa discussão, atraindo nossos olhares para a floresta. Rápido como só ele poderia ser, Buma jogou-se contra mim, evitando por milésimos que a flecha perfurasse meu peito. Porém, ao fazê-lo...

Caímos.

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHH!

"John!" Buma chamou após vários metros em que eu me debatia e gritava desesperadamente, com cenas de minha vida atravessando rapidamente minha mente. De alguma forma, Buma conseguiu alcançar minha mão. Segurou-a fortemente e a puxou para baixo, aproximando nossos corpos.

"Seu filho da puta, desgraçado, vou morrer por sua culpa!!" Gritei para ele.

"Estique o outro braço e endireite o corpo!" Ele me ignorou. Sempre o fazia. Nesses cinco meses em que andávamos juntos, partilhando da mesma comida, da mesma fogueira e das mesmas perseguições incansáveis, ele nunca se irritava com meus xingamentos e reclamações. Sempre me ignorava, em seu jeito taciturno, ou abria um discreto sorriso no canto dos lábios.

Eu me perguntava por que ele me ajudava. Sem nunca perguntar. Sem nunca reclamar.

Senti necessidade de agradecê-lo, antes da morte, mas apenas fiz o que ele mandou, deixando meu corpo reto como o dele e os braços esticados em direção às águas azuis. O rio tornava-se maior conforme avançávamos, e a breve sensação de liberdade que experimentei o coração pulsando violentamente e o vento batendo no rosto de modo até mesmo doloroso passou rápido, pois logo a frieza da água fazia todos os meus ossos tremerem, quando mergulhamos.

XxX

Meus pulmões queimavam quando enfim consegui emergir e puxar o ar com força para dentro deles, em um som agonizante de quem por segundos não acabou afogado. A sensação de voltar a respirar foi única, como beber do néctar da vida.

Olhei ao redor, ofegante, procurando por Buma enquanto a correnteza forte me arrastava sem piedade ao longo do rio. Eu e Buma acabamos soltando as mãos quando a correnteza me jogou contra uma pedra abaixo da água e o carregou para longe de mim.

"Buma!" Gritei, girando desengonçadamente, enquanto tentava também me segurar ou escapar das pedras pelo caminho. Eu percebi, tarde demais, que estava indo em direção a uma cachoeira. Merda.

"John, aqui!" Procurei de imediato pela voz e o vi segurando-se em uma pedra. Ele esticou o braço quando eu ainda estava a alguns metros de alcançá-lo, e eu tentei nadar até ele. A cachoeira estava perigosamente perto e eu não sabia qual era a altura da desgraçada. "Segura a minha mão!"

Tentei esticar o braço, e nossos dedos chegaram a roçar, mas apenas isso. A força da água estava incrivelmente forte tão perto da queda, e eu não consegui nadar contra a corrente. Depois de sobreviver tantas vezes às tentativas da morte em me levar, eu jurei que aquele era o momento.

"John!"

"Buma, não!" Eu gritei, mas era tarde. Ele se soltou da pedra e nadou até mim. De alguma forma, alcançou-me e nós nos abraçamos.

No exato instante em que voltávamos a cair. Isso não iria parar nunca?

XxX

Eu me remexi, soltando um grunhido baixo. Algo crepitava perto, espalhando um calor agradável sobre meu corpo. Uma pele pesada me cobria e, aos poucos, comecei a abrir os olhos. A luz deixou-me cego por vários minutos, até que eu me acostumasse novamente com ela e o mundo lentamente voltasse a se desenhar frente a meus olhos.

Vi um teto feito de galhos de árvore repletos de folhas verdes vibrantes, que balançavam preguiçosamente ao ritmo da brisa. Olhei para o lado, vendo a fogueira acesa próxima a mim, no centro daquela pequena clareira que deixava poucos raios de sol atingirem a grama macia. Cheguei a pensar que havia morrido e acordado num céu tranquilo, recheado de natureza.

