O Mapa Cor-de-Rosa escrita por Melanie Blair


Capítulo 33
Pressentimento


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo já está pronto desde há um mês atrás. Mas o computador avariou e eu, que normalmente escrevo os capítulos em papel antes de passar para o computador, decidi não o fazer. O karma é estranho... Espero que me perdoem, de novo, e que gostem do capítulo.



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POV-ON Lysandre

O meu pai tossiu, não muito discretamente, tentando fazer-me voltar à realidade. À mesa. Outra vez.

– Os ovos não estão a teu gosto, meu filho?- perguntou-me.

Olhei-o, já que era assim que as boas maneiras me obrigavam. E ali estava ele. O rei. Sublime e majestoso. Marido, pai de família, detentor da justiça, legislação e execução de todo um reino. O rei. “Suma Majestade” ao pequeno-almoço, ao almoço, ao jantar (nunca “Querido pai”). Representação de tudo aquilo que um homem deve ser (mas nunca “Meu pai”). Ainda assim, sei que mesmo se alguém entrasse nesta sala sem saber quem ele era, sem saber que ele era o rei, percebê-lo-ia. É uma auréola de confiança, uma mancha de poder,… algo que me faltava. E talvez faltasse sempre. E, do outro lado da sala, deste lado, estou eu: incapaz e pequeno comparado àquele “Sol”.

Esta realização furiosa fez com que eu revirasse os olhos, envergonhado. A minha mãe considerou este gesto como uma admissão.

– Refaçam-nos!- ordenou às criadas que, frenéticas com a súbita chamada de atenção, por pouco não tropeçaram em si mesmas.

– Não, não, os ovos estão óptimos!- apressei-me a dizer, comendo rapidamente os ovos, para alívio das criadas.

Voltámos, de novo, ao silêncio quotidiano e já considerado normal. Não o conhecia de outra maneira. Após um “Bom-dia”, sentávamo-nos e, a partir daí, nada. Por vezes, um raro “Está do teu agrado?” ou “A comida está boa!”. Raro. Talvez porque sabíamos demais sobre a vida uns dos outros. O que era de esperar: tínhamos os olhos de toda a gente virados na nossa direção. Se não éramos esmagados pela imprensa, éramos escrupuleados por más-línguas da má-gente. E quando algo se escapava, algo estava errado.

Por alguma razão, hoje era um desses dias. Um dos dias raros.

– E como vão os teus estudos?- continuou o meu pai.

Coloquei os talheres no sítio próprio, o sítio onde me ensinaram como “correto”, e ergui o olhar, não totalmente, nunca totalmente.

– Vão bem, pai, vão bem.

Sem mais, continuou a comer. Esperei até ele terminar, até à saída dele da mesa para eu fazer o mesmo, porque, como tudo o resto, fui ensinado que tal era o correto. Dei as minhas despedidas à minha mãe e encaminhei-me para a sala de trabalhos.

Depois de alguns corredores percorridos, encontrei-o. Sem quaisquer preocupações, sorriu-me, como se nada de mal se passasse.

– Então, irmão, como estavam os teus ovos de hoje?- perguntou-me.

– Claramente melhores que os teus.- respondi-lhe, ao ouvir o roncar do seu estômago. – Quando pretendes acabar com este teu jogo?

– Quando me derem aquilo que mereço. Liberdade. Não peço muito, não achas? –confessou.

“Liberdade”. Desde quando não me sentia livre?

– Eu também anseio por liberdade, mas não me deixo levar por jogos infantis.

Enquanto entrávamos na sala enorme, barroca (que a partir de algum tempo deixa de impressionar), lembrei-me. Da última vez que senti liberdade. Lembrei-me dos pássaros, das árvores, dos veados, das andorinhas, dos verdes, dos castanhos…e os azuis! O azul daquele rio. De um vestido vermelho floral, de um corpo pequeno, quente mas frio, nos meus braços. A água a correr-lhe pelos fios de cabelo… a cara dela envergonhada e carinhosa. Ela, ela, ela. Com um sorriso, com um toque, fizera-me sentir como se tudo pudesse correr bem, como se fosse eu, e não um título qualquer, o mais importante…

– Eu não diria isso dessa forma. Eu não “jogo”, eu faço alguma coisa. Enquanto tu não fazes nada! Apenas te sentas, estudas, fazes o que te mandam! E dizes que queres mudar as coisas.- disse-me, interrompendo os meus pensamentos. - Ainda nem deves saber o que é verdadeiramente liberdade… Nunca a sentiste, nunca a tiveste, nunca te aventuraste com ela…

Lembrei-me de uma rapariga encharcada com os braços abertos na minha direção, como se estivesse pronta para me acolher, para me confortar… para me libertar. “Aqui tens a tua liberdade: na água, perto de mim.”, tinha ela dito.

– Estás enganado.- disse ao meu irmão.- Eu já a encontrei.

