A Busca do ídolo de Ouro escrita por Fizban


Capítulo 6
Aldeia dos Acritós




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Mon Dieu! – Eleanor pensou. Ficou inerte por alguns minutos, não ouvia nada até receber um tapa daquele homem e recobrar a consciência. Ela não podia acreditar naquilo, não parava de pensar no que o Beto havia lhe dito, como queria que ele estivesse ali agora, Fernando saberia o que fazer.

O índio era grande, enorme na verdade, devia ter mais de dois metros e isso não era natural. Um pouco gordo, mas tremendamente musculoso como um pugilista. Tinha pinturas de onça em várias partes do corpo, desenhos no rosto que lhe davam uma aparência ainda mais ameaçadora e pequenos gravetos presos à face fazendo lembrar os bigodes de uma onça-pintada. O homem era uma fera selvagem pronta para o ataque. Possuía muitos colares e uma expressão muito forte e convicta.

A francesa olhou em volta e viu muitos índios como aquele, não tão grandes, mas todos altos e fortes demais para índios comuns. Usavam azagaias, bordunas, lanças e arcos longos como armas e ela via suas mulheres portando-as como se fossem os homens. Podia ver os mais velhos que sempre estavam com algum pequeno animal, como um macaco ou papagaio.

Aquela aldeia era razoavelmente grande. Eleanor imaginou que seria exatamente redonda se vista por cima. Suas ocas aparentavam ser feitas de palha, mas eram de pau a pique por dentro. Existia uma grande maloca no centro de onde saía um cheiro tão forte de ervas que ela podia sentir facilmente. Via peles de vários animais sendo curtidas e mulheres preparando algum tipo de bebida que era muito disputada pelos indígenas.

Tudo isso foi percebido pela arqueóloga e mesmo estando com uma forte dor de cabeça, Eleanor percebeu que não havia nenhuma criança na tribo.

Aquele índio olhou para ela com fúria, erguera-a pelos cabelos e aproximou o rosto em um gesto que ela interpretou como se ele a estivesse cheirando, estudando-a cuidadosamente. O homem bufou fazendo uma expressão de total desprezo, como se a francesa não fosse nada para ele, e então a jogou novamente naquele chão duro. Eleanor concluiu que seu agressor se tratava de um selvagem, um animal raivoso e violento.

- Abá-pe endé? – disse o índio. – Aba-pe endé? Mamõ-pe ere-îkobé?

Ele estava ficando com raiva e LeBeau não entendia nada do que aquele selvagem dizia, lembrou de Beto novamente. Ela achou melhor falar, mesmo que ninguém entendesse, e começou:

- Eu não entendo o que...

O índio desferiu-lhe um poderoso tapa com extrema violência. Eleanor caiu e cuspiu sangue, a dor em sua cabeça voltara agora com toda a força, um som agudo se elevou aos sons da aldeia. Todo seu corpo doía e era penoso até mesmo respirar. Por um instante ficou zonza, quase não percebeu que o índio começou a falar de novo:

- Xe Ucrarí. Xe morubixaba supé!

- Abá-pe endé? Mamõ-pe ere-îkobé?

Ele a ergueu pelo pescoço com um só braço e apertou fortemente, sufocando-a. Quando a dor era quase insuportável, quando ela estava quase desmaiando, ouviu um grito e o índio largou-a rapidamente, fazendo com que Eleanor caísse ruidosamente no chão mais uma vez.

A arqueóloga viu outro índio, bem mais velho, na verdade aparentava ser o mais velho que havia em toda aldeia. Possuía longos, mas poucos, cabelos brancos alvoroçados. Andava com a ajuda de uma espécie de cajado com uma cabaça em sua extremidade superior e todos abriam caminho para ele, pois pareciam respeitá-lo muito.

O velho olhou com serenidade para o índio que estava com Eleanor e disse:

- A’ani! A’ani xo’ene!

- Nde apypyk a’e!