Mas então escutei os sons de passos. Tentei me mover, mas minha cabeça doeu como se alguém houvesse me dado uma pancada com um taco de madeira, e eu apenas gemi e voltei a me deitar. Pouco depois, um rosto jovem e sereno pairava em meu campo de visão, os cabelos negros caindo emoldurando-o como um manto noturno, sem estrelas.

"Você acordou." Buma falou. Não sorria, ele raramente sorria, no máximo sua expressão denotava algum prazer sutil, como um serenar que se percebe nos detalhes. E seus olhos... Seus olhos brilhavam. Eram da cor violeta, algo que eu nunca havia visto antes, hipnotizantes. Contrastavam incrivelmente com a cor de ébano de sua pele.

"Buma... Meu Deus." Eu estiquei a mão, segurando-o pelo colete, e o puxei para mim. Abracei-o com força, aliviado por estarmos vivos. Por ele estar vivo.

"Nunca mais nos jogue de um precipício. Faça isso, e eu te mato." Disse perto do ouvido dele, antes de soltá-lo e me forçar a ficar sentado. Ele me ajudou e, pela primeira vez, um sorriso suave brincou no canto de seus lábios.

"Tentarei me lembrar disso na próxima vez." Ele disse, indo preparar os dois coelhos que havia caçado. "Você dormiu por três dias."

"Três dias?!" Perguntei perplexo. Isso explicava minhas roupas secas e o gosto de carne podre na minha boca. Como pude dormir tanto?

"Você bateu a cabeça numa pedra quando caímos na cachoeira, e desmaiou." Ele disse distraidamente, tirando a pele dos pequenos animais. "Estamos perto de Gknelvë agora. Por sorte os soldados do Rei parecem ter acreditado que morremos."

Levei a mão à lateral da cabeça, sentindo que havia um pequeno inchaço ali.

"Você... Me salvou. Três vezes num único dia, várias nesses últimos meses. Eu..." Gaguejei. Não estava acostumado a agradecer a ninguém. "Obrigado."

Ele me olhou, com aqueles orbes fascinantes. Eu não entendia como alguém poderia ter olhos daquela cor. Brilhavam tanto em alguns momentos, que era difícil encará-lo. E esse era um dos momentos. Eu desviei o olhar, estupidamente constrangido.

"Você também já me salvou muitas vezes." Ele murmurou, voltando a atenção para os coelhos. Em poucos minutos, a carne assava sob a fogueira, espalhando um aroma agradável através do vento, e nós permanecíamos sob um silêncio confortável.

"E Escarlate?" Perguntei de repente, lembrando de minha raposa com um estalo. Buma me olhou de esguelha, antes de desviar o olhar, e um aperto imediatamente tomou-me o peito.

"Desculpe, John. Ela não apareceu."

Eu abaixei o olhar, sentindo os olhos arderem, mas não querendo chorar. Coloquei a mão no pescoço, procurando tocar o dente de um urso que matei aos dezessete anos. Usava-o pendurado em cordão ao redor do pescoço, como um amuleto. Não o encontrei.

E me desesperei. Ali estava o cordão, mas não o dente.

"Meu amuleto!" Exclamei perplexo. "Meu amuleto, eu perdi... Não! Buma, diga-me que o tirou do meu pescoço. Ou que o encontrou!!" Eu praticamente engatinhei até Buma e o agarrei pelos ombros, sacudindo-o. Ele me encarou aturdido.

"Não o vi, John. Me desculpe." Disse. "Deve ter perdido na queda..."

"Não! Não, não, não... Não pode ser!" Me levantei, começando a andar de um lado para o outro, puxando meus cabelos, olhando ao redor como se pudesse encontrar o amuleto ali, na grama, perdido entre as folhas secas. "Não! Eu preciso daquele amuleto!!"

Buma apenas me encarava, sentado com as pernas cruzadas e o rosto preocupado. Ele deixou que eu gritasse, xingasse, andasse pela clareira feito um animal enjaulado, até que minhas energias se esgotassem e eu caísse sobre a grama, deitado com os braços abertos, olhando nervosamente para o céu.

"Eu não podia ter perdido. O único pertence que eu tinha obrigação de manter sempre comigo..." Apertei os olhos com força.

