Romeu escrita por Star


Capítulo 1
Capítulo umnico


Notas iniciais do capítulo

Dedicada à minha mania de me apaixonar por todos que eu não conheço, e somente enquanto não os conheço.



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– Oi.

Branca esqueceu as tristezas da protagonista por um instante e levantou os olhos do livro. Um estranho estava ao seu lado no banco, virado para ela. Não sabia há quanto tempo ele estava alí. Olhou pros lados, devagar, só pra ter certeza que era com ela mesmo que ele estava falando. Não viu mais ninguém por perto. E ele ainda estava lhe encarando, e deve ter achado graça do seu gesto, porque riu.

– Oi – respondeu, meio constrangida.

– Você acredita em amor?

Branca apertou o livro. Que tipo de pergunta era aquela? Tinha saído de casa justamente para fugir das amigas escandalosas da sua colega de quarto, que não respeitavam a sua porta fechada e viviam fazendo perguntas embaraçosas e discutindo a possibilidade de Branca ser lésbica ou frígida. Agora um estranho drogado aparecia do diabo que o carregue fazendo perguntas de poeta. Que justo, universo.

– Não... Não tem o que acreditar – respondeu, encolhendo-se no banco e voltando o rosto pro seu livro. – É só um sentimento. O que você sente não mente pra você.

Silêncio. Branca manteve a cara no livro na esperança de que o estranho drogado fosse embora, catar outra garota com respostas mais poéticas pra ser sacrificada em nome de Satã na próxima lua cheia, e chegou a tentar voltar para a história, mas quando deu por si já lera a mesma frase oito vezes enquanto imaginava o suposto ritual satânico com tambores e dança com chocalhos em volta da fogueira, talvez com churrasco no final.

– Quer casar comigo?

Branca olhou pro estranho. O estranho estava sério. Pensou em olhar em volta novamente, procurando por amigos rindo da brincadeira ou pela câmera de pegadinha do programa do Silvio Santos.

– Perdão?

– Você quer se casar comigo?

As palavras eram bonitas, mesmo saindo da boca de um estranho. E talvez drogado. E talvez ator do Silvio Santos.

– Eu não posso me casar com você.

O estranho pareceu chateado.

– Por que não?

Dessa vez Branca olhou mesmo em volta, procurando pela equipe de filmagem com balões, o Chimbinha e um anão vestido de batman, mas as únicas pessoas passando eram uma idosa com um cachorrinho do tamanho de um telefone e um corredor de blusa suada com uma latinha de coca-cola.

– Bem, eu não te conheço.

– É claro! – O estranho bateu na testa, gesto que Branca nunca viu alguém fazer de verdade antes, e voltou-se para ela, estendendo a mão. – Eu sou Romeu.

– Branca. – Cumprimentou, aceitando a mão e achando alguma graça disso, e logo mudou de ideia e pensou se ainda dava tempo de gritar um nome falso.

As mãos dos dois ainda estavam juntas quando ele pediu outra vez.

– Branca, quer casar comigo?

Ele não parecia o tipo de estranho que se espera de um estranho. Usava jeans com os joelhos desgastados e uma camisa verde bem amassada. Tinha cabelos escuros e olhos doces e brilhantes. Não parecia o tipo de pessoa que falaria com Branca em uma festa, ou que a ajudaria se deixasse sua sacola rasgar no supermercado. Branca pensou que ele deveria estar muito drogado.

– As pessoas não saem simplesmente se casando por aí.

– Por que não? Eu me casaria com você.

– Não é certo.

– Nada tão bonito pode ser errado.

Ele tinha um jeito estranho de olhá-la, meio sério e meio bobo, que fazia suas bochechas esquentarem e seus neurônios perderem o fio da meada. Não podia estar falando sério. O que ele usava? Crack?

– Nós não nos conhecemos.

Romeu sorriu.

– Exatamente. Nós não temos mágoas, não temos problemas, não temos brigas. Não conhecemos nossos defeitos e nossas birras. Não sabemos do que nos estraga. Não nos aborrecemos, nem nos tiramos do sério. Somos perfeitos juntos!