O índio olhou para o idoso com raiva, mas resolveu não desafiá-lo e se afastou. A jovem francesa até pôde perceber certo medo em seu agressor e olhou para o ancião com uma maior curiosidade; ele já estava se aproximando dela com um grande sorriso. Passou a mão em seus cabelos com delicadeza e a colocou gentilmente sentada. Aquele velho homem inspirava tanta confiança que Eleanor quase esqueceu sua dor e medo. Quando ela estava mais calma ele finalmente começou a falar:

- Sou eu Rarití. Sou eu paîé!

- Um pajé? Você é um curandeiro – respondeu ela.

- Deve ocê tirar culpa do morubixaba, muito bravo com seu!

- Eu não fiz nada para seu chefe! Por que ele está bravo comigo?

- Ucrarí bravo por seu vir aqui, comer aqui, dormir aqui e falar que não Uirapuru, mas depois ir tabu pegar Uirapuru.

- Meu não, quem quer pegar o uirapuru, é o Mike?

- Aîuru-îuba. Como ocê homem, cheio de gente não aqui!

Ela conhecia essa expressão, aîuru-îuba. Era dada aos franceses pelos índios da Confederação dos Tamoios quando o Rei Henrique II da França determinou uma invasão ao Brasil logo no século XVI. No entanto, não deveria ter outro francês ali, tudo isso era muito estranho.

- Não, eu não estou com eles! – disse Eleanor. – Tem que explicar que eu vim com outros, que vocês mataram, Dieu. Eles eram boas pessoas e vocês mataram todos.

- A’an! Ocê aqui entrar tabu, pegar sagrado Uirapuru e trazer mal pro anama, ocê destruir Acritós!

- Não eu...

A arqueóloga parou porque Rarití estava certo. Realmente tinha vindo ao vale para pegar o Ídolo, veio para levá-lo. Na ótica dos índios Elenor iria roubá-lo deles, e por suas crenças trazer a desgraça para todo o seu povo. Ela ficou triste, lembrou-se do que Beto dissera no dia da formatura. Um ladrão de tumbas simples!

O velho índio a ergueu e a levou para a grande maloca que ficava no centro da aldeia. Lá dentro a francesa pôde ver várias crianças, todas doentes, com chagas e dores horríveis. Ela olhou para o sábio pajé já sabendo o que ele iria falar.

- Olho ocê nos curumins? – perguntou o indígena idoso. – Eles assim antes de todos por serem mais fracos!

- Eu sinto muito, Rarití!

- Eles assim só por ocês aquí, só por ocês perto Uirapuru.

- Eu não sei o que dizer!

- Ocês levar Uirapuru, mal passar todos!

Uma súbita dúvida e tristeza tomaram conta dela. O que estava fazendo? Ela não podia levar o Ídolo de lá, mesmo com os maus tratos que recebera, mesmo com seus hábitos selvagens, Eleanor se apiedou daqueles índios quase acreditando que o Uirapuru realmente estava ligado à saúde deles, mas isso não importava, pois seu problema maior agora era como sair de lá e encontrar Alex Michael Carter. Não tinha mais certeza do que faria com o Uirapuru, mas não deixaria aquele canalha pegá-lo.

Ao saírem da maloca a arqueóloga viu o índio que a tratara com selvageria, o homem que a espancara e a prostrara. O morubixaba que estava com um Ibirapema, um tacape sagrado usado para o ritual por alguns índios brasileiros antropofágicos. É essa arma que desfere o último golpe no prisioneiro antes da aldeia devorá-lo. Estava junto com uma linda mulher com pinturas semelhantes às do Rarití. Como ele, usava um bastão com cabaça, mas de menor tamanho, mais parecido com um cetro do que um cajado.

O velho percebeu o medo de Eleanor e disse tranqüilizando-a:

- Eles caça seus, caça aîuru-îuba. Eles mataram Acrítos, eles valor, agora passam pra esse pra anama.