"Era tão importante assim?" Buma perguntou, num tom de voz baixo, como que com medo que eu tivesse outro ataque de raiva e desespero. Suspirei profundamente, sentindo um aperto sem igual no peito, uma sensação pior do que não poder respirar embaixo da água.

"É o que me impede de virar um monstro..." Sussurrei. Buma não sabia sobre isso, os homens que me perseguiam, sabiam, mas a pessoa que estava comigo há meses, a quem eu poderia confiar minha vida, não sabia. Senti-me mal. Mas a verdade é que eu tinha medo que ele se afastasse, caso descobrisse.

O que eu faria sem Buma? Quem me ensinaria a usar o arco-e-flecha e reviraria os olhos para minha falta de jeito? Quem me ouviria xingar, reclamar e chutar sempre que estava com raiva, e se manteria calmo e depois falaria palavras sábias que sempre me confortavam? E quem cozinharia para mim? Ou me salvaria tantas vezes sem pedir nada em troca?

"Você não é um monstro." Buma falou. Eu me senti mal, odiei-me ainda mais, por não ser o que ele acreditava que eu era. Me levantei, irritado.

"Você não me conhece!" Gritei. "Você nem ao menos sabe por que eles me perseguem! Nunca se importou em perguntar, confiante nas suas intuições sobre mim, mas você está errado! Eu sou um monstro." Falei, a voz fraquejando a cada palavra. "Eu... eu matei meu melhor amigo..."

Eu disse isso e fugi dali. Saí da clareira, caminhando aleatoriamente, perdido por entre a mata, sem perceber para onde iria. Meus pensamentos me sufocavam, a lembrança de acordar de uma maldição e ver um amigo de infância assassinado por suas próprias mãos. Ou melhor, garras. Ser flagrado com ele morto, o pescoço arrebentado, enquanto você chora mais do que toda uma vida, embalando-o em seus braços.

Passei horas na mata, vagando sem rumo, socando troncos de árvores até que todos os meus dedos sangrassem, gritando e assustando os pássaros.

Chorando.

Comi frutas e masquei folhas de hortelã para tirar o gosto ruim da boca, bebi num riacho pequeno na mata e me lavei dentro dele, tentando afogar a tristeza e a culpa, mas em vão. Eu viveria eternamente naquela tormenta. Às vezes, eu pensava em me entregar. Eu merecia aquilo. Havia matado meu melhor amigo, filho do Rei. Eu merecia morrer.

Quando saí da água, enquanto recolocava minhas roupas, ouvi um barulho de folhas secas sendo pisadas e peguei minha espada, colocando-me em posição de ataque. Mas quem apareceu por entre os arbustos foi Escarlate. Um riso escapou por entre meus lábios junto a um sorriso involuntário.

"Minha pequena guerreira!" Exclamei, agachando-me e abrindo os braços. Ela correu e jogou as patinhas no meu peito. Eu a acariciei, parcialmente aliviado de minhas dores. "Boa garota. Boa garota." Repetia, enquanto ela passava o focinho gelado por minha bochecha, num carinho característico dela.

"Temos de ir embora." Falei. Havia pensado sobre isso durante toda a tarde. Eu não podia arriscar a vida de Buma agora que havia perdido o amuleto. Se eu me transformasse, poderia atacá-lo. Se eu o matasse também, não iria aguentar. Minha alma se quebraria em milhares de pedaços, de uma vez por todas. "Vamos atravessar o mar e encontrar um lugar seguro. Não podemos continuar em Verfëri."

Escarlate me encarou e eu quase pude escutar o que seus olhos alaranjados me perguntavam.

"Buma vai ficar melhor sem nós." Murmurei, acariciando na cabeça. "Melhor sem mim..."

Me pus de pé e guardei a espada na cintura. Eu havia sido um soldado do Rei, exatamente como aqueles que me perseguiam. Muitos do que queriam a minha morte eram, antes, meus amigos. Eu também iria querer me matar no lugar deles. Eu já sentia vontade disso... Talvez o tivesse feito caso não houvesse esbarrado em Buma acidentalmente.

