The Library escrita por themuggleriddle


Capítulo 8
Crime e Castigo


Notas iniciais do capítulo

Dedico esse capítulo ao meu querido professor da faculdade que disse que português e russo não são línguas, mas meros meios de comunicação, e também lanço à ele o desafio de ler um poema do Maiakovsky em inglês e português e depois ver qual tem mais sentimento.



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Tentar resumir Tom Riddle a um livro só seria muita pretensão. Tom merece uma prateleira inteira para ele e, realmente, é o que ele tem em meu quarto: uma prateleira inteira apenas com livros escritos pelas criaturas mais frias e, ao mesmo tempo, mais sentimentais que existem nesse mundo. É isso o que ele merece e é isso o que ele ganhou.

A primeira vez que vi Tom Riddle foi no Expresso de Hogwarts, quando ainda tinha onze anos. Mal sabia eu que aquele menino magricela e sério viria a ser a pessoa mais importante da minha vida. Naquela época, Tom era apenas o “sangue-ruim da Sonserina”, como nós o chamávamos por não sabermos nada sobre seus pais e seu nome ser estranhamente trouxa. Admito que fizemos os primeiros anos do pobre garoto um inferno naquele colégio... Ou melhor, eu deixei que Avery e Lestrange me fizessem fazer com que aqueles primeiros anos dele fossem um inferno. No fundo, eu tinha um certo fascínio por aquela criatura calada e indiferente que Riddle era, aquela sombrinha no fundo da sala que parecia absorver tudo o que acontecia à sua volta.

E foi por causa desse fascínio que tentei me aproximar dele. Foi uma tentativa falha, no terceiro ano, quando o encontrei falando com uma cobra e acabei tendo a dita cobra sendo atirada contra mim em um tipo de acesso de raiva que o garoto teve ao me ver o espionando. Isso instigou ainda mais a minha curiosidade acerca dele, o que resultou em várias horas correndo atrás de Tom Riddle e tentando arrancar ao menos uma palavra dele. Acho que ele deve ter se cansado de me ignorar, pois, depois de alguns meses, Riddle cedeu às minhas insistências e me correspondeu em uma conversa sem graça sobre a aula de Adivinhação que ele cursava. Eu não fazia Adivinhação, achava um negócio falho, mas ele parecia ser fascinado por tudo aquilo.

Com a chegada do quarto ano, a Sonserina acolheu Tom Riddle de braços abertos. Ele era um de nós, um puro-sangue, mesmo que sua família não fosse muito conhecida... Dorea nos confirmara a história. Ela havia conhecido o Sr. e a Sra. Riddle, um casal adorável, ela dizia. E, sendo ela a pequena e querida Dorea Black, nós acreditávamos no que ela dizia, sem saber, é claro, que tudo aquilo não se passava de uma memória inventada pelo próprio Tom que, com catorze anos, já tinha uma habilidade incrível para com Legilimência. Acho que até hoje eu sou o único que descobri isso e tal coisa só aconteceu por acaso do destino, ao vê-lo andando por Londres como se fosse um trouxa qualquer. Até hoje não sei como não acabei pulando no pescoço daquela criatura na noite em que ele me admitiu o que havia feito como se fosse a coisa mais normal do mundo. Chamei-o de ‘sangue-ruim’ e ‘escória’, recebi um belo de um tapa no rosto – que, aliás, me surpreendeu, porque Tom era uma criatura pequena e eu não acreditava que ele possuísse tanta força naquelas mãos magras -, quase fui amaldiçoado e depois ainda tive que agüentar alguns dias como alvo dos olhares furiosos de Riddle. Ele era sentimental, no fundo. Sentira-se traído ao ser chamado de nomes e estava magoado. Mas eu também me sentia da mesma forma, pois não acreditava que ele conseguira passar um ano sem me contar a verdade... Veja bem, eu era fascinado por Tom Riddle e acho que, sem querer, preenchi o lugar vazio deixado por Alphard com ele, mesmo que Tom viesse a ser muito mais importante do que Alphard, mais tarde. Eu também me sentira traído quando descobri que meu amigo – talvez eu fosse o único que o considerasse como tal – tinha mentido de forma tão descarada para a minha pessoa.