– Mas eu quero. – Branca soltou abruptamente, comovida pelo absurdo do discurso, e o sorriso do estranho se desfez. – Eu quero os defeitos, as brigas, os problemas, todos eles.

O estranho franziu suas sobrancelhas, armando uma careta confusa.

– Por que você iria querer isso?

– Porque faz parte de amar.

O estranho recostou-se no banco, parecendo meio pensativo, com o dedo indicador alisando o queixo onde despontava o início de uma barba, e concluiu:

– Você é inteligente, Branca.

Branca sentiu uma pontada de orgulho. O pouco que conhecia de amor vinha das suas páginas protegidas por capa dura e das noites ouvindo a colega de quarto enquanto a ajudava a vomitar dentro de um balde, mas pelo menos devia ter a ideia certa da coisa.

– Você é esquisito, Romeu.

– Aí está! – O estranho levantou do banco em um pulo e segurou sua mão novamente. – Já conhece meu defeito, vamos nos casar!

– Não pode ser assim – Branca quase riu da animação repentina e da estranheza de toda aquela situação. Seria uma boa história pra contar um dia. Pra... bem, alguém. – Não sei nada sobre você. E se propõe para todas as garotas do bairro e coleciona noivas por aí?

– É claro que não – Romeu falou, parecendo ofendido com a acusação, e logo voltou a sorrir. – Somos o que vivemos, somos o aqui e o agora, e meu presente não poderia ser mais seu, Branca.

– E seu passado? A quem pertence? – Arriscou, para tentar descobrir qualquer coisa a mais sobre aquele Romeu estranho.

– Que egoísmo, Branca! - Romeu acusou, censurando-a com um sorriso bem-humorado. - Não basta me ter por inteiro, ainda quer um monte de fantasmas? Ademais, de que te serviria preocupar com o que já se foi, quando poderia ser dona também de meu futuro inteiro? Venha, Branca. Case comigo, hoje mesmo!

Branca foi puxada, seu livro caiu aberto no chão. Romeu a mantinha segura por uma mão na cintura. Algum órgão remoto e inútil, talvez o pâncreas dos pensamentos, a forçou a pensar que estando tão próxima de um louco drogado apaixonado talvez devesse gritar por socorro, mas Branca inteira só conseguia pensar em como era bom o seu cheiro, e como não parecia em nada como um estranho verdadeiramente estranho devesse cheirar.

– E se eu for como um de seus fantasmas?

– Não é. Você é você, você é Branca e você é perfeita. Case comigo.

– Sequer sabe nada sobre mim – disse, defendendo uma ideia que ia aos poucos se tornando esquecida, sustentada apenas pelo seu ajuizado pâncreas dos pensamentos.

– Eu sei tudo o que preciso saber. Sei que sabe ler, respirar e andar. Sei que acredita no amor e que acima de tudo quer acreditar em mim. Sei que é tão linda nessa luz que mal tenho coragem de me mexer.

Branca não sabia o que dizer. Tudo continuava ridiculamente, sinistramente, apaixonadamente absurdo. Percebeu a mão dele movendo-se sobre a sua e a outra firmar-se na sua cintura. O pânico casual de todas as festas fez presença.

– Eu não sei dançar.

– Não é dançar. Só me acompanha.

Os primeiros passos saíram duros e desengonçados. Branca mordeu a boca, nervosa, cada erro óbvio lhe dava mais vontade de se enterrar debaixo da lama junto das suas poucas – nenhuma – habilidades de locomoção.

– Não temos música nem temos amor.

– Casa comigo hoje e me ama amanhã.

– Como pode saber que nos amaríamos?

– Você parece o tipo de pessoa que eu poderia amar. E em troca do teu coração eu conquistaria o universo inteiro, pintaria todo o céu de vermelho, teria mais herdeiros que um coelho.

– Isso não é letra de música?

– Exato. Temos música. Teremos amor. Chega de desculpas.

O estranho a puxou mais pra perto, e aos pouquinhos os passos saíam. Assim, meio sem jeito, quase sem sentir.