Foi quando eu fugia de uma das perseguições, sem muita vontade, desejando internamente que me alcançassem. Buma surgiu como um espírito da floresta, segurou meus braços e me fez correr por caminhos escondidos na mata até que chegássemos a um esconderijo sob uma cachoeira. Desde então, ele partilhava de minha sina, sem nunca perguntar o porquê de eu ser caçado daquela maneira.

"Vamos." Disse à Escarlate, balançando a cabeça e seguindo numa direção que eu acreditava que me levaria para longe de Gknelvë e para perto do mar. Escarlate seguiu-me obediente, estava comigo há muitos anos e sabia que não conseguiria me dissuadir.

Eu me sentia mal por deixar Buma para trás dessa maneira, sem nenhum aviso. Meu coração se contraía a cada passo para longe dele, mas eu precisava pensar primeiro na segurança dele.

Foi quando já havíamos avançado vários metros que uma flecha rasgou o ar bem à frente de meu rosto e acertou a árvore ao meu lado, cravando-se no tronco. O cabo da flecha ficou na altura dos meus olhos arregalados, balançando displicente. Mais uns centímetros, e teria atravessado meu crânio, entrando por uma orelha e saindo pela outra.

"Não ouse me deixar para trás!" Ouvi a voz repleta de indignação.

Olhei para o lado e vi Buma parado a alguns metros, encarando-me com raiva. Seus olhos violeta brilhavam mais do que nunca. Ele se aproximou a passos rápidos e me empurrou contra o tronco grosso da árvore, pressionando o arco contra minha garganta até que eu tivesse dificuldade para respirar.

"Como pôde pensar em simplesmente partir dessa maneira?!? Como pôde sequer pensar em fazer isso comigo?!" Gritou. Meu queixo despencou ao ver seus olhos se encherem de lágrimas. Ficavam ainda mais bonitos tristes daquela maneira, porém isso não impediu que eu me sentisse péssimo.

"Você não entende..."

"Não, eu não entendo! Não entendo como alguém que esteve comigo por todo esse tempo pode simplesmente me dar as costas e pensar em me abandonar, como se eu não valesse nada! Como se nossa amizade não valesse nada!" Buma forçou o arco com mais força contra minha garganta, quase me sufocando.

"Eu perdi o amuleto... Não posso arriscar a sua vida. Buma, se eu fizesse algo com você... Eu nunca me perdoaria!" Tentei tocar-lhe o rosto, mas Buma se afastou abruptamente, de modo que quase caí ao chão. Ele me deu as costas, seus ombros rígidos.

"Você me toma por idiota? Eu sabia dos riscos quando o ajudei a fugir aquele dia... Acha que seu nome e seu rosto não estavam em cartazes por todas as vilas e cidades de Verfëri? Nav davekëm jekav klotëvien dane bo od menëv...!" Buma começou a resmungar na língua dele, completamente desconhecida aos meus ouvidos.

"Buma...?"

Ele se virou bruscamente para mim, seus cabelos ondulando com o movimento.

"Acha mesmo que eu não sabia que você é um lobisomem quando te salvei de ser morto aquele dia? Acha que eu me importo com isso?" Os olhos violeta de Buma faiscaram com uma mistura de raiva e mágoa. Meu queixo despencou.

"Você... Você sabia!" Eu estava em choque. "Por que nunca me disse?!?"

"Eu esperava que você me contasse. Eu achava que, em algum momento, conquistaria sua confiança. Mas não... Você preferiu me deixar para trás, no lugar de confiar-me seu segredo." Buma balançou a cabeça, fechando os olhos para que as lágrimas não caíssem, mas em vão, porque algumas escaparam pelo canto de seus olhos e escorreram pelas maçãs de seu rosto.