Fizemos as pazes, é claro. Tom era carente e eu, também. É claro que ele demonstrava isso bem menos do que eu, mas, sim, eu sabia muito bem que Riddle necessitava de atenção e que ele sofrera com a falta desta nos seus primeiros anos em Hogwarts. Talvez isso fosse fruto de ter vivido a sua infância em um orfanato, disputando a atenção de moças que trabalhavam lá com as outras inúmeras crianças miseráveis que lá viviam. Depois disso, acho que Riddle passou a confiar mais em mim: ele entendera – ele sempre entendia o que se passava na cabeça dos outros, com ou sem Legilimência – que, agora, eu não poderia estar ligando menos para o fato de o pai dele ser um trouxa... Bom... Era um trouxa, já que também descobri que meu amigo tinha se tornado um assassino há pouco tempo. Tom sabia que eu não iria espalhar o seu segredo e que eu não iria fazer graça quando ele tivesse seus ataques de pânico por causa do pai morto. As pessoas acham que o Lorde das Trevas sempre foi aquela criatura impiedosa que ele é hoje, mas não sabem como ver o seu pai morrer pelas suas próprias mãos afeta a cabeça de um rapaz de quinze anos. Tom enlouqueceu aos poucos depois disso e eu era o único que sabia disso e que se prontificava a ficar por perto quando isso acontecia.

Enquanto Riddle crescia para se tornar o Lorde das Trevas, ele deixou de ser uma sombra e passou a ter uma. Abraxas Malfoy estava sempre por perto, sempre tendo certeza de que a sanidade de seu amigo não se despedaçava aos poucos, sempre encobrindo as suas mentiras, sempre o financiando... Afinal, é para isso que servem os amigos, não? Chegava a ser engraçado a maneira como as pessoas nos viam em nosso último ano. Se meu filho ouvisse os rumores que circulavam por aquele castelo sobre como o pai e o Lorde das Trevas podiam muito bem ser amantes devido ao tempo que passavam juntos... Não era verdade, é claro. Tom era concentrado demais em seus planos para pensar em coisas fúteis como amor ou sexo e eu, apesar de o admirar e, talvez, até o amar como um amigo, só o considerava como isso mesmo: um amigo. Mas éramos próximos. Tom confiava em mim e eu me sentia imensamente honrado com essa confiança que me fora concedida.

Ao nos formarmos, eu continuei o ajudando, é claro. Dinheiro não iria surgir da noite para o dia em sua conta vazia do Gringotts e o dinheiro da família de seu pai fora para um velho conhecido trouxa dos Riddle. Ele trabalhava em uma lojinha caindo aos pedaços na Travessa do Tranco e o que recebia lá era somado à quantia que eu lhe emprestava quase sempre que ele precisava para alguma pesquisa ou coisa parecida. Ele odiava aquilo. Odiava ser lembrado de que era pobre e de que precisava da ajuda dos outros para poder dormir de estômago cheio. Mas eu também não poderia deixá-lo abandonado nas ruas de Londres com aquela miséria que ele ganhava na Borgin & Burke’s.

Ainda assim, acho que a maior traição que ele fez contra mim fora quando ele sumiu do mapa. Foi súbito. Uma noite eu o vira saindo de sua loja na Travessa do Tranco e, no dia seguinte, ninguém mais ouvira falar dele. Foram quase quatro anos esperando uma notícia e, quando esta chegou, foi por meio de uma carta e um livro. Tom estava vivo e bem, viajando pela Europa e fazendo pesquisas. Estava na Rússia, na companhia de um velho conhecido meu, Antonin Dolohov. Foi um alívio ler aquela carta com aquela letra que me era tão conhecida. Depois disso, levou mais algum tempo para eu o ver novamente e, até hoje, eu não sei se o que voltou do continente foi o Tom Riddle que eu conhecia ou alguma coisa diferente. O que voltou foi um homem magro e macilento de olhos escarlate que falava sobre torturas e mortes, que sabia os segredos mais sombrios das artes das trevas e que tinha sua sanidade mental completamente degenerada. Ainda assim, quando estava longe de seus Comensais, ele voltava a ser o Tom que eu conhecia, o que me trazia um certo alívio.

Eu continuava fiel à ele. E, depois de mim, meu filho também jurou fidelidade ao Lorde das Trevas. Nós vivíamos para ele, até mesmo Narcissa, que fora puxada para aquela vida meio que sem querer. Eu podia não sair torturando os outros como seus mais novos e ousados Comensais, mas era eu quem ouvia seus planos e o mandava parar de ser uma criança teimosa quando ele insistia em agir como tal. Era engraçado ver isso, pois, quando em Hogwarts, era ele quem me dava tais sermões... “Pare de ser criança, Abraxas!”... Quantas vezes eu ouvi isso! Ainda posso, na verdade, escutar a voz de Riddle em meus ouvidos, irritado com alguma brincadeira boba que eu fizera com ele.

Durante os anos em que passei casado com Delphine e, depois, quando virei viúvo, fora a existência de Tom que fizera com que eu me mantivesse firme. Por mais sem graça que a vida parecesse, por mais inútil que parecesse continuar com toda aquela ladainha repetitiva no Ministério, eu me lembrava de tudo o que Riddle planejara quando estávamos no colégio, lembrava-me de como nós dois sonháramos com tudo o que ele alcançaria, lembrava-me de como ele precisava de mim para se manter são durante essa sua conquista. Era uma promessa distante, a tal aventura que Dorea conseguira com Charlus Potter, eu a procurava na figura de Riddle. Ele, na verdade, oferecera-me tal coisa antes, mas eu recusei, como já disse, por medo de abandonar o lugar que me dava conforto. Agora, eu esperava que ele voltasse para me mostrar como seria essa aventura que ele havia me oferecido e que eu, estupidamente, recusara.