- Quem são eles?

- Ele Ucrarí, o morubixaba da aldeia, um chefe de guerra. Ela Anakeá. Ela paîé mais pequena!

- Quem é o índio que me trouxe aos pés de Ucrarí?

- Ele não, ela! Emanuaçu, ela pega ocê na mata! Grande honra ocê por Emanuaçu! Grande guerreira ela! Agora sempre cuida aîuru-îuba.

- Sim, eu sou francesa! Meu nome é Eleanor!

- Eleanô?

- Não! EleaNOR!

- Sim! EleaNÔ!

- Ah, il ne manquait plus que ça! – disse ela sem esperança que o índio aprendesse seu nome corretamente. A arqueóloga teve novamente uma vertigem e só não caiu porque o velho a segurou. – E você Rarití? Por que é gentil comigo?

- O que ser gintil?

- Por que é bom comigo?

- Té! Porque ocê é...

Eles foram interrompidos com a chegada de Emanuaçu, que falou:

- Xe erasó a’e, Ucrarí nhe’eng!

- Umã-me-pe?

- Morubixana oca!

O velho índio olhou para Eleanor e falou:

- Ocê ir agora! Emanuaçu levar oca de Ucrarí! Ocê fica bem lá!

- Não, eu não quero ficar com ele, por favor!

- Umã! – gritou Emanuaçu e puxou Eleanor pelos cabelos.

Eleanor já estava cansada de se prostrar a aqueles índios, ficou firme e passou uma rasteira na jovem guerreira que caiu no chão. Todos os Acritós pararam para olhá-las, mais animados do que assustados com a sua reação. Logo ela sabia que eles não iriam interferir e apesar da dor que sentia ficou de pé ameaçadoramente para Emanuaçu.

A índia se levantou com fúria no olhar, agora a francesa pôde perceber o tamanho daquela guerreira. Devia ter aproximadamente um metro e oitenta, como os outros estava pintada de onça, era incrivelmente bonita e forte. Tinha o corpo bem desenhado e pernas muito longas. Estava vestida apenas com uma espécie de pele que lhe servia como a parte de baixo de um biquíni. Trapos de pano envoltos em cada um dos joelhos e cotovelos completavam toda a sua prática indumentária.

A jovem arqueóloga sabia que aquela lutadora a partiria ao meio, assim resolveu atacá-la primeiro, pois julgava que por seu pequeno tamanho Eleanor seria mais rápida. Partiu pra cima de Emanuaçu e tentou golpear seu rosto. Como uma onça selvagem, a índia esquivou-se facilmente e aproximou seu rosto ao dela encarando-a, desferindo um poderoso golpe com sua própria cabeça rugindo para a francesa, que simplesmente desmaiou.

Eleanor começou a acordar e a primeira coisa que percebeu foi um suave som de flauta tocando uma canção desconhecida para ela. Uma mão macia acariciava os seus cabelos dando a ela um conforto tão grande que a arqueóloga quase dormira novamente. Foi então que ela abriu os olhos e viu que Anakeá estava junto a ela na rede e Fernanda próxima, tocando sua flauta.

A esposa do morubixaba devia ter uns quarenta anos, mas era muito bonita ainda, tinha um lindo corpo e olhos que apenas traziam paz a Eleanor. Como todos ela usava pinturas e adereços de onça, mas apenas como Rarití ela usava uma araçóia, uma saia de palha que só os pajés usavam.

- Xe por posanga ocê e fica bom! – falou a índia.

- Obrigada! Você é a esposa de Ucrarí, não é?

- Pá! Esposa de morubixaba é eu.

- Você é como o Rarití, não me machuca?

- Eê! Rarití acha ocê Maramuzan, eu não, mas ele saber mais eu!

- O que é isso?

- Visão de longe, Maramuzan uma vez aqui e agora de novo, ele não deixa Uirapuru sair, ele enfrenta seu anama!