"Buma..." Meu coração se contraiu, e eu me aproximei dele, levando uma mão ao seu rosto. Ele continuou parado, com a cabeça baixa. "Me perdoe... Eu-Eu tenho tanto medo. Tanto medo de te perder... Eu já perdi meu melhor amigo," Eu sentia que começava a chorar também, molhando a barba por fazer que escurecia meu rosto. "Eu o matei, o matei numa lua cheia, tudo porque fui burro o suficiente para tirar o amuleto e tentar uma única noite de liberdade! Liberdade!" Eu ironizei, amargo. Eu segurava os ombros de Buma, sentindo todo meu corpo tremer, assim como as palavras que saíam angustiadas de minha garganta. "Uma liberdade egoísta que me custou meu melhor amigo, e uma vida inteira de remorso e culpa!"

Foi a vez de Buma acariciar meu rosto, enquanto me mirava compreensivo.

"Não foi sua culpa." Ele disse. "Você nunca teria matado seu amigo se estivesse consciente do que estava fazendo. Por favor, John, não se martirize."

Eu não pude evitar. Caí num choro desesperado, relembrando o momento em que voltara a forma humana e tinha Lorcan ensanguentado à minha frente, e outros soldados se aproximavam, flagrando-me com o corpo nu e a boca repleta de sangue.

Buma largou o arco e me abraçou, acalentando-me em seus braços. Eu era apenas alguns centímetros mais alto e um pouco mais corpulento, mas ele conseguiu me sustentar. Escarlate soltou algumas lamúrias, rondando-nos em preocupação.

"Eu tenho medo, Buma. Medo de acontecer tudo de novo. Se eu te perdesse... Se eu te perdesse..." Balbuciei.

Ergui o olhar, encontrando seus olhos expressivos. Meus braços rondavam a cintura dele e, de repente, tornei-me ciente da proximidade quente entre nossos corpos. Ele me olhava em retorno, sério, sereno e preocupado, já esquecido de toda a raiva que sentia de mim há alguns minutos.

"Você é tudo que eu tenho, John." Buma murmurou. "Eu perdi a todos, num ataque de um clã inimigo... Eu vivi sozinho, até te encontrar por acaso. Te salvei por puro reflexo, mas também porque meu irmão também era um lobisomem e eu sabia que você não teria matado o filho do Rei por sua vontade. Sabia que você não merecia morrer por algo que não foi culpa sua..."

Eu balancei a cabeça.

"Eu te amo." Murmurei, vendo seus lábios se partirem lentamente, com um suave tremor. A vontade de capturá-los e provar do gosto de sua boca encheu meu peito. Num rompante, me inclinei e o beijei, pressionando minha boca na dele enquanto levava a mão para segurar-lhe a nuca.

Senti as mãos dele se fecharem com força em meu casaco e cheguei a pensar que iria me empurrar por minha atitude impensada, mas, no lugar disso, puxou-me para mais perto, entreabrindo os lábios e correspondendo ao toque.

Um sentimento de alegria arrastou para longe toda a tristeza que me tragava pouco a pouco, dia após dia, e eu o abracei com mais força, deixando nossas línguas se encontrarem em um carinho repleto de cumplicidade. Entreabri os olhos e fiz um gesto para que Escarlate fosse dar uma volta, e ela felizmente obedeceu, saltitando por entre os arbustos.

Quando dei por mim, o deitava na grama, ignorando tudo ao redor, até mesmo os sons tranquilos do vento e pequenos animais. Meus lábios começaram a percorrer toda sua pele achocolatada e macia, com um ardor que crescia a cada novo descobrimento de corpo, gestos e suspiros.

A mata densa foi a única cúmplice da união única entre nossos corpos.

E nossas almas.

XxX

Eu avançava, correndo velozmente por aquele campo aberto, sentindo-me mais livre do que nunca. Escarlate me acompanhava, tentando manter meu ritmo, mas acabava ficando um pouco para trás. Em minha forma de lobo, eu era insuperável, o mais rápido dos animais.

Atravessei o riacho com um salto, enquanto minha raposa corria pela ponte, e entramos num bosque próximo à pequena vila daquela ilha, perto do Outro Continente e, assim que chegamos à clareira onde havia uma casa humilde, com uma chaminé da qual saía uma fumaça cinzenta, eu pulei e voltei à forma humana.