Corri até à minha secretária e peguei num panfleto há muito esquecido. Senti a minha força, a minha espectativa, a aumentar.

– Ajudas-me a fugir do palácio?- desafiei-o.

POV-ON Castiel

Andava extremamente irritado. Ou pelo menos era isso que me diziam. Eu não acho que esteja assim tão transtornado. É verdade que cada pedra que encontro no meu caminho é mandada para o outro canto do mundo… Mas que posso eu fazer? Elas escolhem logo o meu caminho, o meu caminhar, para interromper.

Feliz estou por ter encontrado novos gostos. Se a “depressão” nos leva a gostar e a apreciar, devidamente, um bom rum, estarei depresso o resto da vida, se assim o puder decidir. Mas não sou como tantos que sabem apreciar tanto um bom rum como um bom par de pernas. Até porque ressacas e barulho (feito pelas histerias das donas dos bons pares de pernas) não dão grande combinação. Prefiro apreciar um bom rum e umas boas curvas. Uns bons ziguezagues, uns bons contornos, que tanto desaparecem como desaparecem… O mar e as suas curvas… Com mais curvas que certas mulheres… Mas não me deixo deliberar muito nisso!

Se bem que também estas curvas me dão sérias dores de cabeça. Demasiadas. Depois de mais uma golada de rum, levantei-me da areia molhada. O movimento súbito fez-me perder o equilíbrio e cair na água.

– Quem foi o filho da mãe que me empurrou?- perguntei ao vazio. Não encontrando ninguém para dar um soco, cambaleei até à estrada, molhado e podre de bêbado.

Enquanto ponderava as hipóteses de quem poderia ter-me empurrado, vi-me à frente daquele bar. Parece que as minhas pernas tinham-me levado ali como se um reflexo me tivesse possuído. Há algum tempo que não vinha ali. Ainda passava tempo com o puto, mas era sempre ele que me procurava. Nunca tive um irmão, mas percebia, ou tentava perceber, a solidão que ele estava a sentir. Perguntei-me se devia entrar e questionar-lhe um simpático “Como estás?”. Depois lembrei-me do estado em que me encontrava… Era melhor vir noutra altura… Sóbrio.

Dei meia dúzia de passos para trás e mudei a trajectória. De qualquer maneira tinha que tomar banho rapidamente, tanto para me aquecer como para curar a bebedeira, senão amanhã encontrar-me-ia de cama e de ressaca.

– Espere, espere!- ouvi uma voz. Encarei o homem que, coberto pelas sombras de uma noite sem lua, de pouco via. Nem as cores dos olhos eram nítidas… pareciam diferentes… Só espero que isto seja só o efeito da escuridão e de nada mais.

Entregou-me um papel e perguntou:

– Sabe onde é este lugar?

Olhei para o panfleto.

– Eu não consigo ler nada.- confessei. Estava mesmo em mau estado.

– Ah, desculpe.- disse-me.- Acho que é um bar destas redondezas… Como nunca estive por aqui…

Só havia um bar por estes lados. E sinceramente, não me apetecia voltar lá, não quando ali estive há alguns segundos e tinha decidido que não entraria naquele sítio hoje. Mas o homem parecia mesmo desesperado e cansado. Arfava por todo o lado.

Fiz-lhe sinal para que ele me seguisse. Passei uma esquina, virei à esquerda e segui em frente. E, novamente, ali estava.

– Aqui estamos.- disse ao homem.

Ele agradeceu e começou a entrar. Dei, novamente, meia volta.

– E que tal uma bebida?- perguntou-me.

– Ah? Mas ainda não viu que eu estou encharcado?- ripostei, pensando se o homem tinha as células cinzentas todas.

– Por isso mesmo.- disse-me.- Pode ser que uma bebida o ajude a aquecer.

O gajo não pode estar bem. Será que tinha bebido mais que eu?

Tentei reiniciar a minha fuga: não confiava neste homem. E, mais uma vez, fui interrompido. Mas, desta vez, por uma voz conhecida que me interpelava da pequena abertura da porta.

– Senhor Castiel?

Oh, com carago. Estou feito. Ponderei fugir. Conhecendo a pessoa como conheço, acho que nunca conseguiria fugir ileso. Coloquei um sorriso na cara, ou penso que coloquei, e encarei-a:

– Dona Helena, como está?- perguntei-lhe.

Ela sorriu-me e disse-me, incentivando-me a entrar:

– Bem sabia que era você. Tenho talento para reconhecer pessoas, mas acho que já percebeu isso. Vá entre, entre.

– Sem ofensa, Dona Helena.- tentei.- Mas estou todo molhado. Tenho de voltar ao navio e tomar um banho.

Helena, sem reservas, olhou-me de pés e cabeça. E demorou o seu tempo a fazê-lo.