- E por que você acha que não sou eu?

- Eu já vi Maramuzan, ele...

Anakeá parou de falar olhando para a entrada da oca. Eleanor viu que era Emanuaçu que a vigiava sempre, como o pajé disse que faria. Como não viu mais ninguém além delas a francesa resolveu perguntar a Fernanda:

- Quem a vigia, Fernanda?

- Ninguém! – disse a loira parando de tocar. – Algo a ver com a flauta, eu acho!

- Amiga sua fala com os Deuses – disse a mulher indígena. – Faz sons com seu sopro e fala com Tupã.

Para os Acritós quem tocava algum instrumento musical podia falar com seus Deuses e por isso a jovem antropóloga foi poupada dos maus tratos que Eleanor sofria. Aquele era o único alívio que as duas mulheres brancas tiveram desde que entraram naquele maldito vale.

Eleanor pensou que destino teria Fernanda no meio daquilo tudo. A francesa a achava ingênua demais para ficar naquele lugar. No entanto, ela era uma antropóloga afinal de contas e já devia estar acostumada a viver entre nativos. Talvez até gostasse disso, pois parecia bem calma agora.

Repentinamente uma forte explosão assustou-as, elas foram à porta da oca e viram que a paliçada que cercava a aldeia estava destruída e pegando fogo, os índios estavam assustados porque nunca tinham visto algo assim, muitos gritavam que era obra do Boitatá, a gigante cobra de fogo, mas Eleanor sabia que podia ser simples dinamite, Anakeá olhou pra ela e disse:

- Ocê aproveita agora e foge, encontra Maramuzan e traz ele pra aldeia, não deixa seus pegar Uirapuru!

- Vamos Eleanor! – disse a amiga. – Vamos logo sair daqui!

- Vão logo! – exclamou Anakeá. – Tome isso seu!

A índia lhe entregou suas pistolas, Eleanor pegou-as e correu junto com a amiga.

Entretanto Emanuaçu já estava esperando por isso e logo se pôs a perseguir as duas. Em um ato de desespero, Fernanda se jogou contra a índia e as duas se engalfinharam no chão.

- Vá! – gritou a jovem loira. – Saia deste lugar maldito!

Eleanor fugiu em meio à confusão, passou pela barreira destruída e correu, correu por várias horas pela mata sem destino, com medo. Estava preocupada com a colega, mas continuou sem olhar para trás.

Ela demorou em parar e quando o fez, simplesmente caiu no meio da floresta sem saber onde estava.

Mesmo do jeito que se encontrava, exausta, conseguiu ouvir o som de alguém se aproximando, a francesa não podia acreditar, será que era Fernanda que escapara ou era a maldita da Emanuaçu? Não se importava mais, até queria que fosse ela, queria acertar as contas com aquela índia, Eleanor se levantou e olhou para quem vinha em sua direção...


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Notas finais do capítulo

Nota do Autor: Há muitas falas em idioma indígena aqui, muitos podem ter ficado perdidos, mas era isso mesmo que eu queria que acontecesse, já que Eleanor não sabe falar esse idioma e queria que os leitores se sentissem como ela.
Eu usei o Tupi para criar os diálogos e eles realmente têm significado, mas nada que estrague a estória, são coisas como: “Quem é você?” ou “De onde você vem”, ou seja, nada demais.
O que realmente pode ter ficado confuso foi quando o Pajé fala em português carregado de sotaque e erros gramaticais, mas ainda assim, prestando bem atenção, acho que se pode entender tudo que ele fala!
A natureza dos índios é obviamente irreal, não existem índios tão grandes e fortes como descrevo, isso só aumenta o ar sobrenatural do vale, mas pensando bem nada impede que realmente tenham existido os Acritós.
A idéia de a aldeia ter crianças enfermas é uma clara homenagem ao filme Templo da Perdição, mas diferente deste, os índios foram bem mais violentos com Eleanor que os indianos com o Indiana Jones...



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