Os dois dançaram pelo parque, sem música alguma. As velhinhas com seus cachorros olhavam, os corredores diminuíam o passo. Branca não via nada além dos olhos claros do estranho e sua boca que sorria de forma doce e que provavelmente era usada pra fumar muitos e muitos quilos de crack.

– Acho que você está drogado – confessou, entre um passo e outro.

– Mesmo? – Ele riu. - Acho que você deveria se casar comigo.

– Por que?

– Por que não?

– Por que eu?

– Porque eu vi nos seus olhos alguém que valia a pena prometer o mundo inteiro. Aceite, Branca. Consigo ler na sua íris e nas suas digitais que está ansiosa por dividir a vida comigo.

Branca hesitou.

– Como pode saber?

– Não ousou me dizer um “não” até agora.

– Sou educada, apenas.

– Sei que é. É Branca, é perfeita. Case comigo ou morro.

– Não morre, não.

– Está certa. Ter de voltar a escrever a vida sozinho depois de ter te conhecido e a deixado escapar seria ainda pior do que estar morto.

Por um movimento sorrateiro da música inexistente Branca foi puxada perto o suficiente para sentir a respiração do estranho soprar sobre o seu rosto. O seu pâncreas pensador tentou fazer alguma observação mas foi socado para as vielas do hipotálamo pelos hormônios histéricos. Branca procurou forças para sussurrar, devagar.

– É loucura.

– Seja louca comigo.

Romeu segurou sua mão e a fez rodar e rodar e rodar, até que ficasse tonta, que sumisse o chão, que não houvesse mundo, e Branca foi amparada por um abraço, sem forças de tanto rir.

– Casa comigo, Branca! – Ele soprou em seu ouvido, enquanto Branca ainda se sorria com a cabeça girando e sentindo tudo correr fora do lugar.

– Caso. Me caso contigo.

– Vamos comprar uma casa.

– E um cachorro.

– Claro. E um porquinho.

– Um porquinho?

– Vamos chamá-lo de jantar.

– Parece uma ótima ideia.

– Teremos dois filhos, e eles pintarão dinossauros com giz de cera nas paredes.

– Como pode saber de tanto?

– Porque não importa o quanto escondemos, crianças sempre acham os malditos giz de cera.

Nos olhos sinceros do seu futuro estranho, ou estranho do futuro, ou estranho Romeu, estranho de qualquer forma, Branca sentiu – deliciosa ironia – algo estranho no seu interior. Algo tão inocente e fora de suspeitas quanto os sorrisos que ele lhe dava. Era amor, bem puro, bem fresco amor.

Em contrapartida, vindo de um universo bem distante de loucuras e amores, quanto mais de loucuras de amor, um celular vibrou. Branca o tirou do bolso, “KD VC VOU LIGAR PRA POLÍCIA” cheio de pontos errados com o número da sua colega de quarto. Viu a hora, estava nessa brincadeira já há muito tempo, logo iria anoitecer e seu eu do passado que ainda não era noiva de um Romeu estranho tinha prometido estar em casa antes das cinco para sair para comer com as garotas. Uma chamada de resgate para o mundo real.

– Eu preciso ir – declarou, depressa. Seu pâncreas dos pensamentos havia ressuscitado e batia o pé dizendo que ela não deveria se sentir tão magoada assim. Era só um estranho e uma promessa de casamento qualquer, a vida de verdade esperava lá fora, provavelmente de unhas feitas e com comida chinesa.

O estranha baixara o olhar por um instante, coisa que Branca captou de relance, mas logo se recuperou dirigindo para ela um sorriso triste.

– Eu entendo.

Branca não suportou sustentar seu olhar, virou-se depressa e foi apanhar seu livro e a bolsa que esquecera nesse outro mundo.

– Será que pode me fazer um último favor? – Romeu perguntou, cauteloso, às suas costas.

– Não quero te ver ir embora, bem como não quero que me veja partir. Despedidas são tristes e nada tão bonito quanto você deve ser considerado triste. Fecha os olhos, Branca.