Agora, sabendo que Tom Riddle fora a figura que mais influenciara a minha vida, é fácil de entender a razão de eu não conseguir resumi-lo à um só livro como fiz com meu pai, meu filho, meu amigo de infância, minha nora e a princesinha Black... Tom era a prateleira mais importante em minha biblioteca.

Veja bem, quando éramos mais novos, nós costumávamos brincar sobre idiomas. Eu falava francês e ele se ressentia de só falar inglês – ofidioglossia, ele dizia, não contava. Foi nessas conversar sobre línguas, pois Tom gostava de jogar tempo fora falando sobre coisas desse tipo, que descobri que Tom Riddle, na verdade, sabia uma coisa ou outra de russo, pois um dos funcionários de seu orfanato era um homem russo que, vez por outra, lhe ensinava algumas palavras soltas. O interessante era que o russo soava natural quando ele falava, as palavras complicadas e com sons estranhos pareciam deslizar por sua língua com tanta naturalidade quanto o fariam na boca de um verdadeiro russo. Uma vez, fazendo piada, eu dissera que, se francês era a língua do amor, o russo era a língua do inverno... E o que era mais perfeito para alguém como Tom Riddle do que uma língua feita para aquela estação fria? Tom era o inverno, logo, ele merecia aquele idioma.

E foi assim que percebi que Riddle não era um livro apenas, mas sim todos os livros e contos e poemas escritos por falantes dessa língua gelada. Tom era Anna se arriscando contra as convenções de sua sociedade ao deixar Kariênin e ir atrás de Vronsky; Tom era Raskolnikov, em sua insanidade que atraía e se afunilava de tal maneira que sempre devíamos ter cuidado para não nos afundarmos nela; Tom era os Karamazov em toda a sua escória, devassidão e loucura – e era até mesmo o inocente Alyosha com sua fé cega; Tom era os personagens de Tchekhov, tão simples de longe e tão complexos quando olhados de perto; Tom era as palavras de Maiakovsky, a Lilitchka e o flautista que tocava em sua própria vértebra a música do seu fim; Tom era Yuri Zhivago e Lara; Tom era Smurov, procurando saber quem ele mesmo era; Tom era Dolores, o pecado e a alma de tantas pessoas, minha, inclusive... Tom era as palavras escritas por todos esses infelizes escritores que nasceram naquele canto gelado e isolado do mundo, palavras nascidas da angustia dessas pessoas e do excesso de sentimentalismo e entendimento da alma humana que eles tinham. Tom era toda a língua russa: estranha e difícil, mas ao mesmo tempo bela e rica de tal maneira que fazia o nosso inglês, e até mesmo o meu querido francês, soar sem graça. Tom era palavras compridas e letras estranhas que mudavam de som dependendo do lugar aonde estavam metidas na palavra... Ele podia ser um O, mas soaria como A caso fosse necessário. Ele também era aquelas letras que ninguém sabia pronunciar direito, como o Ui, o Kha ou o Zhe. Tom era a criatura mais complicada que eu conhecia e, por isso, merecia ser lembrado todas, absolutamente todas, as vezes nas quais eu pegava um desses livros.

Tom foi o início e seria o fim de muitas coisas, não só no mundo bruxo, mas como na minha vida. O tempo que passamos juntos podia ser considerado como algum tipo de paraíso pessoal, um paraíso cujo céu tinha a cor das chamas do inferno, mas, ainda assim, um paraíso. Aliás, se devo à alguém o fato de hoje poder lembrar tanto dos outros por meio de livros, esse alguém é ele. Pequeno Tom e seu livrinho de poesias que falavam sobre moças de olhares penetrante, homens que tocavam músicas em vértebras e erguiam seus crânios às memórias e balalaikas que como um balido abalam a balada da noite de gala, louca a balalaika... Tom e seu livrinho curioso que me fez ficar interessado por aqueles trouxas curiosos que escreviam coisas bonitas. Eu era um Malfoy e fora ensinado, desde cedo, a gostar de coisas bonitas. Tom, sem querer, me mostrou que as palavras dos trouxas eram bonitas. Ambos eram, na verdade: Tom e suas palavras, Tom e seus temas, Tom e seu russo, Tom e seu coração gelado, Tom e sua loucura... Tudo isso, Tom Riddle como um todo, era como um romance russo, tão dramático e poético que chega a doer por dentro quando o lemos. Tom era assim... E talvez fosse por isso que afora tal criatura, afora o olhar daquela bagunça de palavras e loucura, nenhuma lâmina me atraía mais com o seu brilho.


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