– Ó meu Deus, tem razão. Que despassarada sou!- gritou ela, demasiado alto.- Tome um banho aqui. Pelo menos, aqui não tem que partilhar a casa de banho com ninguém.

Sem me deixar ripostar, empurrou-me até uma mesa, levando o homenzinho atrás.

– É seu amigo?- perguntou-me.

– Não.- respondi rapidamente, sem reservas.

Sentou-nos numa mesa e encarou-o:

– O que vai ser?- perguntou-lhe.

– Algo leve para os dois.- respondeu, olhando-me de seguida.- Quero pagar-lhe algo para agradecer a sua ajuda.

Afinal não era da escuridão. Mas ainda podia ser da bebedeira. Acho que nunca descobrirei. Tinha dois olhos de cores diferentes: um verde, outro âmbar. Tinha cabelo cinzento, mas não me deixava curioso a ponto de questionar se era ou não natural. E andava bem vestido. Até demais. Porém, por detrás de todo o engomo estava um homem ansioso, nervoso. Olhava para todo o lado, para toda a gente, enquanto palpitava com o pé no soalho. Doloroso para a minha frágil cabeça.

– Pode parar com isso?- gritei-lhe.- É irritante.

Parou de súbito.

– Peço desculpa.- disse-me.- Acho que estou demasiado nervoso.

Não me interessava o porquê de ele estar nervoso, mas ainda assim ele confessou-se:

– Estou à procura de uma rapariga. Mas não sei se ela vai querer ver-me.

– Desculpe-me, mate. Mas eu não pretendo tirar vocação de padre.

Calou-se, como se arrependido de ter falado do assunto. As bebidas estavam a demorar. Demasiado tempo até para esta espelunca. A música e as conversas paralelas totalmente sínicas e patéticas, faziam-me sentir ainda mais dependente da bebida que ainda não tinha chegado.

De repente, avistei Helena a tentar confortar uma rapariga. Reconheci-a imediatamente, como uma das amigas da Esmeralda. A rapariga chorava, transtornada.

– Será que deveríamos ir ver o que se passa?- perguntou o homem, percebendo para onde eu olhava.

Virei o olhar, tentando ignorar a cena.

– Não tem nada a ver connosco. Não nos devemos meter nas vidas dos outros.- disse-lhe. Ignorando-me, levantou-se e dirigiu-se a elas, mas não sem antes me dizer:

– Há certas vezes que, se ninguém se “metesse na vida” de algumas pessoas, elas só acabariam por sofrer sozinhas. Temos de perceber quando tem, ou não, a ver connosco.

Demorei a decifrar o que ele queria dizer com aquela macacada toda.

– Ó filho…- tentei reclamar, depois de perceber que ele estava a contrariar o que eu tinha dito, mas o homem já estava longe, perto da rapariga que chorava.

Olhei-os de longe. Mantinha a minha posição na minha tese- que não nos deveríamos envolver, mas o meu “amigo” não parecia querer saber nada disso. Sem pedir autorização, trouxe a rapariga para a nossa mesa e sentou-a no seu lugar, à minha frente. Ela cabisbaixa, continuava a chorar.

– Aqui tem, menina.- ofereceu o homem. Iris esticou a mão e agarrou o lenço oferecido, tentando, de seguida, secar as lágrimas que ainda brochavam dos olhos. Depois da missão ter ido em vão, subiu o olhar e fitou-me:

– Senhor Castiel…- reconheceu-me… e começou a chorar de novo. Suspirei. “Mulheres…”.

O meu “amigo” olhou-me, discriminadamente.

– O que fez à pobre rapariga?- perguntou-me. Encolhi os ombros, sem ter vontade de explicar fosse lá o que fosse. A minha cabeça não ia demorar muito a rebentar, e queria aproveitar os momentos de sanidade que me restavam para o importante: saborear a minha bebida.

– Não, ele não fez nada.- balbuciou Iris.- A culpa é toda minha.

Fitou-me, de novo.

– Eu sei o que se passou com a Esmeralda. Sei porque ela se entregou.- confessou.

A minha ressaca curou-se de rompante. As minhas pupilas prestes a adormecerem, despertaram. As minhas dores de cabeça, mesmo sem desaparecerem, passaram para um segundo plano distante, ignorado. Todo eu despertei, como se estivesse estado em coma durante demasiado tempo. Como se estivesse, durante todo este tempo, a limitar-me a sobreviver, um lamentável estado de vida.

– O quê?- gritei.

Ela acenou, começando a soluçar.

– Algo se passou com a menina Esmeralda?- perguntou o “amigo”.

Olhei-o nos olhos. Parecia seriamente preocupado. Desesperado, até. “Esmeralda? Até que ponto esses dois se conhecem?”, ouvi o meu cérebro perguntar… Agora sim percebi o pressentimento que tive ao vê-lo, o pressentimento que me dizia que eu não ia gostar deste arrumadinho. Como estava certo...


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