Vasculhando pelo seu juízo, o pâncreas dos pensamentos estava finalmente calado. Talvez fora sedado pelos hormônios eufóricos. Branca olhou o estranho pela última vez. A camiseta surrada, a barba recente contrastando com seu rosto de menino, as bochechas meio douradas de sol, os olhos muito claros presos aos seus. Romeu, em forma de um desconhecido, fantasiando de noivo. Fechou os olhos.

– Fica com isso.

Branca sentiu a sua mão ser envolvida pelo toque quente, algo fino foi colocado na sua palma e fechada.

– É prova da promessa que fizemos hoje, que seja meu teu futuro e que é a única que me tem como pertence. Fique com isso, também.

Branca engoliu o susto de quando sentiu o toque quente pelo seu rosto, os dedos dele alcançando do seu queixo à orelha e entrando pelos fios de cabelo. Não abriu os olhos.

– Não é prova de nada, eu só queria fazer há algum tempo.

Branca sentiu o beijo demorado e casto contra seus lábios. “Nós poderíamos nos encontrar de novo”, teve vontade de gritar mas mal tinha coragem de continuar respirando. Apesar de tudo, sabia que não podia pedi-lo que ficasse, mesmo que o seu pâncreas do pensamento agora revoltado gritasse para todos os orixás que deveria pedir e-mail, telefone, cpf, tipo de sanguíneo, foto de satélite da casa dele.

Eles tiveram o aqui e o agora, o tudo e o nada, e isso era o que fazia com que fosse perfeito.

O beijo se distanciou e Branca abriu os olhos. Não havia mais ninguém no parque.







– Pelo amor de Deus, como é que você some assim do nada? Pensei que ia só alí na esquina comprar um sorvete e sumiu por umas quatro horas, eu já tava quase parindo um filho de preocupação! Epa, esse sorriso eu conheço.

Branca havia acabado de entrar no apartamento, sorriso bobo fazendo doer as bochechas e estômago vazio reclamando pra quem quisesse ouvir. Tentou desviar de Vitória até o seu quarto mas a colega de quarto continuou nas suas costas como se fosse a Santa Inquisição.

– Conta logo, Branca! Quem você arrumou? Tem carro? Chamou ele pra comer com a gente? Vai chamar, quero conhecer!

– Não é nada, Vi – Branca falou, tentando fazer parecer que realmente não era nada, largou suas coisas na cama e começou a tirar os sapatos para trocar de roupa. – É só um livro muito bom que eu ando lendo.

– Ah, sei – Vitória soltou um muxoxo, desgostosa, e pinçou o livro pela capa, parecendo quase ter nojo. – Você deveria parar de ficar lendo esses romances e ir arranjar um logo, daqui a pouco vai começar a ter paranoias e ficar imaginando homem por aí.

– Ou vai virar lésbica! – Uma das amigas de Vitória gritou da sala.

– Não se mete, ô piranha! – Vitória gritou da porta pra fora, e voltou pro quarto. – Não liga pra Júlia, ela tá meio venenosa porque descobriu que o namorado mandando fotos pra outro cara pela internet. Pelado. Tipo, só com um lacinho lá em baixo. Nada bonito. Te arruma, a gente vai sair daqui a pouco.

Vitória tacou o livro pra cama, que quicou pro chão, e saiu. Branca abaixou-se no tapete para apanhar com carinho seu exemplar quase ancião de Romeu e Julieta. Passou os dedos pelos amassadinhos da capa, meio desconfiada. “Se não arranjar um romance logo, vai comer a ficar imaginando homem por aí”.

Pescou do seu bolso a fina e gelada aliança de prata.

– Oh, bem – declamou sozinha para o quarto e seus neurônios -, que seja verdade pra quem foi verdadeiro.

Abriu um espaço na prateleira de livros e recostou Romeu e Julieta alí. Iria ler um pouco mais de Otelo, só por via das dúvidas.





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Notas finais do capítulo

Quem nunca foi pedida em casamento por um estranho no parque?