Buma estava na varanda, sentado numa cadeira que se dependurava no teto, lascando a ponta das flechas que usava para caçar. Ele ergueu o olhar para mim, que estava nu em frente à nossa simplória moradia, balançou a cabeça antes de morder o lábio carnudo e voltou a atenção ao preparo da flecha. Eu caminhei até a varanda e peguei uma bermuda que estava jogada sobre a cerca, colocando-a displicentemente, antes de pular para a varanda e roubar-lhe um beijo um tanto demorado.

"Fiquei com saudades." Murmurei.

"Você sumiu por alguns dias..." Ele comentou. Eu geralmente não ficava tanto tempo fora, mas daquela vez quis percorrer todos os arredores e descobrir se conseguiria me controlar sozinho por tanto tempo.

"Conseguiu se controlar esse tempo todo?"

"Sim!" Exclamei, contente. "Fui um bom lobo, não ataquei ninguém, apenas algumas lebres suculentas."

Buma assentiu.

"Foi bom termos parado naquela ilha... Aquela feiticeira realmente soube como te ajudar." Buma lembrou, referindo-se a uma ilha sinistra pela qual passamos enquanto atravessávamos o mar, fugindo de nossas antigas vidas.

"Eu não teria aprendido nada sem você." Murmurei, com um sorriso, enquanto me jogava na rede da varanda. Escarlate se acomodou perto de Buma, descansando a cabeça entre as patas. "Teria desistido na primeira tentativa..."

"Ainda bem que eu estou aqui para te dar uns puxões de orelha." Buma replicou tranquilamente, deixando um breve sorrisinho surgir no canto da boca. Eu o olhei, desejoso de arrastá-lo para dentro da casa e acabar com a saudades.

Foram noites e dias de agonia antes de eu aprender a me controlar. Eu havia ganhado outro amuleto, mas esse me permitia transformar em qualquer momento que eu quisesse, sem precisar da lua cheia. Buma insistira que eu precisava aprender a controlar o lobo, e não mais temê-lo, e não temeu correr ao meu lado quando eu me transformei as primeiras vezes à luz do dia, mesmo que houvesse o perigo de eu atacá-lo.

E eu tentei. Por várias vezes quase o ataquei, mas Buma, de alguma forma, conseguia fugir e, aos poucos, ajudar-me a ganhar controle, com palavras e gestos que alcançavam meu consciente adormecido, despertando-o para fazê-lo unir-se ao lobo. Como podia ser tão paciente e corajoso? Eu me perguntava. Como poderia confiar tanto em mim? Em meu sucesso?

Olhei-o naquele momento, concentrado em suas flechas, usando apenas uma calça larga pelo calor da tarde e deixando seu corpo bonito à mostra. Não aguentei e me levantei e, sem aviso, o peguei da cadeira, erguendo-o com um braço por trás de suas costas e outro por trás dos joelhos.

"John!" Ele exclamou, surpreso, mas eu já o carregava para dentro da casa.

"Eu estava lembrando aquela primeira vez em que você conseguiu me acariciar na forma de lobisomem. Pela primeira vez eu consegui realmente enxergar com os olhos de lobo, foi emocionante e, o que eu vi, antes de qualquer outra coisa, foi você. Acho que te amei ainda mais a partir daquele momento..." Contei, inclinando um pouco a cabeça para que nossos narizes se tocassem, e sorri, vendo-o fazer o mesmo.

Ele acariciou meus cabelos bagunçados, tragando-me e hipnotizando-me com seus olhos violeta. Nossos lábios se encontraram numa carícia lenta e saudosa, e logo eu o deitava na cama, para admirar seu peito nu e os músculos esguios que compunham seu corpo ágil.

Toquei-lhe o rosto sereno, como um rio que atravessa os obstáculos da vida com uma obstinação implacável. É... Essa é a definição mais condizente para o meu Buma.

"Eu te amo tanto..." Murmurei, sentindo aquele aperto bom no peito sempre que estava assim com ele. Buma ergueu o corpo e me beijou, com um carinho leve na minha bochecha.

"Eu também te amo, lobo..." Ele sussurrou, puxando-me para cima dele e envolvendo minha cintura com as pernas.

As roupas rapidamente foram jogadas no chão do quarto e nossos corpos nus uniram-se sobre o colchão, num vórtice de prazer, suspiros e cumplicidade. Gotículas de suor brotaram de nossas peles pelo ar abafado, de uma brisa morna que entrava pela janela ampla.

Havíamos decidido por Harveinest, uma área pacata do Outro Continente, para passarmos o resto de nossos dias. A clareira era algumas horas da vila mais próxima, dando-me liberdade para correr como lobo, e a Buma para caçar e ter paz. Ele não gostava de multidões, era alguém que apreciava os sons tranquilos da floresta e a amizade com os animais menos selvagens.

Eu tampouco sentia falta de viver nos grandes centros. Por vezes ia até a vila e bebia no bar, conversava com viajantes e descobria como estava o mundo além dos mares. A vila era portuária e recebia um bom fluxo de informações. Acreditava-se que o assassino do filho do Rei havia mesmo morrido, ao cair de um desfiladeiro junto com seu cúmplice.

O filho mais jovem do Rei, que agora deveria ter doze anos, preparava-se para se tornar Rei algum dia, no lugar do falecido irmão. Ouvir sobre Lorcan ainda me doía o peito, mas eu tentava não deixar a culpa corroer meu coração. Ter Buma ao meu lado ajudava-me com isso. Às vezes, eu me assustava de como era dependente dele, de como perderia a vontade de viver se não fosse por ele. De como minha vida voltaria ao exato momento em que ele me salvara de desistir e permitir que a morte me alcançasse.

O olhei, deitado contra meu peito, sua pele de ébano parecendo brilhar com os raios de sol que penetravam o quarto, depois de fazermos amor. Lágrimas vieram-me aos olhos, comprovando o quanto eu estava me tornando um velho chorão. Mesmo que estivesse com apenas vinte e sete anos.

Buma abriu os olhos e ergueu a cabeça, franzindo a testa ao ver meu rosto molhado.

"O que foi? Por que está chorando?" Ele perguntou, tocando meu rosto para limpar as lágrimas. Inclinei a cabeça para seu toque e suspirei, abrindo um sorriso.

"Idiotices..." Murmurei. Buma se aproximou, apoiando os antebraços um de cada lado de meu rosto, e passou a beijar as minhas lágrimas.

"Nenhuma lágrima tua é uma idiotice para mim." Ele disse, enquanto eu acariciava suas costas delgadas. Capturei seus lábios para um novo beijo, abraçando-o.

"Eu só estou feliz." Falei contra seus lábios.

"Chora porque está feliz?" Buma franziu a testa.

"Eu sei, sou idiota." Revirei os olhos. Ele riu, segurando meu rosto e roçando o nariz no meu. Havia começado a rir e sorrir mais, principalmente em momentos íntimos, e eu me percebia deslumbrado por ser quem trouxera à superfície esse lado mais descontraído dele.

"Não! Apenas bastante sentimental." Comentou, um tanto debochado.

"Sentimental, é? Vou te mostrar quem é sentimental..." Tentei começar a fazer-lhe cócegas, mas ele facilmente conseguiu escapar dos meus ataques. "Hei! Volte já para essa cama!" Exigi, sentando-me, assim que ele se levantou como um felino. Recolocou as calças e piscou para mim.

"Vem me pegar, lobo." Provocou, antes de correr e pular a janela, correndo para dentro da mata. Eu soltei um resmungo, mas acabei abrindo um sorriso e pulando também a janela, transformando-me em lobo antes de tocar novamente no chão.

Eu eventualmente o alcançaria.

E então nos amaríamos como da primeira vez, sobre a grama verde e com as árvores altas e silenciosas como cúmplices.

FIM


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Notas finais do capítulo

Brilis, minha flor, espero que tenha gostado. Foi algo bem despretensioso. Achei que, como lê minhas outras duas originais fantasiosas, deve gostar do gênero. ♥ Feliz aniversário! ;*